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No Brasil a água é bem público só na hora do consumo. Não cuidamos de seus mananciais nem racionalizamos seu uso. Tratamos dela como se não fosse de ninguém.

8 de abril de 2005 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

No mês de março foi comemorado o Dia Mundial da Água (22/3) que foi instituído pela Assembléia Geral das Nações Unidas mediante a edição da resolução A/RES/47/193 de 22 de fevereiro de 1993. É uma data comemorativa que tem por objetivo chamar a atenção mundial para os diferentes problemas que tem por base a água, ou melhor, a falta dela. Quando falamos em falta de água, evidentemente, estamos nos referindo à falta de água para a utilização na agricultura, na indústria, na dessedentação de animais e para consumo humano. Como se vê, são múltiplos os usos da água. Não se deve esquecer que, ao lado de sua utilização profana, a água tem uma utilização religiosa e espiritual, pois é utilizada em ritos de purificação nas mais diferentes tradições religiosas. Do rio Ganges às pias batismais, a água é uma expressão de renovação espiritual e de ingresso em uma nova vida isenta das faltas humanas. Como nos ensina Mary Douglas, a preocupação com a limpeza espiritual e física é uma constante nas sociedades humanas.

Tradicionalmente, a água é considerada um bem de uso comum do povo, uma coisa comum a todos (res comunis omnium) e, em tal condição, acessível aos que dela precisem, independentemente de qualquer condição política, social, racial ou religiosa. Entretanto, nós a temos tratado como coisa de ninguém (res nullius). A tradição de fornecer água a qualquer um chegou a prejudicar o Brasil em uma Copa do Mundo, quando os argentinos deram água com doping para o jogador Branco. No Brasil, temos uma grande quantidade de água que, em tese, é suficiente para atender todas as nossas necessidades. Entretanto, a água não se encontra distribuída igualmente pelo território nacional, o que faz com que, em não poucas regiões, a falta de água seja um problema bastante grave. Nas áreas urbanas, a necessidade crescente de ampliação de abastecimento, a pressão antrópica sobre os mananciais, a falta de saneamento básico, a poluição industrial, o desmatamento das margens dos rios e outras mazelas fazem com que a falta de água seja uma ameaça constante e, nem sempre, levada a sério pelas autoridades ditas competentes. Enquanto são feitos investimentos eleitoralmente importantes para a ampliação do número de residências atendidas pela rede de abastecimento, não se fazem investimentos proporcionais na proteção dos mananciais.

Apesar das enormes dificuldades para o abastecimento de água de boa qualidade para os grandes centros, pouca coisa é feita para que o consumo seja feito de forma racional e adequada. Os sábados, por exemplo, deveriam ser declarados dia municipal do desperdício de água, ou o dia municipal de lavagem de calçadas. Não conheço um edifício no Rio de Janeiro que, aos sábados, não tenha a calçada “varrida” por uma generosa mangueira que permanece aberta e vertendo água enquanto as beldades passam radiantes em frente ao prédio e os auxiliares de serviços condominiais, boquiabertos, admiram a generosidade da natureza humana. Não me recordo de ter visto um único “anúncio institucional” de qualquer governo tratando do assunto. Quanta água se perde com isto? Será que a questão é irrelevante? E a lavagem de automóveis? Isto para não falar que, literalmente, jogamos no vaso sanitário água tratada, isto é, a mesma água que bebemos. Tem isto alguma lógica ou sentido?

O desprezo pela água em nossa sociedade é de tal ordem que o rio Carioca, cuja importância era tão grande que o nome dele serviu para a designação do gentílico dos que aqui vivem é, hoje, um ilustre desconhecido por parcela significativa de nossa população. O Eco poderia fazer uma pesquisa de opinião. Você conhece o Rio Carioca? Sabe onde ele fica? Já viu? Acredito que os resultados seriam tenebrosos. O rio Carioca está escondido no subsolo da Rua das Laranjeiras. Hoje não passa de um canal subterrâneo que, cheio de esgoto e lixo, desemboca na Praia do Flamengo, sem que ninguém lhe dê a mínima pelota. Faz as vezes de cloaca máxima. O rio Carioca foi vítima de uma moda de canalização de cursos d’água que, também, atingiu outros rios de nossa cidade.

A falta d’água é uma tradição carioca que materializou em música popular, tipos característicos da cidade e construções como o Aqueduto da Carioca, ou Arcos da Lapa, e inúmeros chafarizes que, em nossas praças públicas, se transformaram em mictórios. Os arcos foram construídos entre 1719 e 1725, por Aires Saldanha (hoje rua em Copacabana), objetivando trazer a água do Silvestre (Santa Tereza) até o Largo da Carioca, onde mediante um chafariz com 16 bicas atendia à população.

Alguma coisa começa a ser feita. Refiro-me, em especial, à nova legislação sobre o tema, em especial à chamada Política Nacional de Recursos Hídricos, mediante a qual será atribuído um valor pela utilização dos recursos hídricos. Hoje quando pagamos a conta de água, na verdade, não estamos pagando a água como bem em si mesmo. O que nós pagamos é o serviço de tratamento, coleta e remessa para os nossos lares (aqueles felizardos que têm água encanada). A idéia é que a utilização da água se faça de forma mais econômica e, portanto, capaz de assegurar que ela não seja desperdiçada. Todo o impacto causado sobre os corpos hídricos deve corresponder a um determinado preço, de forma que a parte mais sensível do corpo humano, o bolso, possa sentir as dores da utilização excessiva e irresponsável da água. Quanto menos água for utilizada, menor será o preço pago. Os grandes usuários da água, recursos hídricos, são a agricultura e a indústria. A agricultura, infelizmente, ainda é muito pouco eficiente na utilização de água, não sendo raros mecanismos como pivôs centrais e outros métodos de irrigação que implicam em utilização extremamente intensiva de água. Um outro problema relevante é a poluição dos rios causada por uma agricultura muito dependente de produtos químicos.

A indústria, ainda que responsável por parcelas significativas da utilização e mesmo da poluição de cursos d’água, tem dado mostras de que é possível a redução do consumo de recursos hídricos e que, principalmente, é possível a recuperação da qualidade das águas. Uma questão que precisa ser enfrentada com muita firmeza caso, de fato, estejamos empenhados na garantia do abastecimento de água para as nossas cidades é a proteção dos mananciais, com o plantio de matas ciliares, a desobstrução de leitos e outras medidas necessárias. Neste particular, gostaria de parabenizar o Ministério Público do Estado do Paraná que desenvolve um belo trabalho de recomposição de matas ciliares.

O descaso com as diferentes questões hídricas, ou o pouco caso com elas, pode ser medido pela escala de prioridade. Estamos muito mais preocupados, por exemplo, com a despoluição da baía de Guanabara do que com a despoluição do rio Paraíba do Sul, maior fonte de água potável da região metropolitana do Rio de Janeiro. Rios como o Piabanha em Petrópolis e outros, não têm a menor atenção por parte de quem de direito.

Não obstante as inegáveis marcas que a dificuldade de abastecimento de água tem deixado na nossa cidade, ao que parece, não temos tido a exata consciência do problema. Para encerrar, vale lembrar o samba de Monsueto: “Eu não sou água / Pra me tratares assim / Só na hora da sede / É que procuras por mim / A fonte secou.”

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