Na minha infância costumava passar as férias em Ubatuba, litoral norte de São Paulo. Naquela época as férias escolares eram longas. Como a família era grande e não havia a Rio-Santos, a Kombi do meu pai demorava quase meio dia para chegar na Praia da Enseada. Também não havia luz elétrica e a geladeira era a gás. Me lembro do cheiro de querosene dos lampiões quando eu e a molecada da praia íamos caçar siri em noite de lua cheia, na maré baixa.
No verão de 1962, eu tinha 8 anos. Era início de dezembro, quando meu pai me acordou às 7 horas da manhã insistindo para que eu fosse até a praia em frente de casa. Queria me dar um presente. Nós tínhamos chegado tarde na noite anterior, e após descarregar todas as tralhas e provisões para 3 meses, eu estava morto de sono. Mas a palavra “presente” era tudo o que uma criança de 8 anos precisava para vencer a preguiça. Quando as minhas pupilas se contraíram para acomodar o excesso de luz solar, vi uma canoa de madeira que meu pai havia encomendado, um mês antes do início das férias ao Fabiano, um velho amigo pescador e antigo proprietário do terreno.
A canoa tinha uns 3 metros de comprimento, e havia sido feita com um único tronco de uma árvore que, se já não está extinta, deve estar ameaçada como várias outras espécies vegetais e animais da Mata Atlântica. Desde pequeno eu sempre tive uma certa afinidade com água e atividades náuticas e não foi difícil sair remando naquela “piroga” escura e cheirando a óleo queimado (para conservar a madeira ! dizia o Fabiano).
Aquela canoa também despertou minha vocação para a pesquisa marinha. Durante aquelas férias, costumava sair bem cedo, atravessando a arrebentação ainda fraca das manhãs de verão e remar por uns 800 metros até o costão rochoso que separava a Enseada do Perequê Mirim. A excursão normalmente demorava até baixar a fome ao meio dia ou até mais tarde quando levava algumas bananas, bolacha de água-e-sal e água. Meus equipamentos eram máscara, “snorkel”, “pé-de-pato” e fisga de 3 pontas. Prendia a respiração e mergulhava por entre as pedras. Me sentia como o Mike Nelson do seriado Viagem Submarina.
Mas o fundo marinho não era P&B. Ao contrário, a diversidade de cores, formas e tamanhos dos animais e das algas, entre a superfície e os 5 metros, que era o máximo que meu fôlego permitia, eram surpreendentes e intrigantes para um menino de 8 anos. Eram esponjas, anêmonas, estrelas, caracóis e ouriços. Quando dava tempo, pegava os animais na mão por alguns segundos e soltava ou levava para a canoa.
Quando subia para abastecer o pulmão, via cardumes de peixe agulha e águas vivas transparentes. Às vezes surgia alguma coisa que me dava cagaço até ser identificada, principalmente nos dias em que a água estava mais turva após as chuvas.
Parte II
Normalmente era um peixe um pouco maior, uma tartaruga ou um pedaço de Sargassum, a alga marinha mais comum da região. Até os 8 anos não me lembro de nada que me fizesse sentir tão livre e tão dono do mundo. Aquele era meu universo aquático. No final de inúmeras férias consecutivas, eu conhecia cada canto, cada pedra e cada buraco daqueles 300 metros de costeira.
A experiência em Ubatuba foi forte e influenciou meu rumo profissional. Naquela época não se falava em proteção ambiental de qualquer parte do território nacional, muito menos do mar, cuja extensão e recursos eram considerados “inesgotáveis”. Me formei biólogo e hoje sou oceanógrafo e, obviamente, minha experiência com pesquisa marinha ultrapassou há muito meu universo infantil. A costa brasileira tem aproximadamente 8500 Km de extensão, ao longo dos quais coexistem praticamente todos os ecossistemas marinhos. São praias arenosas, costões rochosos, lagoas costeiras, manguezais, recifes de algas calcárias e corais, estuários de pequeno e grande porte, ilhas oceânicas e o único atol do Atlântico Sul, o Atol das Rocas.
A diversidade de paisagens e de comunidades biológicas é uma das maiores do mundo e suporta grande parte da socioeconomia costeira. Cerca de 70% da população brasileira vive perto do mar e, direta ou indiretamente, utiliza seus recursos de diversas formas. Quem passa férias no litoral sabe disso. A pesca artesanal, esportiva e industrial, o turismo e os recursos minerais, incluindo petróleo, transporte naval, obras oceânicas e construções ao longo da orla marítima representam uma fração significativa do PIB nacional.
Portanto, se o Brasil não tivesse mar, nossa vida seria completamente diferente. E eu digo que seria pior. Desde os tempos de universitário, venho acompanhando de perto o impacto negativo que o desenvolvimento socioeconômico dos últimos 30 anos provocou, e ainda provoca, em nosso mar. A total falta de reconhecimento por parte de quase todas as esferas da administração pública, dos políticos, empresários e educadores sobre a importância do mar para a sociedade brasileira ameaça à integridade física e biológica dos ecossistemas marinhos.
Historicamente, o impacto ambiental na zona costeira começou com a invasão de espécies exóticas agarradas no casco das caravelas. Assim que sentiam o decréscimo da salinidade na costa brasileira, lançavam suas larvas invasoras, contaminando a teia alimentar local. Hoje fazem parte da paisagem submarina de nosso litoral.
Seguiu-se o início do desmatamento da Mata Atlântica no período colonial e, mais recentemente, das margens dos rios que desaguam no mar. Com a expansão urbana e industrial veio a poluição. As baías de Todos os Santos (BA), Guanabara e Baia de Santos, ainda parcialmente margeadas por manguezais moribundos e fedorentos, são as mais comprometidas do ponto de vista ambiental pela quantidade de contaminantes orgânicos e inorgânicos lançados anualmente, principalmente metais pesados, que se acumulam no sedimento e na teia alimentar.
Parte III
A vulnerabilidade desses ambientes está associada à circulação. Em baías, a água circula muito menos se comparadas ao mar aberto e os contaminantes se acumulam em níveis intoleráveis para a saúde do ecossistema marinho. Só sobrevivem os mais resistentes, denominados “oportunistas” pelos biólogos marinhos, que dominam as comunidades do fundo, diminuindo a diversidade de espécies. As baías de Paranaguá (PR), Babitonga (SC), Baía Norte em Florianópolis e Lagoa dos Patos também começam a ser ameaçadas pela expansão urbana e portuária dos últimos anos.
Manguezais são fundamentais para a sobrevivência de inúmeras espécies de peixes e crustáceos na zona costeira. São a principal fonte de recursos e meio de vida de inúmeras famílias de pescadores artesanais. Os manguezais foram sempre ameaçados pela expansão urbana na zona costeira e agora, apesar de protegidos por lei federal, estão sendo devastados no Nordeste pela maricultura do camarão do Pacífico, uma espécie exótica que já foi encontrada nos arrastos de pesca (download para o arquivo Impacto no Manguezal.pdf).
Não adianta alertar os maricultores, na maioria industriais, sobre o que aconteceu no Equador, que cometeu o erro de devastar seus manguezais para substitui-los por fazendas de camarão. Como nas monoculturas, o desequilíbrio ambiental trouxe doenças que devastaram grande parte da produção, além de prejudicar a pesca artesanal.
Os estuários concentram a drenagem continental no mar. Todos os erros cometidos contra os habitats terrestres e aquáticos ao longo de todas (sem exceção) as principais bacias hidrográficas brasileiras, são automaticamente transferidos para o mar. Pesticidas e herbicidas, detergentes e esgoto domésticos são levados para o mar. O excesso de sedimento na água dos rios devido à erosão provocada pelo desmatamento das margens, sufoca os recifes de corais e assoreia substratos outrora ricos em diversidade biológica. Na década de 70, o Programa Proálcool acelerou ainda mais o desmatamento e o aumento da carga de sedimentos na costa, substituindo a Mata Atlântica por monoculturas de cana-de-açúcar.
A perda de biodiversidade como consequência de todos esses impactos antropogênicos, somada à pesca desordenada, excessiva e predatória esgota cada vez mais os recursos vivos marinhos. Principalmente o arrasto de camarão, que revolve totalmente o sedimento destruindo tudo no caminho para capturar esse maldito crustáceo, cujo valor comercial causa a devastação de toda biodiversidade do fundo. A rede não seleciona e captura tudo pela frente, deixando um rastro de desordem e devastação biológica catastrófica (guardando as devidas proporções) do ponto de vista ambiental.
O chamado “by-catch”, também conhecido como o descarte da pesca de arrasto, são adultos e juvenis de invertebrados e peixes de fundo, importantes para a pesca artesanal. Na região sul do Brasil o descarte varia entre 50 e 70% da biomassa total capturada pela rede. Ou seja, para pegar uns poucos camarões destrói-se todo o resto do fundo do mar, inclusive a integridade física e biológica necessária para o bendito camarão. O arrasto de fundo é a maneira mais estúpida de exploração dos recursos marinhos e deveria ser banido da plataforma continental do país. Quem vai pagar a conta da destruição que vem sendo provocada pelo arrasto nos últimos 30 anos é a população diretamente envolvida com a socioeconomia costeira.
Parte IV
E o problema vai ainda mais longe. No mar, assim como no ar, não existem barreiras físicas suficientemente fortes para evitar a dispersão de contaminantes em qualquer escala espacial e temporal. Ainda que lentamente, o mar circula em escala global. A circulação de superfície, representada pelas correntes marinhas, é provocada pelos ventos. A circulação profunda, mais lenta e geograficamente mais abrangente, é provocada por diferenças de densidade entre as massas de água que ocupam as principais bacias oceânicas. Entre os cientistas oceanógrafos é conhecida como “circulação termo-halina”; nos polos a água é gelada e mais salgada, portanto mais densa, ou seja, mais pesada. A massa de água polar afunda e escorrega pelo assoalho marinho do Continente Antártico em direção ao norte, ressurgindo no lado direito dos oceanos, nas latitudes tropicais do Peru e da Namíbia no Hemisfério Sul, e dos Estados Unidos no Hemisfério Norte.
Portanto, nossa responsabilidade com a vida marinha e com a saúde dos oceanos não termina na porta de casa, ou melhor, no nosso quintal, já que o Brasil dá as costas para o mar. A poluição se estende além das fronteiras nacionais, podendo prejudicar a economia e a saúde de comunidades costeiras dos países vizinhos. Talvez o melhor exemplo seja o DDT. Esse pesticida sintético amplamente usado na agricultura americana e no controle do mosquito da malária nas décadas de 50 e 60, contaminou a teia alimentar, os hambúrgueres, a população americana, e até os peixes na Antártica.
Seu uso foi proibido nos EUA em 1970. A gravidade do acidente de Chernobyl em abril de 1986 foi exaustivamente comentada no noticiário internacional. Os “Chernobyls” do mar talvez sejam piores. Não os catastróficos, como os recentes derrames acidentais de óleo, mas o processo acumulativo da contaminação crônica de toda a zona costeira. Essa é a pior forma de contaminação, por que deforma aos poucos o ecossistema costeiro sem que ninguém perceba. Acontece com frequência em todas as plataformas continentais, principalmente na dos países mais industrializados. Tudo bem, temos que conviver com o progresso. Mas também não podemos continuar a tapar o sol com a peneira. Com exceção dos oceanógrafos, seus equipamentos e sensores físicos e químicos, somos totalmente cegos no mar e não percebemos a gravidade da contaminação dos ambientes marinhos a nível local, regional e global. A quantidade de porcaria que os estuários brasileiros jogam no mar anualmente é imensurável e infelizmente passa desapercebida durante a maior parte de nossa vida quotidiana. Parece que não nos afeta diretamente. Mas será que não, mesmo !?
Estive recentemente em Ubatuba e, por curiosidade ou por saudosismo, mergulhei nas mesmas pedras da minha infância, quase 40 anos depois. Não me lembrava mais dos detalhes, dos cantos, das pedras, dos buracos e das trilhas de areia por entre as pedras. Sei que eles ainda estão lá. Mas as cores e as formas de vida daqueles 300 metros de costeira já não são as mesmas. Aquele universo aquático em Ubatuba só existe na memória dos meus 8 anos.
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