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O rapto dos tomates

Em tempos de biopirataria, mais histórias podem ser escritas à semelhança da peça “O Rapto das Cebolinhas”. Com atualidades, o tomate sul-americano vira o personagem principal.

10 de outubro de 2006 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

A grande teatróloga e escritora Maria Clara Machado, cujas peças fizeram e fazem a alegria das crianças brasileiras, escreveu uma hilariante comédia policial infantil chamada o Rapto das Cebolinhas, com vários personagens impagáveis, tais como o famoso Camaleão Alface. A peça, escrita na década de 50 do século passado, não estava voltada para preocupações ecológicas e, em especial, não estava ligada no combate à biopirataria, que é termo moderno, mediante o qual se pretende demonstrar que as riquezas da diversidade biológica de uma nação são levadas clandestinamente para outra, como a expressão aggiornata do capitalismo espoliador que se expandiu com a globalização excludente e sob o comando das multinacionais. Não. Ela era, apenas, uma peça infantil com o objetivo de divertir a criançada com uma história bem contada. Infelizmente, o colunista não é dotado de capacidade artística e criativa suficientemente boa para construir uma história infantil. É uma pena.

Nos tempos de biopirataria, diversidade biológica, organismos geneticamente modificados e internet, seguramente, muitas histórias poderiam ser escritas à semelhança do Rapto das Cebolinhas. Eu chego a imaginar algo que poderia ser mais ou menos assim: Na Itália, a conhecida e temida máfia sicialiana começa a ter seus negócios de venda de pizza extremamente prejudicados por uma praga que se abateu sobre os pomodori italianos (não posso deixar de registrar que os italianos, ao denominarem os tomates de “maçã de ouro” – pomodoro – demonstraram a total incapacidade da cultura ocidental em reconhecer a alteridade e riqueza das culturas autóctones, ingenuamente imaginavam que só existia a espécie amarela de tomates, daí a ridícula situação de chamarmos um tomate vermelho de maçã de ouro). Fechemos o parêntesis.

A praga, descobriu-se posteriormente, foi fruto de manipulação genética promovida por grupos de criminosos rivais, que visavam prejudicar a lavagem de dinheiro feita pela máfia nas pizzarias de sua propriedade. Assim, impossibilitada de proceder à lavagem do dinheiro, a máfia sicialiana ficaria em grandes dificuldades com o fisco peninsular, abrindo espaço para que outras agremiações de meliantes pudessem ocupar o terreno deixado livre. Ante a profunda queda em seus negócios ilícitos, a máfia começa a buscar alternativas para os seus negócios e, principalmente, inicia uma busca incessante por tomates que fossem capazes de resistir à praga maliciosamente disseminada. Como não poderia deixar de ser, o tomate salvador e resistente às pragas era uma das mais preciosas jóias do patrimônio genético das nações do espoliado Sul, antigamente conhecido como terceiro mundo, país subdesenvolvido ou outras designações, que são muito convenientes para que se impute a terceiros as próprias falhas e incoerências.

Assim, uma vez descoberto que a solução para o mafioso problema estava nos tomates do terceiro mundo, os próceres da Cosa Nostra partem em direção à América do Sul e como em qualquer filme B descobrem que os tomates, ainda que amplamente popularizados pelas Pizze italianas, é originário da América do Sul; sim, é verdade, os estudiosos afirmam que a origem do vegetal se encontra no antigo Império Inca, de onde se expandiu para a América Central e, após a colonização, foi surrupiado para a Europa, continente no qual se adaptou perfeitamente e, na prática, todos nós achamos que ele é tão italiano quanto a macarronada. Contudo, é imperioso que se registre que a origem incaica dos tomates não é tranqüila, visto que há quem sustente que ele é Azteca.

Tal divergência, contudo, não deve nos impedir de verificar e constatar que, na prática, ele é originário do Sul, não do Sul geográfico, visto que o México está acima da linha do equador, o que gera uma impossibilidade lógica de alocar tal país no Sul. É um Sul político; da mesma forma que a Austrália e a Nova Zelândia, embora situados abaixo da linha do equador, sejam do Norte; no caso é aplicável o mesmo conceito de Norte político. Evidentemente que, devido a grande discussão sobre os direitos de propriedade intelectual (DPI) sobre o patrimônio genético, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual, tão logo possa, irá agendar um ciclo de debates em Genebra para que se estabeleça se as pizzas deverão indicar a origem dos tomates utilizados e, evidentemente, repartir os benefícios decorrentes da utilização do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado com as comunidades locais. Com toda certeza, teremos faixas e cartazes, em várias línguas escritos, com o objetivo de tornar o protesto mais visível: “El tomate es nuestro”, “Hands off our Tomatoes”, “Tomate o muerte, venceremos”.

Chegando à América do Sul, assim como Butch Cassidy e nove entre dez bandidos de filmes americanos, os mafiosos dão início à procura de um grupo capaz de retirar o precioso germoplasma do continente sul-americano. Os correspondentes locais da camorra sugerem uma feira de animais na periferia de uma grande cidade que, por muito freqüentada, é altamente reconhecida como eficiente “exportadora” de recursos genéticos, inclusive animais contemplados nos anexos da CITES, tendo em vista as suas ramificações nos arcana imperii.

Fato é que, conversa vai, conversa vem, foi indicado que os tomates capazes de cumprir a missão esperada só estavam disponíveis no interior da Selva e que para lá deveria ser despachada uma missão especial. E assim foi feito. Após alguns contatos no submundo, os tomates foram encontrados. Vencida a primeira parte da empreitada, cuidava-se de remeter o produto do saque para o exterior. A tarefa, sabia-se de antemão, não seria trivial. Vários watchdogs de ONGs postavam-se dia e noite nos aeroportos sul-americanos em severa vigilância impedindo que o patrimônio genético fosse subtraído da soberania nacional e, ao mesmo tempo, enfrentava-se a questão da geração de renda com a criação de empregos sustentáveis. Contudo, sabemos todos que sempre é possível dar-se um jeito e, como Colombo já demonstrara séculos atrás, as soluções mais simples e inesperadas quase sempre são as melhores. Um Courier. Certamente a melhor maneira de retirar o valioso patrimônio do continente era pura e simplesmente remetê-lo via Courier. Solução genial, barata, insuspeitada e rápida. Em 24 horas a preciosa carga estaria na Sicília, salvo se houvesse um sciopero nos correios italianos.

Contudo, é necessário que se crie um final feliz para a história, sob pena de gerar uma descrença nas instituições. E assim, em pleno aeroporto internacional, alguns segundos antes do pacote contendo a carga genética ser embarcado para terras imperialistas, uma denúncia anônima informou o número, a companhia e a carga do Courier, de modo que as atentas autoridades locais impediram que o precioso material saísse de nuestra américa. Enquanto isto, as autoridades italianas já haviam sido cientificadas de todos os passos da tramóia e uma enorme operação pomodori puliti foi desencadeada com a prisão de um incontável número de mafiosos e bandidos. And they lived together happily ever after

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