No final do ano passado, tive a oportunidade de passar algumas semanas na Índia, aproveitando um convite para participar do 9º Encontro Bianual da Sociedade Internacional de Economia Ecológica, em Delhi. Assumi com os colegas de O Eco, e pretendo cumprir, o compromisso solene de escrever sobre o evento, compartilhando com os leitores algumas observações sobre o estado atual da economia ecológica, um campo do saber cujo desenvolvimento se torna cada vez mais urgente.
Mas é difícil, especialmente para um historiador ambiental, falar sobre alguma coisa sem anotar o lugar, a paisagem vivida, onde ela ocorre. Sempre lembro de uma bela frase que ouvi de Leonardo Boff: “a cabeça pensa onde os pés pisam”. Ainda mais se os pés pisam na Índia, uma das civilizações mais antigas e carismáticas do planeta. E também um dos países mais comentados do momento, já que sua imagem vem sendo vendida, de maneira ao meu ver totalmente irresponsável, como um modelo exemplar de desenvolvimento, um tigre econômico que merece ser copiado. Antes de escrever sobre economia ecológica, portanto, quero escrever sobre a Índia, começando por suas surpreendentes relações históricas com o Brasil.
Ao observar a paisagem humana e ecológica da Índia, o olhar brasileiro é tomado por um estranho sentimento. É como se estivesse observando, ao mesmo tempo, alguma coisa próxima e distante, íntima e exótica. De toda forma, existe um certo sentido de familiaridade que surpreende, diante da grande distância geográfica. É claro, para início de conversa, que grande parte do território indiano, assim como do brasileiro, encontrasse nos trópicos, zona que possui, no contexto do planeta, uma identidade muito maior do que se imagina. Ao andar pelas ruas e campos, neste sentido, a proximidade aumenta quando percebemos a forte presença de árvores como a mangueira, a jaqueira e o cajueiro. Plantas que, aliás, como veremos adiante, podem servir de pontes para pensar a relação histórica mencionada acima.
Para ampliar a compreensão do fenômeno brasileiro, é preciso ir além da visão autocentrada, ou no máximo calcada na interação bipolar Brasil-Portugal, que dominou grande parte de nossa historiografia. O Brasil nasceu na encruzilhada de um projeto global de expansão européia que veio construindo, para bem ou para mal, vínculos dinâmicos e estruturais entre os diversos continentes, dando origem ao que hoje se chama de economia-mundo ou, em sentido mais amplo, de globalização. Em outras palavras, o Brasil já nasceu globalizado. No período colonial, por exemplo, a interação econômica e cultural com a Ásia e a África era intensa, seja pela mediação de portugueses ou pela ação direta de agentes sócio-econômicos aqui estabelecidos.
Devemos a Gilberto Freyre, uma vez mais, a intuição original sobre a importância do Oriente na formação do Brasil. No capítulo “O Oriente e o Ocidente”, incluído na 2ª edição de Sobrados e Mucambos (1951), ele listou uma série de elementos orientais na vida brasileira, como o palanquim, a esteira, a quitanda, os fogos de artifício, o chafariz, o turbante, a telha côncava, o azulejo, o coqueiro, a mangueira, o jambo, a fruta-pão, o arroz-doce com canela, as casas caiadas de branco ou pintadas de cores vivas, as pontas de telhados arrebitadas em corno de lua, o chá, os mascates, os tecidos (especialmente a seda) e as louças da China e da Índia etc., concluindo que “é como se ecologicamente nosso parentesco fosse antes com o Oriente do que com o Ocidente”. Ao menos até que um certo processo de ocidentalização e afrancesamento dos modos e estilos começasse a vigorar ao longo do século XIX.
A presença oriental, segundo Freyre, trazida por colonizadores ibéricos impregnados de “influências mouras, árabes, israelitas, maometanas” – e reforçada pelo fluxo comercial constante com a Índia e a China – ajudou a fortalecer no Brasil a dinâmica de uma sociedade patriarcal e hierárquica, avivando formas “senhoris e servis” de convivência social. Relações de dominação, ademais, estabelecidas com sobreviventes indígenas e escravos ou ex-escravos africanos que coloriam de forma claramente não ocidental a paisagem do Brasil colônia.
O tema levantado em “Sobrados e Mucambos” foi retomado recentemente, de forma bem mais ampla e atualizada, pelo historiador, documentarista e viajante incansável Victor Leonardi. Com base em uma profunda pesquisa bibliográfica, e principalmente na vivência proporcionada por inúmeras viagens pelo Oriente nas últimas décadas, ele produziu um belo livro intitulado “Os Navegantes e o Sonho: Presença do Oriente na História do Brasil” (Brasília, 2005). Um trabalho que, na verdade, cerca o assunto por vários lados, inclusive sem esquecer o fato de que as populações ameríndias com as quais os portugueses se chocaram em 1500 eram descendentes de migrantes que vieram da Ásia e da África durante a última grande glaciação, um passado longínquo anterior aos 12.000 anos antes do presente. Para aqueles grupos de migrantes Homo sapiens, aliás, o “Oriente” era o atual território brasileiro.
A humanidade, que parece tão grande e diversa (e não deixa de ser), aparece na perspectiva da história ambiental de longa duração como uma pequena família na biodiversidade do planeta. Somos todos descendentes de alguns poucos grupos de Homo sapiens, originários no fim das contas da África, que por algum motivo resolveram caminhar pelo planeta e lograram ocupar todos os continentes, diferenciando-se cultural e biologicamente (esta última de forma muito superficial) ao estabelecer-se nas diferentes províncias biogeográficas da Terra. O conhecimento desta origem comum, inclusive através da pesquisa genética, deveria ter uma implicação ética importante para a atual geração dos Homo sapiens, que muitas vezes parecem se enquadrar melhor na categoria Homo “demens”.
Voltando à história da globalização moderna, porém, Leonardi mostra que as naus portuguesas que seguiam para o Oriente, a famosa “Carreira da Índia”, tanto na ida quanto na volta aportavam por longo tempo no Brasil, especialmente na Bahia, promovendo um fluxo permanente de artigos, idéias e pessoas (inclusive marinheiros chineses e indianos que ficavam por aqui vários meses). Os altos funcionários administrativos portugueses, por outro lado, assim como vários artistas e mestres em diversas tecnologias, serviam alternadamente no Brasil, África e Ásia, disseminando saberes e comportamentos. Nomes marcantes na história do Brasil colônia, como Martin Afonso de Sousa e Duarte Coelho, estiveram também no Oriente como governadores, donatários ou líderes militares. Após repassar com erudição e fineza todos os vínculos antigos entre Brasil e Ásia – em termos de linguagem, artes, técnicas, hábitos, costumes e instituições – o livro discute também as modernas e massivas migrações de japoneses, sírio-libaneses e, atualmente, chineses e coreanos, que vêm contribuindo para orientalizar a sociedade brasileira contemporânea.
Talvez a tese mais ousada de Leonardi esteja na seguinte pergunta: a cultura brasileira, até em termos de psicologia coletiva, pode ser considerada realmente “ocidental”? Nas palavras do autor, “o Oriente encapuzado nos legou, à distancia, uma forma enviesada e reverberante de pensar e de escrever que é mais bem apreendida pela intuição do que pela razão”. Ou então, “o Brasil vinculou-se à Índia, e ao Oriente em geral, através de um tempo inseparável do mundo imaginário”. Uma presença sutil que, se verdadeira, apenas viria reforçar a verdade de que “o Brasil formou-se, historicamente, nos infinitos labirintos que a miscigenação e as várias sínteses foram criando ao longo do tempo. Esses meandros nem sempre são evidentes, ou visíveis a olho nu”. De toda forma, no contato entre brasileiros e indianos, por mais que isso seja uma generalização imperfeita, muitos observam uma estranha identidade, que se manifesta na alegria caótica das ruas e na abertura, calor humano e intimidade que, por vezes, chega a ser excessiva para o “lado ocidental” dos brasileiros. Um senso de proximidade que talvez revele a existência de um profundo vínculo histórico “pouco evidente”.
No que se refere às trocas ecológicas e sua manifestação na paisagem, além disso, a emoção do viajante ambiental e culturalmente atento é especialmente forte. Estive alguns dias em Goa, região da costa ocidental indiana ocupada pelos portugueses durante 450 anos (de 1510, mais ou menos na mesma época em que chegaram ao Brasil, até 1961). Ao longo dos séculos produziu-se uma paisagem onde, ainda hoje, templos hindus se misturam com igrejas barrocas e sobrados enfeitados de azulejos. Na arquitetura, na culinária, na música, no modo de ser, o olhar brasileiro enxerga em Goa alguns dos elementos presentes na química da nossa vida e da nossa cultura. Um lugar, por exemplo, onde se festeja o carnaval e se cultivam as canções de serenata….
É impressionante observar, por outro lado, como o cajueiro, introduzido pelos portugueses, disseminou-se na região, tornando-se uma árvore típica cujas plantações em fazendas de especiarias se embaralham com florestas tropicais cheias de jambolões e jaqueiras nativas. Árvores que, por sua vez, assim como as mangueiras e os coqueiros, foram disseminadas pelos portugueses, a partir do Oriente, no litoral brasileiro. O papel dos portugueses na globalização biogeográfica dos últimos séculos, aliás, precisa ser mais bem estudado. De toda forma, alguns trabalhos importantes como “A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses”, de José Ferrão (Lisboa, 1992) e o capítulo “Dissemination of Flora and Fauna”, do “The Portuguese Empire – A World on Move de A. Russel-Wood” (Baltimore, 1998), revelam um esforço incessante no sentido de promover um intercâmbio de biodiversidades ao longo do mundo tropical, envolvendo Ásia, África e América. Uma mistura ecológica que, para bem ou para mal, já faz parte da história moderna, além de produzir situações anedóticas como a de um amigo brasileiro que recebeu, de um colega indiano, um saco de castanhas de caju como sendo um regalo tipicamente local…
Existem, inclusive, alguns mistérios ecológicos da globalização que precisam ser desvendados pela história e pela antropologia. Como no caso da bebida típica de Goa, o feni ou fenim, ser uma aguardente de caju, algo que não ocorreu no Brasil, apesar da existência de uma tradição indígena de produzir bebida fermentada de caju (o acajuy ou macoróró) e da presença no passado recente do Nordeste – como mostra o belo livro “O Cajueiro Nordestino” de Mauro Mota – de algumas fábricas de “vinho de caju”. Ao passo que no Brasil e em Cuba, a exótica cana-de-açúcar, de origem absolutamente oriental, inclusive indiana, gerou aguardentes mundialmente famosas, que nunca se desenvolveram na Índia…
Em suma, a história brasileira é mais surpreendente do que parece. Assim como surpreendentes são os laços que ligam os destinos e dilemas de nossa espécie na superfície desta casa comum que é o planeta Terra. Na próxima coluna pretendo discutir alguns dos desafios que a Índia contemporânea apresenta para o imperativo, ou talvez mero desejo ilusório, de encontrarmos um caminho de sustentabilidade no século XXI. Mas por enquanto vale a pena ler as belas palavras do historiador português Jaime Cortesão, citado por Leonardi, “os homens e os povos descobrem-se uns aos outros. E, mais do que isso, descobrem pouco a pouco o denominador comum de humanidade que os une”.
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