O Rio de Janeiro sedia entre os dias 7 e 11 de novembro o I Congresso Brasileiro de Trilhas. O evento, organizado por Flávio Zen Mello, da Techonogaia/Infotrilhas é pioneiro no país e já vem tarde. Quando o assunto é trilhas, o Brasil está na idade da pedra. Com efeito, se compararmos o estado das trilhas existentes há 40 anos em Serra dos Órgãos, no Parque Nacional da Floresta da Tijuca e em Itatiaia com o presente, podemos dizer que o Brasil andou para trás no manejo de suas picadas ecológicas. Não temos no país nenhuma trilha de longo curso sinalizada, não temos setores de manejo de trilhas institucionalizados na estrutura administrativa dos Parques Nacionais, não temos nenhuma trilha dedicada à prática do “mountain bike”.
Nesse sentido, o Congresso é um grande avanço. Vai reunir os maiores especialistas do país no tema que, ao longo de quase uma semana, vão debater os rumos das trilhas do país sob os aspectos da engenharia (manejo, planejamento, construção e manutenção); do usuário (trilhas interpretativas, trilhas guiadas, educação ambiental em trilhas etc); dos impactos sobre a fauna, flora e paisagem; e da importância das trilhas como equipamento para a indústria do (eco) turismo.
Do debate, que contará com a comunidade acadêmica e funcionários de agências administradoras de unidades de conservação, devem sair sugestões para um melhor manejo das trilhas brasileiras. É preciso, entretanto, cuidado para que a discussão não valorise demasiadamente modelos matemáticos cujos resultados, quando aplicados, supostamente resolvem o manejo das trilhas.
Refiro-me ao conceito de “capacidade de carga” ou”capacitade de suporte” que foi desenvolvido sobretudo na Costa Rica ao longo das décadas 1980 e 1990. Um dos seus maiores defensores, o professor Cifuentes, após anos de estudos propôs minimizar o impacto do turismo sobre o uso das trilhas estabelecendo um limite diário de pessoas que por ela podem transitar. Cifuentes chegou ao quantitativo por meio de uma fórmula complicada, que inclui variáveis tais como o tipo de solo da trilha e sua susceptibilidade à compactação, a distância a ser caminhada, o potencial de encharcamento da trilha após chuvas e outros. Por seu método, que tem alguns modelos similares propostos por outros pesquisadores e discípulos, teoricamente fica fácil proteger uma trilha. Basta aplicar a fórmula matématica, calcular qual é a capacidade de suporte e limitar o número de usuários àquele montante.
Na prática, contudo, a teoria é outra. Como pude comprovar em visitas técnicas a diversos parques norte-americanos, australianos e sul-africanos, é impossível calcular matematicamente o impacto causado em uma trilha por uma pessoa pela simples razão de que um adolescente querendo impressionar uma potencial namorada causa dez vezes mais degradação do que 40 pessoas que caminham de forma ecologicamente correta, sem pegar atalhos, pendurar-se em árvores ou remover espécimes de fauna e flora.
Nos principais Parques do mundo, manejo de trilhas é coisa séria e não recorre a cálculos de prancheta. Pelo contrário, é feito na própria trilha mediante acompanhamento visual dos impactos e muito suor. Envolve pás, picaretas e trabalho braçal. Consiste em manter abertos os canais de drenagem da água, colocação de degraus, sinalização interpretativa, educativa e direcional, planejamento de rotas de modo a evitar locais frágeis ou onde há concentração de espécies endêmicas e muitas outras considerações concretas.
Sob esse aspecto prático, existem no próprio Rio de Janeiro, sede do Congresso, três experiências bem sucedidas de manejo de trilhas. A primeira, envolvendo uma pequena e íngreme picada no Parque da Catacumba no Bairro da Lagoa, resultou de parceria entre a Secretaria de Meio Ambiente do Rio de Janeiro e a Univercidade. Implantada em 1999, a Trilha da Catacumba recuperou uma picada íngreme, ligando o Parque Carlos Lacerda a um dos mais belos mirantes da Zona Sul da cidade. Sua implementação envolveu a instalação de escadas em trechos susceptíveis de erosão, de parapeitos em mirantes expostos, de sinalização e de bancos ao longo do caminho. Estudantes de biologia da Univercidade passaram a monitorar a fauna e flora e foi implantado um programa de substituição de capim-colonião por espécies de Mata Atlântica, como o cedro, o pau-d´álho, o palmiteiro e o ipê verde. Após sete anos, a trilha já foi visitada por mais de 50 mil pessoas e seu sucesso foi reconhecido inclusive pela Fundação o Boticário que a apoiou financeiramente.
Outro projeto interessante é o das trilhas circulares Major Archer e Castro Maya que, apenas com o trabalho de voluntários e de funcionários do Parque Nacional da Floresta da Tijuca, recuperou e sinalizou mais de 50 quilômetros de trilhas, formando no processo duas rotas circulares de longo curso. Exceto pelas horas-homem dos funcionários da Floresta, o projeto não custou um centavo aos cofres públicos e foi feito de acordo com princípios testados e usados rotineiramente em países que têm como hábito a saudável prática de manejar suas trilhas.
Seu planejamento aproveitou caminhos, atrações e infraestrutura previamente existentes na Floresta da Tijuca. Sua implantação foi bem sucedida e resultou em um aumento imediato de visitação, combinado a substancial redução da degradação ambiental, advinda das más práticas de excursionismo de alto impacto outrora em prática. Como exemplo de bons resultados podem ser citados os quase 10 km lineares de trilhas e atalhos erosivos fechados e que se encontram hoje em avançado estado de regeneração e o fato de que, há seis anos, não há praticamente mais casos de excursionistas perdidos nas matas da Tijuca, número que chegava às dezenas em anos anteriores à implementação das trilhas.
Por fim, ainda no Rio de Janeiro há a experiência do Grupo Terra Limpa, liderado por Ivan Amaral (vide minha coluna Síndrome do Escorpião publicada aqui em O Eco) que fez vários cursos de manejo de trilhas na Fundação O Boticário. O Grupo Terra Limpa tem se dedicado à manutenção de trilhas nos Parques Nacionais e Estaduais do Rio de Janeiro. Seu trabalho, completamente voluntário, consiste em executar o que o poder público deveria fazer mais não faz: colocação de sinalização, confecção de degraus, fechamento de atalhos, manunteção da drenagem, etc. São pequenas intervenções que por si sós já resolvem praticamente todos os problemas da grande maioria das trilhas.
O I Congresso Brasileiro de Trilhas Brasileiro de Trilhas, no entanto, é muito maior que o Rio de Janeiro. Entre os trabalhos a serem apresentados estão experiências de vários cantos do Brasil e até o caso da trilha de longo curso Sendero de Chile, projetada para ter 8.500 quilômetros de extensão e cortar o país de Norte a Sul. Por isso mesmo o evento constitui-se em foro com potencial para modificar as políticas públicas do Brasil em termos de trilhas. Nesse sentido, é importante ressaltar que o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente estão atentos a seus resultados. Camila Rodrigues, responsável pela área de uso público do Ministério, está determinada a melhorar o manejo de trilhas nas Unidades de Conservação brasileiras. Valmir Ortega, Diretor de Ecossitemas do IBAMA, prometeu trilhar na mesma direção. Ambos já deram repetidas mostras de que são funcionários sérios e engajados e vão estar de olho nos resultados do Congresso.
Está, portanto, armada a barraca em que podemos dormir e sonhar com o caminho que vamos trilhar amanhã. A iniciativa de Flávio Zen Mello tem tudo para ultrapassar o campo dos sonhos e se transformar em realidade nos Campos de Altitude, no Cerrado, na Mata Atlântica e em todos os ecossistemas brasileiros.
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