Este terreno, na verdade, estava em área contígua aos 840 hectares de uma madeireira de Itaiópolis, que contribuiu muito para o desenvolvimento do Município. Esta madeireira era uma das poucas que beneficiava a madeira, agregando valor e gerando muitos empregos em Itaiópolis, durante vários anos de atividade. Até entrar em decadência, com o esgotamento deste recurso natural, que é a madeira nativa. E o terreno trocara de mãos numa ação trabalhista, movida por um ex-funcionário.
Talvez muitas pessoas se surpreendam com o fato de que as áreas mais preservadas que se salvaram de Mata Atlântica sejam de madeireiras. O motivo é fácil de entender. Na década de 50 e 60, os empresários do setor perceberam que corriam um grande risco de ficarem sem matéria-prima no futuro, e trataram de comprar grandes áreas intactas, repletas de madeira. Mantiveram estas áreas intocadas, enquanto tinham madeira proveniente do desmatamento para agricultura, geralmente dos grandes assentamentos feitos pelos governos passados. Mais tarde, percebeu-se que a atividade não era sustentável, e foi proibida a exploração destes vestígios da Mata Atlântica. É claro que barreiras naturais também contribuíram para salvar estas áreas.
Voltando à minha história. Pensei – será que eu compro ou não compro o terreno da nossa vizinha, com aquela toda precariedade da documentação? Mas, como eu estava lidando com pessoas honestas, e a vontade era muito grande de salvar o rio Itajaí, ou seja, o que sobrou das matas nas cabeceiras, acabei comprando a área. Fiz isso sem ver o terreno, apenas me baseando na descrição de um dos filhos da nossa vizinha. O único documento de posse foi um recibo assinado por ela (que deveria ter a assinatura de todos os herdeiros). Isso aconteceu em 2004. E só no ano passado, finalmente, conseguimos a escritura. Deu trabalho, mas nada é impossível para a Elza, que cuidou desta parte burocrática.
Logo após a compra, fomos muito animados conhecer a área. Pegamos nosso jipe Toyota 4×4 e um dos filhos da nossa vizinha veio junto, para mostrar onde ficava o terreno. Quando chegamos lá, da margem oposta do rio Itajaí, deu para ver a riqueza da área. “Reencontrei o paraíso”, pensei. A paisagem estava do mesmo jeito da época quando eu era criança, pelo menos num dos lados do rio, onde fica a área que compramos. Como não há estradas daquele lado do rio, a área é desabitada. Também, não imaginava que o terreno ficava tão perto dos lugares que freqüentava quando era criança. Foi um momento de muita alegria… por alguns instantes.
Para atravessar o rio era necessário usar um barco (que a gente chama de bote). O rio Itajaí tem corredeiras muito fortes, que já ceifaram a vida de muita gente, como eu comentei no primeiro artigo. Só na Reserva Indígena Duque de Caxias, que fica alguns quilômetros abaixo, já morreram oito indígenas afogados nos últimos anos, ao tentarem desafiar o rio Itajaí. Eu também quase engrossei as estatísticas, quando era criança.
Então, um morador vizinho emprestou seu bote, que estava em péssimo estado, deixando entrar muita água, que tinha que ser retirada com um balde o tempo todo durante a navegação. Sem contar que este bote não tinha estabilidade alguma. Estávamos em quatro pessoas: eu, a Elza, minha sobrinha (adolescente) e o rapaz, filho da vizinha que vendeu o terreno. Ninguém tinha experiência em remar, muito menos em navegar no rio Itajaí. Nadar? Só eu sabia. De repente a correnteza começou a arrastar o barco para as corredeiras. Nós remávamos desesperadamente para alcançar a margem oposta, mas a componente ao longo da correnteza, no meio do rio, ganhava da gente de sobra. A um metro de o bote entrar na corredeira (onde água do rio afunila e sofre uma queda acentuada, formando quase uma cachoeira, correndo entre rochas de vários tamanhos) conseguimos segurar o bote, agarrando a vegetação – por sinal, um arbusto endêmico dos rios da região, com caules finos, longos, bastante flexíveis e resistentes. Isso foi feito de forma sincronizada por todos. Não sei de onde eu consegui tirar tanta força. Se o bote entrasse ali, seria triturado, como num liquidificador.
Passado o susto, conseguimos atracar na margem oposta, num remanso. Ufa! Finalmente, conseguimos colocar os pés no paraíso. Mas tinha algo estranho ali. Muitas pegadas de um mamífero grande, que me eram muito familiares. Porcos domésticos!!! Centenas deles, uns 200, e famintos. Logo que começamos a andar em direção ao barraco, a presença deles se materializou. Uma vara deles, magros e famintos, nos atacou. Por pouco não fomos devorados. O cenário era assustador, um horror. Havia muitas carcaças também, com evidências de canibalismo. Sinal de que eles não estavam muito bem ali. Com certeza, também não estavam bem os pequenos vertebrados como os anfíbios, serpentes e milhares de outras formas de vida, ou seja, nossa rica biodiversidade, que viram refeições fáceis de porcos soltos em áreas preservadas, sobretudo com a escassez de comida que existia ali.
A mata estava preservadíssima, mas havia carreiros destes porcos por todos os lugares e as raízes de árvores centenárias expostas de tantos eles fuçarem, comprometendo a sustentação das árvores. Os banhados também, tudo fuçado. Minha esperança de achar anfíbios se reproduzindo ali era cada vez menor. A única coisa que me animava era encontrarmos naquele solo revirado muitas pegadas frescas de mamíferos silvestres, sobretudo de felinos: jaguatirica, gato-do-mato e onça-parda. Chegamos a avistar um gato-do-mato-maracajá, ao escurecer.
Tentei descobrir, desesperado, quem era o dono dos porcos, mas os moradores vizinhos não quiseram fornecer o nome, apenas me informaram que não morava ali e que era comum as pessoas criarem porcos soltos daquela maneira, em terrenos alheios. Ninguém reclamava, já que não havia moradores daquele lado do rio – quem seria tão chato a ponto de reclamar disso? Mas eu não me conformei com aquela situação. Tive a idéia de colocar um anuncio na rádio AM de Itaiópolis, que tem uma audiência fenomenal e presta um serviço de grande utilidade para a população de Itaiópolis. Então, apareceu o dono dos porcos, que não se conformava com minha exigência de retirá-los dali. Expliquei a ele o porquê, dizendo que era até ilegal manter aqueles porcos ali, naquela situação. Falei também dos problemas sanitários rio abaixo. Enfim, tive muita dificuldade para convencê-lo. Mas, depois de algumas semanas, ele retirou os bichos.
Eu mal sabia dos problemas que viriam pela frente para cuidar daquela área. Mas me apaixonei pelo lugar. Com freqüência, passávamos os finais de semana e feriados prolongados acampados no barraco que havia lá, geralmente em companhia de duas sobrinhas da Elza, adolescentes. Passei ali os momentos mais agradáveis da minha vida, vendo toda aquela biodiversidade, e me sentir podendo fazer alguma coisa concreta para salvar aquele tesouro. Mas aos poucos fomos percebendo que nossa presença não era bem vinda.
Estávamos sendo vigiados o tempo todo. Certa vez, esvaziaram nosso bote de borracha (durante a noite, alguém atravessou o rio e fez esta sabotagem). Um dos moradores começava a efetuar disparos com arma de fogo tão logo chegávamos lá. Tudo para nos intimidar. Chegaram a gravar cruzes nas árvores. Sem a gente ter feito nada contra eles. Procuramos ser gentis, e nunca denunciamos os crimes ambientais, nas mais diferentes modalidades, que eles praticavam. A motosserra roncava sem parar numa das propriedades vizinhas, e a gente ouvia aqueles estrondos enormes de gigantescas árvores tombando. Faziam isso para nos desafiar, incomodar. Acho que abatiam as maiores árvores somente para produzir o maior estrondo possível, de pura provocação.
Bem mais tarde, descobri que o dono do terreno que compramos morrera ao tentar atravessar o rio sozinho, como sempre fazia. O bote virou e ele se afogou. Chegou a morar no barraco sozinho durante um longo período porque estava aposentado e gostava de caçar. Na parede do barraco encontramos pregados os pés de um macuco e também a pele de um gato-do-mato. Soubemos que ele também teve os mesmos problemas com estes porcos, que foram trazidos de volta logo após sua morte e enfrentava muita dificuldade para tomar posse de seu terreno. Também tinha problemas com a concorrência, pelo que dá para deduzir das placas: “Proibido caçar”.
Esta é a história da compra da primeira área nas cabeceiras do rio Itajaí. Nos próximos artigos vou continuar relatando fielmente as coisas boas e as dificuldades para vocês perceberem o tamanho do desafio que é de defender a natureza do Brasil. E vocês vão encontrar a resposta para a pergunta que é o título deste artigo.
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