Fouchet ficaria encantado com as denúncias anônimas que, seguidamente, são apresentadas ao Ministério Público, à Polícia e aos órgãos ambientais. Brigas de vizinhos, traições, amores mal resolvidos, dívidas não pagas, tudo isto se transforma em “denúncia de crime ambiental”, capaz de mover a máquina do Estado Brasileiro para a instauração do competente inquérito.
Recentemente, tive notícia de uma denúncia anônima – formulada ao Ibama – na qual se afirmava que em uma determinada residência da cidade do Rio de Janeiro estava sendo cometido um “crime ambiental”. A questão era a seguinte: após as normais desavenças condominiais, processo judicial, liminar, interdito proibitório e o escambau, o malsinado condômino, perdedor nos litígios judiciais, assestou suas baterias em favor de uma vítima de crime ambiental: o louro da vizinha. Refiro-me a um louro integrante da família dos psitacídeos. Nenhuma maledicência sobre um eventual amante, até porque, nesse caso, a atenção das autoridades públicas seria nenhuma. Diz-se que o adultério é socialmente irrelevante. O mesmo não se diga sobre a manutenção de um papagaio em cativeiro.
Falemos francamente, os papagaios são parte integrante de nossa realidade e, de certa forma, integram a alma brasileira. Tão logo os europeus chegaram à América, e mais precisamente ao Brasil, o papagaio atraiu-lhes a atenção. Em primeiro lugar foi o colorido das penas. Entretanto, este não foi o fator determinante. Em Visões do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda nos mostra que o papagaio foi considerado como uma das evidências de que o paraíso realmente existira e que ele, o papagaio, era uma prova viva de que no éden os bichos falavam. Papagaios e índios eram levados às cortes européias como excentricidades insuperáveis. Não foi por acaso que uma das primeiras designações do Brasil foi Terra dos Papagaios, tal era o número de animais que cá existiam antanho. Os viajantes europeus que estiveram no Brasil sempre se referiram aos papagaios com admiração. O Papagaio, aliás, foi um dos primeiros “produtos de exportação” do Brasil. Hoje, infelizmente, está na lista de animais traficados ilegalmente. A toponímia nacional registra, por exemplo, Araruama, que não é nada mais do que terra dos papagaios.
Voltando ao nosso louro, na verdade o papagaio em questão não é da vizinha, mas da filha da vizinha. Ele pertence a uma menina com pouco mais de 10 anos que ganhou a ave de presente de uma babá. Segundo a babá, o animal caiu de uma árvore e ela simplesmente o pegou. Fato é que o papagaio é bem tratado: vai ao veterinário todo mês, faz as unhas, vive solto dentro de casa e o vocabulário que utiliza não é o das piadas freqüentadas por seus primos menos afortunados. Comenta-se que o papagaio chega a ser quase um perroquet, ou um papagei, caso desejemos homenagear Humbolt que sobre ele versou:
Nas solidões do Orinoco vive
frio e imóvel um Papagaio velho,
como se fosse a própria imagem
talhada em dura pedra.
Abaixo onde caem as águas lutando,
uma tribo a esses penhascos
chegou proscrita e vencida,
e hoje goza de eterno descanso.
Sucumbiram os Atures, sempre livres
como tinham vivido, ousados.
Os verdes canaviais das margens
ocultam tudo quanto restava de sua raça.
Ali geme um sinal de dor
o Papagaio, único que tem
sobrevivido os Atures.
Aguça o bico na pedra e faz ressoar
nos ares os seus gritos.
Sem dúvida, o problema do tráfico de animais é gravíssimo e merece ser tratado com seriedade. É necessário, contudo, que os órgãos ambientais tenham clareza para perceber que, muitas vezes, são utilizados maliciosamente por pessoas inteiramente desocupadas e que levam preocupação às famílias que, por motivos diversos, possuem um ou outro animal silvestre.
O Ibama tem admitido que animais muito antigos permaneçam sob a guarda da pessoa com a qual eles se encontram. No caso do nosso louro, ele está na casa há muito tempo. Chegou à nova família como um bebê. O que fazer? Retirá-lo da casa? Gerar desconforto e tristeza para uma criança e para o próprio animal? Seguramente não é o melhor caminho. O pior é que, uma vez intimada, a proprietária do papagaio deve apresentar uma defesa que será acolhida ou não. Caso não haja o acolhimento, tal procedimento será encaminhado ao Ministério Público Federal para proceder como de direito. Uma vez judicializada a questão, ao pobre papagaio e à sua jovem proprietária somente caberá o caminho do Hábeas Corpus para que o animal não fique tolhido no seu direito de ir e vir. Vamos torcer para que a jovem Ararê (“amigo dos papagaios”) tenha êxito em sua demanda junto ao Ibama e que o Ibama se comova com o caso.
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