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A roupa nova do rei

As mudanças propostas no artigo 23 da Constituição pela equipe de Lula são bem-vindas. Impedirão o caos interpretativo nos tribunais e darão poderes aos entes federativos.

5 de fevereiro de 2007 · 18 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

“Porém, uma criança que estava entre a multidão, em sua imensa inocência, achou aquilo tudo muito estranho e gritou:
– Coitado!!! Ele está completamente nu!! O rei está nu!!
O povo, então, enchendo-se de coragem, começou a gritar:
– Ele está nu! Ele está nu!”
Hans Christian Andersen

Durante muito tempo, para ser mais exato desde a promulgação da Constituição de 1988, os estudiosos de direito constitucional e direito ambiental vêm alertando para o fato de que as competências constitucionais em matéria ambiental contempladas nos artigos 23 e 24 de nossa Lei Fundamental necessitavam de uma regulamentação – aliás determinada pela própria Constituição. Quase 20 anos depois da “nova” Constituição, o Poder Executivo remete ao Congresso Nacional um Projeto de Lei Complementar, com vistas a dar cumprimento à Constituição. Não sei se é o caso de cumprimentar o 2º governo Lula e criticar todos aqueles que o antecederam, inclusive o 1º governo Lula, ou se, simplesmente, é o caso de “anistiar” o que ficou para trás e olhar para frente. Pessoalmente, inclino-me mais pela segunda hipótese. Contudo, quem esquece o passado está condenado a persistir nos erros.

É preciso observar que o artigo 23 da Constituição trata das chamadas competências comuns, que são competências administrativas e não legislativas, estas últimas tratadas no artigo 24 e ditas concorrentes. Ambos os artigos deveriam definir as atribuições e poderes de cada um dos diferentes entes federativos. Na verdade, eles fazem exatamente o contrário: geram uma indefinição tremenda e uma grande confusão. Os nossos tribunais, com decisões contraditórias e, nem sempre coerentes, acabaram contribuindo para o verdadeiro caos que é a matéria, pois não conseguiram estabelecer um sistema interpretativo que fosse suficientemente forte para sinalizar uma orientação para a Administração Pública e para os diferentes atores presentes no palco iluminado das questões ambientais.

Seguidamente aqueles que, como eu, se manifestaram contra os absurdos da Resolução Conama nº 237 que, indo além de suas tamancas, pretendeu “regulamentar” o artigo 23 da Constituição Federal, foram, acoimados de Torquemadas contra o meio ambiente, acusados de irmos contra um “consenso” existente entre o MMA, ONGS, empreendedores e o próprio MP. Esqueceram-se os nossos críticos que normas constitucionais são para serem cumpridas e não para serem “consensuadas” – expressão ridícula que está se tornando moda -, por grupos por mais respeitáveis que sejam. O fato é que a medida tomada já se fazia necessária há muito tempo.

É de se observar que o artigo 2º, IV do PLC fala em “garantir a unicidade da política ambiental para todo o país”, o que significa que os estados e os municípios não podem implementar as suas políticas ambientais que, nos termos do PLC deve ser única. Aqui deve haver uma modificação, sob pena dos entes federados perderem as suas autonomias. Até porque a natureza do PLC é descentralizadora.

O mais grave me parece ser o artigo 3º que em seu parágrafo único insiste na “atuação subsidiária dos demais entes federativos”, contradizendo o caput que determina que as ações administrativas devem “observar o critério de predominância do interesse”. Em bom Português é mantido o sistema anárquico mediante o qual os diferentes níveis político – administrativos fazem uma verdadeira competição pela emissão de multas e ações fiscalizatórias. A chave da charada, contudo, se encontra nos artigos 11 e 12 pelos quais é definida a natureza da “atuação subsidiária”. De acordo com o PLC ela se dá quando não existem os órgãos dos níveis políticos menos abrangentes. Assim, não havendo órgão estadual, age o federal; não havendo o municipal, age o estadual. É uma medida correta, razoável e lógica. Neste tópico o legislador deveria ser mais explícito indicando que a fiscalização compete ao órgão licenciador da atividade. Com isto, muita dor de cabeça seria evitada e outras tantas operações policiais em órgãos ambientais, também.

Aliás, isto seria uma decorrência lógica do artigo 9º do mesmo PLC que, em seus §§ 1º e 2º estabelecem medidas racionais, visto que define que o órgão licenciador é o responsável pela autorização para supressão de vegetação, o que na prática, simplifica questões muito relevantes para as atividades que buscam se instalar. Por outro lado, é institucionalizada a participação dos demais entes federativos no processo de licenciamento, “sem caráter vinculante”, o que me parece óbvio, haja vista que a vinculação seria a imposição de um ente federativo sobre outro, ferindo às autonomias constitucionais. A prática demonstra que uma intervenção bem fundamentada de um órgão ambiental é suficiente para que o órgão licenciador examine a questão com mais detalhes e, quase sempre, aceita as ponderações do outro órgão de meio ambiente.

Do meu ponto de vista, um dos mais relevantes aspectos do PLC é o contido no inciso II, do artigo 4º que admite a possibilidade de formação de consórcios. Com isto, nós poderíamos em tese, ter um licenciamento ambiental conferido pelos municípios da região serrana do Rio de Janeiro. Economizam-se recursos, ganha-se em consistência técnica e no exame do projeto a ser licenciado no contexto de uma região específica. Este é um tema que deveria merecer muita atenção, dado o seu alto potencial de melhorias para o sistema como um todo.

O PLC, como um todo, é bom. Não direi que é um “avanço”, pois ninguém agüenta mais ouvir bobagens tais como “é um avanço”, “é um progresso”, “a melhor legislação do mundo” e tantas outras que infestam o nosso dia-a-dia. A última é o “fez o dever de casa”. Boas escolas que funcionam em horário integral não dão “dever de casa” para os alunos. Se há a necessidade de um dever de casa, é porque algo está faltando na escola.

Agora devemos nos perguntar o seguinte: “como ficam as multas aplicadas com base em competências e atribuições definidas pela Resolução 237 do Conama?”. O PLC é um reconhecimento mais do que explicito de que tal Resolução tratou de matéria reservada à Lei Complementar e, portanto, o Conselho ultrapassou em muito às suas atribuições. Quem arcará com os custos causados a terceiros, com prejuízos decorrentes de embargos, multas, ações de fiscalização e outros atos que, por força do PLC, são diretamente lançados no rol da ilegalidade e mesmo da inconstitucionalidade? Há inclusive condenações criminais fundadas em regras estabelecidas pela Resolução 237 e outras menos votadas.

“O rei, ao ouvir esses comentários, ficou furioso por estar representando um papel tão ridículo! O desfile, entretanto, devia prosseguir, de modo que se manteve imperturbável e os camareiros continuaram a segurar-lhe a cauda invisível. Depois que tudo terminou, ele voltou ao palácio, de onde envergonhado, nunca mais pretendia sair. Somente depois de muito tempo, com o carinho e afeto demonstrado por seus cortesões e por todo o povo, também envergonhados por se deixarem enganar pelos falsos tecelões, e que clamavam pela volta do rei, é que ele resolveu se mostrar em breve aparições… Mas nunca mais se deixou levar pela vaidade e perdeu para sempre a mania de trocar de roupas a todo momento.

Quanto aos dois supostos tecelões, desapareceram misteriosamente, levando o dinheiro e os fios de seda e ouro. Mas, depois de algum tempo, chegou a notícia na corte, de que eles haviam tentando fazer o mesmo golpe em outro reino e haviam sido desmascarados, e agora cumpriam uma longa pena na prisão.”[1]

[1] http://www.clubedobebe.com.br/, capturado aos 25 de Janeiro de 2007.

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