No Português que modernamente se fala no Brasil, madeira de lei é sinônimo de madeira de boa qualidade. A expressão tem origem no Brasil Colônia quando existiam árvores que eram protegidas pela legislação e não poderiam ser cortadas sem algum tipo de autorização especial. Normalmente eram árvores cuja madeira era utilizada na construção naval e que, em tal condição, tinham um interesse estratégico. Na colônia chegou a existir a figura do juiz conservador, cuja principal razão de existência era impedir o corte indiscriminado da madeira de lei, punindo aqueles que desrespeitassem as normas legais então vigentes. Se considerarmos o nível de desmatamento nas regiões costeiras desde o descobrimento, não será difícil constatar que a proteção da madeira de lei foi mais uma daquelas normas jurídicas que “não pegaram”. Curiosa expressão eufemística que encobre, como cobertor curto, a pouca ou nenhuma eficácia do antigo sistema de proteção jurídica das florestas brasileiras. Não se trata, da minha parte, de opinião, mas de mera constatação. Basta que se veja o que foi feito da outrora verdejante e vasta Mata Atlântica para que se perceba que o sistema falhou. No caso da Cidade do Rio de Janeiro, foi necessário que o Major Archer “construísse” uma floresta para que pudéssemos ter algum verde. Note-se que a Floresta da Tijuca foi construída como afirmação da cultura nacional, visto que a degradação era tida pelas mentes cultivadas do Século XIX como uma prova de subdesenvolvimento, sobretudo, cultural. O inconsciente coletivo nacional, infelizmente, não se apropriou das lições oferecidas pela tragédia ecológica gerada pelos cafezais no Vale do Paraíba e na própria Cidade do Rio de Janeiro.
Desde a década de 70, século XX, o Brasil tem vivido um processo rápido de desmatamento da Região Amazônica que, em seus primórdios, foi altamente estimulado pelo próprio governo federal, mediante a adoção de uma política de incentivos fiscais para a destruição. Com alternâncias conjunturais e episódicas, o desmatamento na região tem sido constante. Agora, lamentavelmente, estamos tendo a oportunidade de acompanhar mais um episódio no processo de acelerada destruição de áreas florestais da Amazônia, repetindo, como farsa, acontecimentos já muito conhecidos por nossa sociedade em relação à Mata Atlântica. Refiro-me ao “protesto” realizado por madeireiros da região Oeste do Pará contra a tentativa do IBAMA e do INCRA de disciplinar a extração de madeira naquela porção da Região Amazônica, sobretudo no interior de propriedade pública. Sim. Toda a confusão criada diz respeito ao “direito” de particulares se utilizarem de “bens públicos”. É o mesmo “direito” que se manifesta na privatização com dinheiro do BNDES, no “socorro” governamental a empresas falidas e tantos outros episódios que, por tão notórios e repetitivos, já não causam mais escândalo.
Em casos como o presente, é comum que se crie um “problema social” para servir de cortina de fumaça para a coisa que realmente importa. É o que acontece mais uma vez. Uma questão com a qual a atual administração brasileira não pode se iludir é a que diz respeito a posseiros e assentamentos, visto que muitos dos atuais administradores conhecem a lógica das demandas sociais legítimas. Historicamente, a ocupação do solo na Amazônia é feita por posseiros que servem de “ponta de lança”, abrindo a mata para que, ao venderem suas posses “regularizadas” sejam substituídas por empreendimentos e grandes proprietários que se instalarão definitivamente. Portanto, a existência de uma “questão social” é da lógica da própria expropriação ambiental da Amazônia e não deve impressionar.
O cadastramento dos ocupantes de terras públicas que o INCRA pretendeu fazer não é nada mais, nada menos do que uma simples obrigação legal. Não fazê-lo é que deveria gerar protestos. Tal cadastro serve, apenas, para identificar os “bagrinhos”, os “camelôs” da madeira, não chega a atingir – nem era o seu objetivo – os traficantes da riqueza nacional.
Os madeireiros buscam um aumento da “safra” – veja-se que “safra” não é o fruto da colheita de árvores que tenham sido plantadas para serem cortadas; trata-se da simples quantidade de árvores cortadas – de madeira legalizada, motivo pelo qual “precisam” ter os planos de manejo aprovados. É lógico que se as terras públicas serão utilizadas privadamente para a produção de madeira, o mínimo que se pode exigir é que a ocupação seja regular. Qualquer servidor público que aprovasse um plano de manejo para uma área ocupada irregularmente estaria se candidatando a ser réu em processos por improbidade administrativa. Com o aumento da consciência ambiental e, em particular, com o aumento da consciência em relação à necessidade de proteção da floresta amazônica, é cada vez mais difícil a colocação no mercado internacional de madeira que não seja certificada na origem, isto é, madeira que não tenha sido cortada dentro das normas de um plano de manejo regularmente aprovado. A madeira não certificada só pode ser introduzida naquele mercado de forma clandestina. Por outro lado, a existência de planos de manejo permite que se “lave” a madeira cortada ilegalmente, pois as guias de transporte e outros documentos legais geram “filhotes” sendo utilizadas muitas e muitas vezes, visto que o controle é extremamente precário.
A verdade – ou uma das faces da verdade – é que a “indústria madeireira” da Amazônia é inexistente. Limita-se, com honrosas exceções, à derrubada de árvores com utilização de moto-serras, baixa utilização de mão de obra, tendo em vista a alucinante velocidade com a qual se derruba uma árvore centenária e a venda do “produto” praticamente sem nenhum beneficiamento, alcançando preços ridiculamente baixos. Logo, a lógica de tal “indústria” é cortar cada vez mais árvores para poder sobreviver. Será que o Brasil, realmente, precisa desse tipo de “indústria”? A inscrição do nome de Chico Mendes no altar dos Heróis da Pátria nos diz que não. Até por uma questão de coerência.
A proteção da Amazônia é, atualmente, uma das principais questões ambientais da agenda internacional. A Amazônia, cuja maior porção está submetida à soberania nacional brasileira se constitui em uma preocupação comum da humanidade, conforme é reconhecido pelo próprio governo brasileiro, signatário que é da Convenção sobre Diversidade Biológica. Diferentes documentos oficiais têm “avaliado” a diversidade biológica da Amazônia em somas extraordinárias que ultrapassam a casa dos bilhões de dólares americanos. Entretanto, com simples ameaças os madeireiros mostraram o quão vazio é o compromisso de nossos dirigentes com as chamadas questões ambientais. Volto a chamar a atenção para o fato de que o centro da controvérsia é a utilização de áreas públicas.
Enfrentar com firmeza o front interno da Amazônia é a única forma que o país dispõe para se credenciar internacionalmente em defesa da região e da Amazônia como parcela inalienável do território nacional. Aqui não se trata de discursos mas de política prática em seu mais alto nível. A administração federal tem se revelado extremamente ágil quando se trata de criar normas para regular o acesso à diversidade biológica, à repartição dos benefícios decorrentes do acesso à diversidade biológica e outras matérias. O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN tem formulado modelos de contrato, termos, declarações e tudo o mais que a nossa tradição cartorial exige. Contudo, nada disso faz o menor sentido se a floresta em si não é protegida.
Vejamos o exemplo das queimadas. Como é de conhecimento de todos aqueles que se interessam por questões ambientais, a maior parcela de CO2 emitida pelo Brasil tem origem em queimadas na Amazônia. Caso o Brasil conseguisse reduzi-las de forma consistente, certamente, ficaria em posição extremamente confortável no cenário internacional.
Devemos nos indagar se perdemos ou ganhamos com o corte indiscriminado da madeira na Amazônia? Não estou me referindo, evidentemente, àquela meia dúzia de espertinhos que, mediante a utilização de trabalho escravo e moto-serras, fatura o que quer, sonega impostos e corrompe políticos na defesa de seus interesses. Refiro-me à sociedade brasileira que trabalha, paga impostos e espera ver as leis deste país cumpridas. Ela tem algum benefício palpável com o corte voraz da floresta? Sinceramente, acredito que não.
Agora no Século XXI não temos mais o Major Archer e a Amazônia é grande demais e o pior é que madeira de lei é uma mera expressão vernacular.
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