São nossas coisas… são coisas nossas”
(Noel Rosa)
As questões legais relativas ao meio ambiente estão no centro do debate ambiental, o que demonstra a nossa imensa vocação para um fenômeno muito nacional que é o chamado bacharelismo que se desdobra em diferentes sub-fenômenos tais como o excesso de formalismo e o abandono da essência para a valorização da aparência. “Coisas nossas”. No licenciamento ambiental, as coisas nossas, são uma realidade indiscutível. O legislador brasileiro, mediante a edição da Lei Federal nº 6.938/81 estabeleceu no artigo 10 que: “a construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.” A medida foi extremamente acertada e, na ocasião, foi um “avanço”, como se costuma dizer. Não vou perder tempo tratando daquela Filosofia da História que acredita que o mundo sempre anda para frente, como se estivéssemos predestinados a ter um futuro radiante e que qualquer nova situação fosse mais uma etapa em direção a tal futuro. Mas a idéia de que o “avanço” é inexorável tem mais força do que parece. Ao regulamentar a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, o Poder Executivo houve por bem dividir o licenciamento ambiental em três fases que são constituídas por três licenças diferentes, a saber: (i) Licença Prévia; (ii) Licença de Instalação e (iii) Licença de Operação que são conhecidas pelo vulgo como LP, LI e LO. A racionalidade própria da Administração Pública definiu o papel de cada uma delas da seguinte maneira:
(i) Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo;
(ii) Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo aprovado; e
(iii) Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças Prévia e de Instalação.
Ingenuamente, acredito que a Licença Prévia seja uma espécie de nihil obstat ou imprimatur que a Administração Pública outorga ao empreendedor, de forma que ele possa ultrapassar a fase preliminar de planejamento e, de fato, avançar no que é relevante no projeto. Mas devo dizer que a minha naïvité é realmente assombrosa. Pois o que temos visto é que as Licenças Prévias têm sido consideradas o coração do licenciamento ambiental e não um simples sinal verde para o prosseguimento do planejamento, como era a concepção original. Não raras vezes, até mesmo estudos Prévios de Impacto Ambiental são exigidos para a concessão das licenças prévias. A conseqüência é que as Licenças de Instalação e de Operação têm os seus conteúdos enormemente esvaziados e, muitas vezes, são meras inutilidades. A lei de concessões florestais, por exemplo, praticamente aboliu a LI, o que me pareceu bastante sensato no contexto específico daquele texto normativo. Aliás, a LI que “autoriza o inicio da implantação” é pouco mais do que uma licença de obra que, tradicionalmente, é expedida pelas prefeituras. Um exemplo dramático do que se fala é o caso das hidrelétricas do Rio Madeira que, provavelmente, nunca serão implantadas tal a confusão. A atuação correta, na hipótese, era simplesmente não aceitar o requerimento de licenciamento, caso a região pretendida não estivesse contemplada no Zoneamento Ecológico Econômico como destinada para tal atividade.
Penso que um dos pressupostos do licenciamento ambiental é a possibilidade de execução do projeto, haja vista que somente atividades lícitas são levadas ao licenciamento. O que o licenciamento fará é dizer como o projeto deverá ser desenvolvido e operado, indicando os bens ambientais que ele deve buscar proteger. Assim, a Licença Prévia deve ter por escopo examinar se, em determinado lugar, tal empreendimento é possível em tese. Nada além disto. Porém dado o fato de que o chamado ZEE é uma aspiração, o licenciamento acaba assumindo-lhe o papel, o que acarreta todas as mazelas já conhecidas.
Se examinarmos os chamados leilões de energia nova veremos que a LP é um dos requisitos para que uma empresa possa concorrer nos leilões. É uma situação paradoxal, pois se entendermos que os estudos ambientais devem ser realizados em tal fase poderemos ter a situação de alguém ter realizado estudos para algo que nunca será implantado. É claro que existe o risco do negócio, mas neste caso, a realidade é que não passa de um simples desperdício de recursos. Evidentemente que estudos realizados sob tal “pressão” têm uma qualidade muito diferente daqueles que seriam realizados após a “certeza” de que o empreendedor poderá levar o projeto à frente, justificando-se os gastos.
A Licença Ambiental, diante de todos os percalços do licenciamento deixou de ser um documento e passou a ser um ativo. Em muitos meios a licença passou a ser considerada uma “golden share” o que, francamente, é um absurdo. Isto faz com que o licenciamento se transforme em uma verdadeira guerra, sem uma Convenção de Genebra que possa definir as regras aplicáveis. Como procedimento administrativo, as normas aplicáveis ao licenciamento ambiental ainda são muito pouco claras e dependem, em grande parte, do subjetivismo do órgão licenciante.
Para a chamada “sociedade civil” e os “setores organizados”, o licenciamento não é menos confuso. Buscando se vestir com uma roupa “democrática”, o licenciamento ambiental, pelo menos em seu modelo federal, não tem qualquer elemento capaz de gerar uma efetiva participação comunitária. Não há qualquer previsão legal para a intervenção de terceiras partes no procedimento de licenciamento ambiental, o que é ruim para a sociedade e para os empreendedores, pois sempre existe a ameaça do “fator surpresa”, como potencial intervenção capaz de paralisar os processos de licenciamento ambiental, suspender licenças concedidas e tudo mais. Julgo muito importante que, à semelhança da lei 8.974 – processo administrativo federal -, seja elaborada uma lei para o licenciamento ambiental que contemple prazos e formas de intervenção. Se analisarmos as chamadas audiências públicas veremos que elas estão de cabeça para baixo. A audiência pública, quando convocada está topologicamente situada no fim do procedimento de licenciamento ambiental, servindo de momento para debate dos estudos já existentes nos autos do licenciamento. O ideal seria que o Termo de Referência – documento que indica os estudos que a Administração exigirá do empreendedor – fosse submetido à Audiência Pública (como ocorre no Estado do Espírito Santo), pois nesta hipótese, a sociedade poderia sugerir estudos e preocupações a serem observados nos relatórios ambientais necessários para a concessão da licença. De que adianta a participação em uma audiência pública quando todos os estudos já estão realizados? Também para o empreendedor a fórmula é ruim. Pois, ninguém está livre de uma surpresa de última hora.
É necessário que as terceiras partes, y compris o MP tenham regras para intervir no procedimento de licenciamento ambiental, com prazos e momentos precisos, com vistas a que se possa assegurar que a Licença Ambiental, quando concedida, possa ser prestigiada, pois fruto de um procedimento aberto e no qual realmente haja segurança jurídica, o que hoje é um simples desejo. Sem a definição clara dos procedimentos administrativos continuaremos navegando em mares turbulentos e sujeitos a todo tipo de borrasca.
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