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Madeira de Lei

Não há problema social por detrás do protesto dos madeireiros na Amazônia. Ele serve apenas como desculpa para tomar de assalto terras que são públicas.

11 de fevereiro de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

No Português que modernamente se fala no Brasil, madeira de lei é sinônimo de madeira de boa qualidade. A expressão tem origem no Brasil Colônia quando existiam árvores que eram protegidas pela legislação e não poderiam ser cortadas sem algum tipo de autorização especial. Normalmente eram árvores cuja madeira era utilizada na construção naval e que, em tal condição, tinham um interesse estratégico. Na colônia chegou a existir a figura do juiz conservador, cuja principal razão de existência era impedir o corte indiscriminado da madeira de lei, punindo aqueles que desrespeitassem as normas legais então vigentes. Se considerarmos o nível de desmatamento nas regiões costeiras desde o descobrimento, não será difícil constatar que a proteção da madeira de lei foi mais uma daquelas normas jurídicas que “não pegaram”. Curiosa expressão eufemística que encobre, como cobertor curto, a pouca ou nenhuma eficácia do antigo sistema de proteção jurídica das florestas brasileiras. Não se trata, da minha parte, de opinião, mas de mera constatação. Basta que se veja o que foi feito da outrora verdejante e vasta Mata Atlântica para que se perceba que o sistema falhou. No caso da Cidade do Rio de Janeiro, foi necessário que o Major Archer “construísse” uma floresta para que pudéssemos ter algum verde. Note-se que a Floresta da Tijuca foi construída como afirmação da cultura nacional, visto que a degradação era tida pelas mentes cultivadas do Século XIX como uma prova de subdesenvolvimento, sobretudo, cultural. O inconsciente coletivo nacional, infelizmente, não se apropriou das lições oferecidas pela tragédia ecológica gerada pelos cafezais no Vale do Paraíba e na própria Cidade do Rio de Janeiro.

Desde a década de 70, século XX, o Brasil tem vivido um processo rápido de desmatamento da Região Amazônica que, em seus primórdios, foi altamente estimulado pelo próprio governo federal, mediante a adoção de uma política de incentivos fiscais para a destruição. Com alternâncias conjunturais e episódicas, o desmatamento na região tem sido constante. Agora, lamentavelmente, estamos tendo a oportunidade de acompanhar mais um episódio no processo de acelerada destruição de áreas florestais da Amazônia, repetindo, como farsa, acontecimentos já muito conhecidos por nossa sociedade em relação à Mata Atlântica. Refiro-me ao “protesto” realizado por madeireiros da região Oeste do Pará contra a tentativa do IBAMA e do INCRA de disciplinar a extração de madeira naquela porção da Região Amazônica, sobretudo no interior de propriedade pública. Sim. Toda a confusão criada diz respeito ao “direito” de particulares se utilizarem de “bens públicos”. É o mesmo “direito” que se manifesta na privatização com dinheiro do BNDES, no “socorro” governamental a empresas falidas e tantos outros episódios que, por tão notórios e repetitivos, já não causam mais escândalo.

Em casos como o presente, é comum que se crie um “problema social” para servir de cortina de fumaça para a coisa que realmente importa. É o que acontece mais uma vez. Uma questão com a qual a atual administração brasileira não pode se iludir é a que diz respeito a posseiros e assentamentos, visto que muitos dos atuais administradores conhecem a lógica das demandas sociais legítimas. Historicamente, a ocupação do solo na Amazônia é feita por posseiros que servem de “ponta de lança”, abrindo a mata para que, ao venderem suas posses “regularizadas” sejam substituídas por empreendimentos e grandes proprietários que se instalarão definitivamente. Portanto, a existência de uma “questão social” é da lógica da própria expropriação ambiental da Amazônia e não deve impressionar.

O cadastramento dos ocupantes de terras públicas que o INCRA pretendeu fazer não é nada mais, nada menos do que uma simples obrigação legal. Não fazê-lo é que deveria gerar protestos. Tal cadastro serve, apenas, para identificar os “bagrinhos”, os “camelôs” da madeira, não chega a atingir – nem era o seu objetivo – os traficantes da riqueza nacional.

Os madeireiros buscam um aumento da “safra” – veja-se que “safra” não é o fruto da colheita de árvores que tenham sido plantadas para serem cortadas; trata-se da simples quantidade de árvores cortadas – de madeira legalizada, motivo pelo qual “precisam” ter os planos de manejo aprovados. É lógico que se as terras públicas serão utilizadas privadamente para a produção de madeira, o mínimo que se pode exigir é que a ocupação seja regular. Qualquer servidor público que aprovasse um plano de manejo para uma área ocupada irregularmente estaria se candidatando a ser réu em processos por improbidade administrativa. Com o aumento da consciência ambiental e, em particular, com o aumento da consciência em relação à necessidade de proteção da floresta amazônica, é cada vez mais difícil a colocação no mercado internacional de madeira que não seja certificada na origem, isto é, madeira que não tenha sido cortada dentro das normas de um plano de manejo regularmente aprovado. A madeira não certificada só pode ser introduzida naquele mercado de forma clandestina. Por outro lado, a existência de planos de manejo permite que se “lave” a madeira cortada ilegalmente, pois as guias de transporte e outros documentos legais geram “filhotes” sendo utilizadas muitas e muitas vezes, visto que o controle é extremamente precário.

A verdade – ou uma das faces da verdade – é que a “indústria madeireira” da Amazônia é inexistente. Limita-se, com honrosas exceções, à derrubada de árvores com utilização de moto-serras, baixa utilização de mão de obra, tendo em vista a alucinante velocidade com a qual se derruba uma árvore centenária e a venda do “produto” praticamente sem nenhum beneficiamento, alcançando preços ridiculamente baixos. Logo, a lógica de tal “indústria” é cortar cada vez mais árvores para poder sobreviver. Será que o Brasil, realmente, precisa desse tipo de “indústria”? A inscrição do nome de Chico Mendes no altar dos Heróis da Pátria nos diz que não. Até por uma questão de coerência.

A proteção da Amazônia é, atualmente, uma das principais questões ambientais da agenda internacional. A Amazônia, cuja maior porção está submetida à soberania nacional brasileira se constitui em uma preocupação comum da humanidade, conforme é reconhecido pelo próprio governo brasileiro, signatário que é da Convenção sobre Diversidade Biológica. Diferentes documentos oficiais têm “avaliado” a diversidade biológica da Amazônia em somas extraordinárias que ultrapassam a casa dos bilhões de dólares americanos. Entretanto, com simples ameaças os madeireiros mostraram o quão vazio é o compromisso de nossos dirigentes com as chamadas questões ambientais. Volto a chamar a atenção para o fato de que o centro da controvérsia é a utilização de áreas públicas.

Enfrentar com firmeza o front interno da Amazônia é a única forma que o país dispõe para se credenciar internacionalmente em defesa da região e da Amazônia como parcela inalienável do território nacional. Aqui não se trata de discursos mas de política prática em seu mais alto nível. A administração federal tem se revelado extremamente ágil quando se trata de criar normas para regular o acesso à diversidade biológica, à repartição dos benefícios decorrentes do acesso à diversidade biológica e outras matérias. O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético – CGEN tem formulado modelos de contrato, termos, declarações e tudo o mais que a nossa tradição cartorial exige. Contudo, nada disso faz o menor sentido se a floresta em si não é protegida.

Vejamos o exemplo das queimadas. Como é de conhecimento de todos aqueles que se interessam por questões ambientais, a maior parcela de CO2 emitida pelo Brasil tem origem em queimadas na Amazônia. Caso o Brasil conseguisse reduzi-las de forma consistente, certamente, ficaria em posição extremamente confortável no cenário internacional.

Devemos nos indagar se perdemos ou ganhamos com o corte indiscriminado da madeira na Amazônia? Não estou me referindo, evidentemente, àquela meia dúzia de espertinhos que, mediante a utilização de trabalho escravo e moto-serras, fatura o que quer, sonega impostos e corrompe políticos na defesa de seus interesses. Refiro-me à sociedade brasileira que trabalha, paga impostos e espera ver as leis deste país cumpridas. Ela tem algum benefício palpável com o corte voraz da floresta? Sinceramente, acredito que não.

Agora no Século XXI não temos mais o Major Archer e a Amazônia é grande demais e o pior é que madeira de lei é uma mera expressão vernacular.

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