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Estrada ao longo do tempo

Desde sua abertura, até o séc. XX, quando foi usada por legalistas em 1932, a estrada Cesarea transporta uma história que precisa ser redescoberta e preservada.

25 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

Era árdua a viagem do café pela Estrada Cesarea. Além do trajeto difícil e íngreme, o meio de transporte não era dos mais modernos e eficientes. Pelo relato do alemão Burmeister, que visitou o Brasil em 1850, pode-se ter idéia do que era uma empreitada de escoamento da produção em lombo de burro: “O animal de carga não leva bridão mas cabresto. Carrega no lombo uma cangalha alta, cuidadosamente forrada de palha, sob a qual se põe ainda uma cobertura de vime envolvida em uma tira de linho. Esta cobertura fica em contacto direto com o pêlo do animal. Na cangalha forrada de couro de vaca, há duas saliências, feitas de madeira, protegidas também com couro, nas quais se suspendem os fardos. Uma forte correia que prende tudo, passa pela barriga do animal. A carga não deve ultrapassar o peso de 300 libras e uma besta assim equipada percorre três a quatro milhas por dia. Quem quiser viajar com maior rapidez deve diminuir o pêso ou tomar dois animais, a fim de poder passar, depois de andar três milhas a carga de um para outro animal. Em geral, somente de manhã se viaja; ao meio dia, se procura um pouso, onde, com os animais, se passa a tarde tôda. Depois de aliviada a carga, a besta recebe sua ração de milho e é solta. Na manhã seguinte, busca-se novamente o animal, que, depois de receber nova ração de milho, é carregado e a viajem recomeça”.

As tropas de mulas carregadas com café desciam a Estrada Cesarea – e suas congêneres de Angra, Mangaratiba e Parati – divididas em grupos de seis animais, estando cada um desses ajuntamentos sob a responsabilidade de um tocador escravo que o acompanhava a pé. Esses grupos podiam somar várias dezenas, sob a liderança de um arrieiro, em geral um mulato liberto que, além de representar o fazendeiro e supervisionar os tocadores, tinha a obrigação de zelar pela saúde dos animais.

Tanta mão-de-obra custava dinheiro, pois tirava escravos das plantações. Isto, quando somado ao custo adicional imposto pelas perdas de animais e mercadorias que soçobravam nos barrancos escorregadios das íngremes trilhas que desciam Bocaina abaixo, causava aos fazendeiros grande prejuízo. Assim, foi com regozijo que, em fins da década de 1870, comemorou-se a chegada da estrada de ferro ao Vale do Paraíba. Em poucos meses, quase todo o café antes carregado rumo à baía da Ilha Grande em longas tropas de muares, passou a descer diretamente ao Rio de Janeiro nos vagões da ferrovia.

Alguns anos depois, em 1888, com a Abolição da escravatura, o sistema econômico do Vale do Paraíba ruiu. Os campos ficaram sem escravos para cultivá-los, os caminhos deixaram de ser percorridos e as cidades da baixada litorânea transformaram-se em povoados fantasmas. O pouco uso que restara às antigas trilhas cessou por completo. A Estrada Cesárea foi abandonada.

Parati, Angra dos Reis e Mambucaba, sem terem mais ligação terrestre transitável com os grandes centros, pararam no tempo, cristalizando-se. Apenas um ou outro sertanejo continuou se servindo daquelas outrora engarrafadas trilhas.

No século XX, a Revolução Constitucionalista de 1932 movimentou novamente, ainda que por breve período, essas veredas. São José do Barreiro foi uma das principais frentes de combate. Soldados legalistas subiram a antiga Trilha do Facão. Houve escaramuças em Cunha. Cogitou-se surpreender os revoltosos paulistas, mandando-se Estrada Cesarea acima uma tropa do Governo com o objetivo de flanqueá-los. Não foi necessário. Barreiro caiu antes que se pudesse planejar melhor a operação.

Acabada a briga fratricida, voltou o país à tarefa de buscar seu desenvolvimento. No que toca à baía da Ilha Grande, progresso traduziu-se por comunicação com o além-Bocaina. A trilha ligando Angra dos Reis ao Vale do Paraíba já havia sumido em 1930, para dar seu leito a uma estrada de rodagem. Logo também desapareceria o caminho colonial de Mangaratiba e, em 1954, seria a vez da lendária Trilha do Facão, sacrificada para que, sobre seu traçado, fosse erigida rodovia que salvasse Parati do isolamento. Como testemunho intacto de dois, quiçá três, séculos de História da Viação Brasileira, restou apenas a velha Estrada Cesarea. Até hoje ela espera ser tratada como monumento histórico nacional. Aguarda pacientemente, esperançosa de ser ainda um dia reconhecida por relevantes serviços prestados e pronta a oferecer, in loco, insubstituíveis aulas do rico passado deste país.

Para isso, contudo, é necessário mais do que um Plano de Manejo, como o que acabou de ser concluído para o Parque Nacional da Bocaina. Por mais que a notícia da conclusão do Plano seja auspiciosa e mereça ser objeto de comemoração, no que toca à Estrada Cesarea, é imperioso planejar menos e manejar (muito) mais.

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