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Mudanças de olhar: quem são de fato os heróis da Natureza?

Há não muito tempo, o caçador era visto como herói por derrotar as ameaças da natureza. Essa visão mudou radicalmente. Agora é transformar consciência em ação.

4 de abril de 2006 · 19 anos atrás
  • Suzana Padua

    Doutora em educação ambiental, presidente do IPÊ - Instituto de Pesquisas Ecológicas, fellow da Ashoka, líder Avina e Empreen...

Sou filha de caçador. Ironicamente, herdei do meu pai, Alberto Lobo Machado, o amor que tinha pela natureza. Seu amor, no entanto, não o impedia de matar animais em todo o mundo. Em uma sala de “troféus”, havia montagens de corpo inteiro ou cabeças de bichos como tigre, leão, búfalo, rinoceronte, antílope e até presas de elefantes. Do Brasil, havia uma grande parede com onças preta, pintada e parda, veados e porcos-do-mato.

Meu pai era um herói. Pessoas do Brasil e de todo o mundo o procuravam para ouvir detalhes de suas caçadas. Havia no imaginário coletivo a fantasia de homens fortes, de elegância britânica, abatendo feras indomáveis. Nessa visão de caçador herói, não sobrava espaço para sentimentos de tristeza pela perda da vida dos bichos que morriam, sempre em decorrência de atos heróicos e histórias emocionantes. Não se questionava o destino dos animais abatidos nem o que estava ocorrendo com o mundo no que se refere às perdas naturais. Naquela época, conservação e noção de finitude da natureza eram concepções ainda não incorporadas aos valores da maioria das pessoas. Mesmo sabendo que a caça causava um impacto consideravelmente menor do que os desmatamentos desmedidos que ocorriam em quase todos os cantos do mundo, não parecia haver espaço para reflexão sobre o porquê de matar animais. Presumia-se que a natureza era inesgotável. Assim sendo, o caçador era admirado porque mostrava coragem e superioridade sobre as outras espécies vivas. Essa era a percepção de apenas 30 ou 40 anos atrás.

Está certo que a necessidade de domínio do ser humano sobre a natureza tem origem milenar. O instinto de sobrevivência justificou a caça como forma de se obter alimentos ou mesmo de se proteger dos perigos existentes nos ambientes naturais. Nessas circunstâncias a natureza inspirava mesmo hostilidade e ameaça, sendo necessário astúcia e coragem para enfrentá-la. A vida em grupo, a domesticação de certos animais e a descoberta da agricultura certamente influenciaram decisivamente a mudança na relação ser humano/natureza.

No entanto, a aceitação da premissa do ser humano ser superior à natureza já faz parte de uma outra época, quando a racionalidade se tornou predominante. Se analisarmos os efeitos dessa premissa no planeta, podemos questionar se retrata mesmo superioridade, ou se já não seria uma indicação de nossa involução.

Mecanicismo

Pensadores dos séculos XV, XVI e XVII, com expoentes como Bacon e Descartes, influenciaram toda a época moderna do pensar, colocando a natureza a serviço da humanidade. O princípio era reduzir a vida a fragmentos a serem estudados independentemente, perdendo-se a noção do todo e da interconexão dos elementos. Esta tendência influenciou nossa forma de nos relacionarmos com o mundo natural, trazendo uma visão que ficou conhecida como “mecanicista”.

As conquistas tecnológicas que advêm do pensamento racional trouxeram vantagens inquestionáveis em vários campos e ninguém hoje pensaria em viver sem eletricidade, transporte e comunicação eficientes, ou uma medicina avançada. No entanto, o desrespeito, a exploração e até a escravidão foram observados com uma assiduidade espantosa nos últimos séculos da história humana. A era industrial exigiu que os recursos naturais passassem a ser explorados de maneira insustentável para garantir a contínua produção de bens de consumo que se transformam cada vez mais em necessidades, principalmente para uma minoria privilegiada. Infelizmente, uma grande parcela da humanidade continua sem saborear os confortos desses processos e se torna “invisível”, sendo raramente foco de atenção.

Essa forma de nos relacionarmos com o mundo natural não tem dado certo ao longo do tempo. O que é surpreendente é que essa percepção mais clara do desequilíbrio tenha ocorrido em menos de meio século. Foi nesse período, quando se agravaram as diferenças entre os recursos disponíveis e as demandas e quando crises socioambientais passaram a ser freqüentes na mídia nacional e internacional, é que se buscaram conceitos relacionados à sustentabilidade da vida na Terra.

Muitos pensadores surgiram com visões que justapõem essa forma de pensar o mundo. Com a noção de que a vida está conectada de maneira sistêmica, Lovelock, Boff, Chopra, Capra, Naess e outros vêm demonstrando, cada um à sua maneira, a interdependência dos seres vivos. Thich Nhat Hanh, quando descreve o pensamento budista, usa a palavra “interser” para reforçar a idéia de que toda a vida está ligada e que até os elementos inanimados precisam ser bem cuidados. O ser humano depende de outras espécies e também de elementos como a água, o ar e os minerais. Pensar que o ser humano se sustenta sozinho é um equívoco e empobrece o próprio sentido da vida no universo.

Apesar dessa forma de ver o mundo estar sendo disseminada de muitas maneiras, ainda há muito a ser trabalhado. Os tempos mudaram rapidamente, mas as conseqüências do pensamento racional e fragmentado ainda repercutem na atualidade. Infelizmente, muitas espécies que dependem da natureza selvagem para se manter hoje enfrentam desafios para sua sobrevivência. As perdas e as ameaças de extinção ocorrem, hoje, em proporções exponenciais enquanto as medidas mitigadoras são lentas e dependem da coragem de pessoas que ousam ir contra a maré.

Novos heróis

O fato é que em menos de 30 anos houve uma mudança de percepção: hoje quem caça por esporte passou de herói a vilão. Meu pai já não está mais entre nós para ser tratado assim, mas nos últimos anos de vida seu espaço como herói foi ficando reduzido. Os caçadores, mesmo aqueles preocupados e ligados à natureza, carregam agora um estigma oposto ao que tiveram no passado.

Já os conservacionistas, que eram vistos como excêntricos e até ridicularizados por lutarem para salvar e proteger uma natureza “infinita”, aos poucos foram conquistando uma imagem de heróis. No início eram poucos, mas gradualmente atraíram adeptos e admiradores. Muitos se tornaram fontes de inspiração e referências para outros tantos que hoje trabalham como pessoas que contribuem para a proteção da natureza. Lutaram no passado e lutam até hoje contra um progresso que se baseia na devastação e no uso insustentável dos recursos naturais.

Na época do meu pai havia uma falta de consciência sobre as conseqüências do que a caça e outras formas de agressão à natureza representavam. Talvez eu esteja querendo desculpar uma pessoa tão próxima e querida, mas creio que sua responsabilidade era relativa. Hoje, as perdas são tantas que já não podemos adiar assumirmos um compromisso pela proteção do que resta da natureza de nosso planeta. Nunca foi tão fácil percebermos que estamos juntos e interligados, pois os desastres e as crises atuais vêm nos obrigando a encarar essa nova realidade. Precisamos agora perceber a força que podemos ter se nos unirmos para salvar a nós próprios e às riquezas socioambientais que herdamos. Cabe a nós, cada um a sua maneira, encontrarmos meios de melhor proteger a vida na Terra.

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