Aparentemente a Biosfera, isto é, o conjunto de todos os organismos vivos de nosso planeta, depende de ciclos contínuos e equilibrados no meio físico, mantidos permanentemente em todas as escalas temporais e espaciais. Na escala planetária, pelo menos até onde nossa mente imagina o que seja o infinito, dependemos dos ciclos de translação da Terra em torno do Sol, e de rotação da Terra em torno de si mesma. Desses dependem os ciclos sazonais climáticos e o regime meteorológico global. Na sequência, esses controlam os ciclos de todos os elementos químicos (Hidrogênio, Carbono, Oxigênio, Nitrogênio, etc.) que, por força da gravidade terrestre, são mantidos em nosso planeta, e com os quais temos uma relação profundamente simbiótica. Em linguagem técnica, são conhecidos como “ciclos biogeoquímicos”, porque são mantidos em função de processos e compartimentos biológicos, geológicos e químicos. Entretanto, esses ciclos não existiriam se não houvesse a circulação da água em nosso planeta. A água é o sangue da Terra, como disse Lord Selborne em seu livro The ethics of freshwater use: a survey, publicado pela UNESCO em 2001.
Os elementos químicos essenciais à vida são chamados “nutrientes”. Eles dissolvem-se em água e por ela são transportados para dentro ou para fora das plantas e animais através da absorção pelas raízes, ingestão e transpiração. Os ecossistemas terrestres são controlados pela disponibilidade de água na fase líquida. Na falta de água na fase líquida, tem-se um deserto. Digo na fase líquida porque nos ecossistemas continentais da Antártica existe 90% da água doce do planeta, mas congelada e, portanto, não disponível. A falta de água na fase líquida não é problema nos ecossistemas marinhos. Aqui o problema é apenas a circulação. Mares com pouca circulação tendem a ser pobres em vida marinha. O Ciclo Hidrológico é , portanto, a circulação da água em escala global, e representa o principal cenário de fundo sobre o qual a vida se desenvolve em nosso planeta.
Do ponto de vista ecológico, as necessidades básicas para a sobrevivência de qualquer ser vivo começa com o alimento (o que inclui a água), proteção e reprodução. Esses são conceitos simples mas ao mesmo tempo complexos quando se trata de garanti-los para cada ser vivo. O Ciclo Hidrológico, por exemplo, é tão importante no nosso cotidiano que logo aparece no currículo do ensino fundamental de qualquer país. Obviamente fazemos parte desse ciclo uma vez que, no mínimo, 65% do nosso corpo é formado por água (83% do sangue, 80% do cérebro, 75% dos músculos e 30% dos ossos). As baratas são mais secas (60%) e as pererecas são mais úmidas (78%). Os organismos aquáticos chegam a mais de 90% de seu corpo constituído por pura água, exemplo as águas vivas.
Desnecessário tentar convencer alguém sobre o óbvio. Porque o que é importante, para não dizer vital, passa desapercebido no dia-a-dia. E é aí que mora o perigo. Ninguém mais se preocupa em entender porque 1 mais 1 são 2 (os matemáticos provam isso). Poucos se preocupam de onde vem a água que usam diariamente e nem para onde ela vai quando sai pelo ralo. Quando nossas necessidades básicas estão plenamente satisfeitas, nossas preocupações pulam para o patamar seguinte, no mesmo nível do conforto e, dependendo do nível socioeconômico, até os limites do prazer.
Mas o fato é que sem água não haveria prazer nenhum em viver e fazer parte da Biosfera terrestre. Mostre um McLanche Feliz e um galão com 10 litros de água limpinha e fresquinha para uma criança do polígono da seca no Nordeste. Não me arrisco a adivinhar o que ela irá escolher, tendo em vista o estágio atual da nossa globalização econômica e o poder mercadológico. Mas, sem dúvida, levado mais pelo instinto de sobrevivência do que pelo prazer, o pequeno Severino vai refletir alguns segundos a mais do que o que normalmente levaria uma criança culturalmente urbanizada.
Normalmente diz-se que um verdadeiro ciclo não tem começo, meio ou fim. Pode-se iniciar o ciclo a partir de qualquer ponto, porque todos as etapas são partes essenciais do processo cíclico. Mas para simplificar, vamos iniciar a descrição do Ciclo Hidrológico a partir do mar. Aristóteles (400 a.C.) não concordava com os paradigmas divinos sobre a origem dos lagos e rios, e foi o primeiro a perceber que o mar tinha alguma coisa a ver com as chuvas. E essas com a formação das nascentes e rios. Ou seja, que era sempre a “mesma água” que passava por um determinado ponto, em um ciclo interminável. Suas suspeitas começaram quando ele percebeu que, apesar de os rios correrem para o mar, o Mar Egeu nunca “transbordava”. A descrição mais detalhada de um ciclo hidrológico completo foi feita séculos mais tarde por Leonardo da Vinci, em 1500.
Começando então pelo mar, (i) a água do mar evapora pela ação dos raios solares, (ii) o vapor de água se condensa, (iii) formam-se as nuvens, em seguida (iv) as chuvas que caem diretamente no mar ou em terra, onde (v) penetram no solo, (vi) formam os lençóis freáticos, (vii) as nascentes e (viii) os rios que (ix) desembocam no mar. Existem desvios dessa via principal, como a saída de água do ciclo para reservatórios específicos e processos biológicos, mas que, indiretamente e em escalas de tempo diferentes, acabam retornando para a via cíclica principal. Por exemplo, do solo, em vez de formar os lençóis freáticos, a água é absorvida pelas raízes das plantas, entrando no compartimento biológico e permeando pela teia alimentar até sair pela transpiração e regeneração da matéria orgânica morta, de volta para via principal. Ou então o lençol freático forma um lago ao invés de um rio. Ou ainda a água forma grandes reservatórios subterrâneos, denominados aquíferos, semelhante aos reservatórios de petróleo.
Mas cedo ou tarde a água volta para o mar. Esta interação entre água doce e água salgada na zona costeira tem assume diversas formas. A água doce dilui a água salgada diretamente pelas chuvas, pela penetração através do lençol freático, pela drenagem fragmentada ao longo da costa ou visivelmente, através dos estuários. Esses ecossistemas costeiros são importantes do ponto de vista ecológico, histórico, cultural e socioeconômico para o Brasil e o mundo. São caracterizados por gradientes de salinidade desde a fonte de água doce até o mar adjacente. Para ilustrar melhor o gradiente salino, imagine que você está navegando em um rio a favor da corrente, na direção do mar e, de tempos em tempo, pega um pouco de água de superfície e experimenta para sentir o gosto (não faça isso nos rios Guaíba, Cubatão, Capiberibe, etc). Ainda no rio a água é totalmente doce mas, a partir de um certo ponto, onde começa o que nós chamamos de “estuário” propriamente dito, a água vai ficando cada vez mais salgada até você sair na foz e entrar mar adentro, onde a salinidade é máxima. Desse modo você cruzou o gradiente de salinidade desse estuário que em alguns casos ocupa uma pequena área geográfica e em outros a distância entre os extremos de água doce e água salgada chega a quilômetros. Isso depende de vários fatores, mas os principais são o volume de água doce (isto é, o tamanho do rio) e a circulação de maré. Esses fatores principais determinam o grau de mistura entre a água do rio e a água do mar.
Existem situações onde o gradiente de salinidade se estende mar adentro, ocupando áreas distantes sobre a plataforma continental, já fora da desembocadura do rio. Na foz do Rio Amazonas, por exemplo, ocorre um caso extremo e único em todo o mundo. O volume de água desembocada no mar é tão grande (em média 1.800.000 metros cúbicos por segundo) que o gradiente estuarino acontece a quilômetros mar adentro. Chega a 200 km na Região Amazônica e resquícios da água doce ainda são detectados até próximo a Cuba, no Mar do Caribe. Situação semelhante ocorre no extremo sul do Brasil, onde o maior aporte de água doce continental vem do Rio da Plata com menor contribuição da Lagoa dos Patos. Ambos lançam cerca de 28 000 mil metros cúbicos por segundo de água doce no Oceano Atlântico Sul Ocidental, que se desloca rumo ao norte, chegando até o sul do Estado de São Paulo no inverno, impulsionada pelos ventos de sudoeste.
O que torna as regiões costeiras férteis e mais ricas em recursos pesqueiros é o aporte de nutrientes e de material biogênico oriundo da bacia de drenagem dos rios. Como o adubo na agricultura, os nutrientes fertilizam a superfície do mar adjacente, ao mesmo tempo que o material orgânico particulado sedimenta, formando um depósito de detrito orgânico consumido por invertebrados da base da teia alimentar marinha. O resultado é a abundância da quantidade de peixes, moluscos e crustáceos explorados pelas comunidades de pescadores artesanais e industriais.
Existe uma variação natural da produtividade biológica da zona costeira em função do regime hídrico de cada região. No Nordeste, por exemplo, a zona costeira além de ser mais fertilizada durante o período chuvoso entre maio até setembro (+ ou -) também tem mais larvas de camarões e caranguejos. O período também é propício à alimentação das ostras, sururus e bacucus, iguarias dos estuários nordestinos, devido ao maior aporte de material biogênico particulado, do qual se alimentam por filtração. O resultado é uma desova mais abundante em outubro, no final do período chuvoso.
Esses são apenas alguns aspectos importantes dessa relação entre drenagem continental de água doce e o mar. Existem inúmeras outras, tão importantes para a pesca e a integridade biológica dos sistemas marinhos costeiros.
No entanto, o equilíbrio dessa relação está sendo pouco a pouco alterado. Além do desmatamento e da poluição na bacia de drenagem dos rios que desembocam no mar, contaminando cada vez mais a zona costeira com entrada excessiva de sedimentos e produtos tóxicos, a alteração do fluxo hídrico e do volume de água dos rios na foz representa um dos piores fatores de alteração dessa relação entre água doce e a água do mar na zona costeira global. É fácil concluir que quando diminui o volume de água doce transportada para a zona costeira, sua fertilidade também diminui além dos problemas geomorfológicos tais como alterações de linha de costa. De acordo com o livro de Lord Selbourne (UNESCO, 2001), em 1986 haviam 36.235 barragens de grande porte , com mais de 15 metros de altura, em todo o mundo, e desde então uma média de 267 novas barragens foram construídas anualmente. Se essa média se manteve, estima-se que até 2006 teremos mais de 41.000 barragens grandes, além das milhares de barragens de médio e pequeno porte.
Essa retenção em massa de água doce nos continentes, somado aos milhares de projetos de transposição que desviam o fluxo hídrico para a agricultura, podem diminuir consideravelmente o fluxo de nutrientes e material orgânico particulado para a zona costeira, além de alterar os gradientes estuarinos naturais e destruir a estabilidade biológica e geológica que evoluíram em função desses gradientes e fluxos. Se isso virar moda, nós terráqueos vamos ter um problema muito sério, talvez irreversível. O ciclo não muda, mas o que muda são as quantidades de água nos reservatórios ao longo do ciclo. A alteração dos padrões globais do ciclo hidrológico. Antes havia mais água doce fluindo para a zona costeira, mas agora encontra-se retida nas barragens. Antes também havia mais água doce nos aquíferos, mas agora devem estar indo para o mar.
No Brasil, o caso mais grave pode ser o da foz do Rio São Francisco. Nos últimos 10 anos as barragens no Médio São Francisco retiveram sedimentos, provocando déficit de areia na foz e erosões graves da linha da costa. O resultado foi o recuo de quase 300 metros ameaçando sumir com o povoado de Cabeço. A região também se tornou menos fértil e locais de pesca tradicionais foram substituídos por outros a montante do rio, cuja desembocadura se saliniza cada vez mais à medida que o volume de água doce diminui. E isso pode se agravar pelo tão polêmico projeto de transposição de suas águas para irrigar o polígono das secas no Nordeste. Dizem que são apenas 26 metros cúbicos a menos na vazão do rio. Só que fazendo as contas isso representa uma perda anual de mais de 800 milhões de metros cúbicos de água para a zona costeira, sem contar com a areia e a matéria orgânica particulada, vitais para os processos de estabilidade geológica e para os recursos pesqueiros da região costeira. Os homens não aprendem, e o “Velho Chico” que se cuide.
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