Na primeira metade do século XIX, a Floresta da Tijuca viveu um duplo movimento, profundamente contraditório. Ao mesmo tempo em que teve início o reconhecimento do seu valor e beleza, através de artistas e cientistas, ocorreu também, com a introdução da cultura do café, uma forte intensificação das queimadas e desmatamentos em muitas das suas encostas. É curioso observar, aliás, que alguns personagens tiveram presença ativa nos dois movimentos.
Em 1808, com a invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas, a família real refugiou-se no Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1821. Este acontecimento marcou uma mudança crucial na vida da cidade, que se tornou sede do império lusitano, teve sua população aumentada em cerca de 20 mil pessoas e sofreu uma brusca abertura cosmopolita.
Nas primeiras décadas do XIX, os portos do país foram franqueados para navios de alguns países estrangeiros, especialmente da Inglaterra e dos Estados Unidos. Através deles chegavam ao Brasil personagens da elite da Europa, ou das colônias européias, que escapavam dos muitos conflitos que se seguiram à Revolução Francesa, inclusive a rebelião dos escravos no atual Haiti, em 1791. É o caso interessantíssimo, por exemplo, do general holandês Dirk Van Hogendorp, ex-aluno da Kant, ex-ajudante de ordens de Napoleão, que, desiludido com a derrota de seu comandante, chegou ao Rio em 1817 e terminou sua vida como ermitão nas matas do Corcovado, onde recebia pouquíssimos visitantes, entre eles o futuro imperador Pedro I, que subia o morro a cavalo para ouvir longas histórias sobre batalhas e estratégias militares…
Os navios trouxeram também artistas e naturalistas de alta qualificação, atraídos mais que tudo pelas grandezas e segredos da Floresta Tropical. As nossas matas, obviamente, não traíram suas expectativas. Nem sequer precisavam viajar para muito longe. As próprias encostas que cercavam a capital já eram suficientes para provocar exclamações como a de Charles Darwin, em 1832: “nada pode ser mais impressionante do que o efeito dessas grandes massas de rocha nua elevando-se de dentro da mais luxuriante vegetação”. Ou ainda “toda forma, todo matiz superava tão completamente em magnificência tudo que o europeu jamais teve em sua terra, que ele não sabe expressar o que sente”.
Mesmo viajantes que permaneceram por mais tempo no país, conhecendo algumas das suas regiões, não deixaram de espantar-se com as belezas da Tijuca. Basta lembrar Johann Emanuel Pohl, em 1817: “para o europeu, a flora das cercanias do Rio de Janeiro traz encantador prazer, quase inebriante. Em seu solo nativo, com força primitiva, desenvolvendo-se colossalmente, mostram-se-lhes aqui famílias inteiras de vegetais dos quais ele apenas conhecia variedades de exemplares raquíticos e o que sua fantasia criara nos mais audazes sonhos de encantamento e pompa da flora”. Ou então Johann Spix e Karl Von Martius, na mesma época, descrevendo a hoje chamada Cascatinha do Taunay: “o espetáculo desse cenário fez-nos lembrar das cascatas de Nápoles e Tivoli, os encantos de natureza parecida, porém muito menos luxuriante. No fundo do vale e perto da queda d’água está uma casita singela, hospitaleira, na qual nos saudou o Sr. Taunay, pintor francês muito respeitável, que, retirado na solidão, vive ali com a família, no seio da bela natureza”.
Essa última menção é muito importante, pois indica um outro aspecto que merece ser comentado. Artistas e naturalistas estrangeiros estabelecidos no país, assim como outros personagens da elite imigrada, passaram a buscar nas montanhas florestadas o seu lugar de residência. Os ares mais saudáveis e frescos das matas, longe da febre amarela e das outras doenças que grassavam nas partes baixas da cidade, atraíam os estrangeiros que viviam na capital. Foi o início do movimento que mais tarde gerou a chamada “Tijuca Imperial”, lugar de moradia de vários expoentes do segundo reinado. A conseqüência natural foi o crescimento das representações da Floresta da Tijuca na literatura e nas artes plásticas.
Vários membros da “Missão Francesa”, um grupo de artistas chamados pela coroa portuguesa em 1816 com o objetivo de aperfeiçoar as belas artes e a arquitetura no Brasil, escolheram as áreas verdes como lugar de habitação e refúgio. É o caso do belo solar construído na Gávea por Auguste-Henri-Victor Grandjean de Montigny. O pintor Nicolas Taunay, como já vimos, foi ainda mais longe, estabelecendo-se no coração do atual Parque Nacional da Tijuca e produzindo várias pinturas de paisagens da região. Obras semelhantes foram elaboradas por Félix Emile Taunay, Maurice Rugendas, Jean-Baptiste Debret, Thomas Ender e outros.
É aqui que podemos observar a contradição mencionada no início da coluna. O próprio Nicolas Taunay, ao tornar-se também produtor de café, participou da gênese de uma forte onda de devastação do mesmo tesouro natural que ele ajudou a valorizar com sua arte. Não foi incomum a existência de personagens que misturaram os papeis de ilustrados e de incendiários.
É o caso, por exemplo, do Conde de Gestas, um nobre francês que se estabeleceu no Brasil em 1807 e chegou a publicar, na revista “O Auxiliador da Industria Nacional”, em 1836, um libelo denominado “Memória sobre os Abusos das derrubadas e cortes de madeiras”. Nesse trabalho lamentou o fato de que “a funesta máxima de destruir matos a torto e a direito está vulgarizada no Brasil” e condenou a “negligência que em geral se nota em todo o Brasil pela conservação das madeiras e que preside ao corte delas, onde nascem milhares de inconvenientes, tanto para a economia rural como para as artes”. Na parte final fazia um chamado “pela conservação das matas, por serem estas riquezas certas, e ser do homem cordato o não desperdiçar o que possui”. Ora, o mesmo Gestas, através de sua Fazenda Boa Vista, foi um dos introdutores do café nas encostas do Maciço da Tijuca, chegando a possuir, segundo estimativa do viajante francês Luiz de Freycinet, em 1820, cerca de 20 mil pés. A fazenda foi assim descrita pelo mesmo viajante: “grandes derrubadas haviam diminuído o número daqueles imensos madeiros que, tão antigos quanto o mundo, haviam resistido, duramente por tantos séculos, à ação destruidora do homem”.
É claro que não foram apenas intelectuais e artistas os responsáveis pela promoção da monocultura do café sobre as cinzas da mata. Os atores principais foram fazendeiros europeus que antes manejaram grandes “plantations” no Caribe, de onde saíram para escapar dos conflitos políticos ou, simplesmente, para tentar a sorte no Brasil. É o caso do francês Louis Lecesne e do holandês Charles Alexander Moke, cujas fazendas, na atual Gávea Pequena, chegaram a ter 60 mil e 40 mil pés de café. Fazendeiros portugueses e brasileiros seguiram o mesmo rumo, associando café, exploração de madeira e produção de carvão vegetal.
O resultado de todo esse processo foi claramente percebido, tempos depois, por Carlos Augusto Taunay, filho do nosso pintor da natureza (ou do nosso incendiário?). Apesar de ter tido uma formação mais marcada pelas artes militares do que pelo naturalismo, Carlos Augusto ficou relativamente conhecido pela publicação, em 1839, de um “Manual do Agricultor Brasileiro”. O espaço da coluna é limitado para comentar os diferentes aspectos desse interessante documento. Não se pode negar que ele condenou as queimadas e devastações que ocorriam em sua época, apesar de fazê-lo de maneira apenas ocasional e bastante moderada.
Em determinado momento do livro, porém, o tom das críticas subiu alguns graus. É quando ele passou a criticar o “sistema permanente de devastação” que “assola e desguarnece as fraldas da Serra do Corcovado e das Serras da Tijuca”, região com a qual convivia desde a adolescência. Na visão do autor, “um respeito sagrado se deveria pagar às matas que tanto préstimo tem para ornato, refresco e purificação da atmosfera da cidade. O governo deveria dar nelas um exemplo do modo por que todo lavrador, lembrado das gerações futuras, haveria de tratar seus morros, deixando cada pico isolado com uma coroa de uma terceira ou quarta parte da altura total do morro”.
As práticas exploratórias adotadas naquelas montanhas, no entanto, estavam longe de serem aceitáveis, pois “muitos fazendeiros se ocupam em tirar madeiras, ou ocasionalmente para suas construções, ou para especulação lucrosa. A grande abundância de paus de diferentes qualidades faz com que sejam pouco poupados neste trabalho. A falta de condução ou dificuldade de caminhos são muitas vezes causa deste desleixo. Dar-lhe-emos o conselho de serem mais econômicos e de se lembrarem do seu futuro, ou ao menos do de seus filhos”.
O efeito geral daquelas atividades agrícolas e extrativas era que a perda das matas de montanha estava produzindo uma clara deterioração no clima da capital. A introdução do café era o principal problema, pois “a grande extensão que a cultura tomou nas vizinhanças da cidade, e o indiscreto corte de matas que causou, originaram sem dúvida esta alteração. O calor está notavelmente mais intenso. As trovoadas, outrora diárias, são raríssimas, e finalmente, de tantas fontes próximas à cidade, umas já secaram de todo e outras correm mais escassas”. As providências que o governo havia dado para “coibir o corte das matas sobranceiras aos aquedutos” não estavam sendo observadas.
Apesar da gravidade do alerta, a abordagem de Carlos Taunay não chegou a ser radical. Vimos que sua proposta para a Tijuca não era a de interromper ou mudar profundamente os métodos de cultivar café nas montanhas, mas sim a de conservar com árvores a terça ou quarta parte mais alta das encostas cultivadas. Ele recomendava, além disso, o plantio organizado de árvores. Mesmo assim não é difícil perceber a importância do seu testemunho, especialmente partindo de alguém tão íntimo do lugar. O fato é que nesse período começaram a delinearem-se as percepções e argumentos que, décadas mais tarde, seriam utilizados para justificar os trabalhos de reflorestamento comandados pelo Major Archer.
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