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Mirador volta a ameaçar Veadeiros

Com processo de licitação correndo na surdina, a Usina de Mirador ameaça cercar parque nacional com reservatórios de barragens. De quebra, afogará a maior RPPN da região.

14 de outubro de 2008 · 16 anos atrás
  • Reuber Brandão

    Professor de Manejo de Fauna e de Áreas Silvestres na Universidade de Brasília. Membro da Rede de Especialistas em Conservaçã...

A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) discute novas datas para a realização dos leilões que irão definir o quanto de energia será negociado até o ano de 2030. Isso é possível, pois a maior parte dos rios brasileiros de médio e grande porte já foi perscrutada em quanto de energia podem gerar e os projetos propostos já possuem previsão de energia instalada.

O Ministro de Minas e Energia afirma a necessidade de mais hidrelétricas, defendidas como fonte de energia limpa por organizações mal informadas ou mal intencionadas. Até o final do mandato, o Governo Federal pretende investir milhões em novas usinas. E se o licenciamento ambiental atrasar o andamento dos projetos, o fantasma do apagão voltará a dominar a mídia em um estalo de dedos.

Os rios do Cerrado ocupam uma posição de destaque para a geração de energia. Nascendo em áreas de Planalto, sua forte correnteza anima a cobiça das empreiteiras. Áreas altas, com valores de precipitação pluviométrica elevados, sobre rochas cristalinas, são locais abençoados em número de nascentes de rios. Estes rios, que descem poderosamente das porções altas em direção às planícies, rompem barreiras do relevo e formam belíssimas cachoeiras. Assim é a região da Chapada dos Veadeiros, onde nascem as águas que irão correr para os rios Tocantins e Paranã, percorrendo os leitos dos seus afluentes, como o rio Preto, o Tocantinzinho, o dos Couros, das Almas, das Pedras e o São Félix. São rios fortemente encachoeirados, muitos deles encaixados em vales profundos, ricos em biodiversidade. Tais rios enchem de ambição os olhos daqueles que não conseguem perceber beleza na natureza, mas se deliciam com grandes obras de engenharia. Desta forma, a retomada do projeto da UHE Mirador não chega a ser nenhuma surpresa, apesar do processo de licitação andar na surdina.

Energia elétrica é essencial. Sem ela, não poderíamos escrever tais linhas. Hospitais, escolas, indústrias seriam impedidos de funcionar. O que se discute não é a relevância do investimento em infra-estrutura no Brasil, e sim que diversos empreendimentos causam mais danos que benefícios. Significam tão somente a privatização dos benefícios e a socialização dos prejuízos. É o caso de Mirador, que irá causar danos em uma área insubstituível para conservação do Cerrado. Que somará impactos com outros empreendimentos semelhantes, que afetam uma vasta região do Cerrado, suficientemente ameaçada.

As hidrelétricas migram das porções mais baixas, onde existem rios de maior porte, como o Paranã e o Tocantins, para apresar rios menores, localizados em porções mais altas.

A questão não é simples. Não é apenas se a UHE Mirador deve ser construída ou não. A questão é avaliar, de forma ampla e crítica, o que significa mais uma UHE na região. A geração de energia de uma UHE é bastante localizada. Mora nas suas turbinas. Já o impacto de uma hidrelétrica deve ser avaliado em escala regional. O mais grave na situação reside no fato de que Mirador irá potencializar os impactos produzidos por outras barragens construídas na região. Embora não possua um espelho de água excepcionalmente grande (5.150ha), a barragem em si e o lago formado irão irremediavelmente interromper o corredor que o rio Tocantinzinho representa, afetando a dispersão de diversos organismos.

Desde 1996, três grandes represas hidrelétricas foram instaladas na bacia do rio Tocantins. A da Serra da Mesa inundou o rio Tocantins, Bagagem, Tocantinzinho e Maranhão, criando um imenso lago de 170 mil ha, que circunda uma vasta região ao sul e a oeste do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (PNCV). A Usina de Cana Brava, cuja barragem se encontra no rio Tocantins, inundou também boa parte do Rio Preto, o principal rio do PNCV, onde estão as famosas quedas; a UHE Peixe-Angical inundou o rio Paranã, que circunda toda a região ao leste e norte do PNCV. Entre a UHE Cana Brava e a UHE Peixe-Angical, há o projeto da UHE São Salvador, que afogará boa parte do que resta do Tocantins e do Paranã. A única bacia que ainda não possui barragens é a dos rios Tocantizinho e dos Couros, ao sul do PNCV.

A concentração de grandes hidrelétricas no Tocantins e no Paranã já interrompeu corredores formados pelos rios ao redor do PNCV. O rio dos Couros, que nasce dentro do PNCV (região do Pouso Alto) e entra no rio Tocantinzinho, ao sul, antes da UHE Serra da Mesa, é o único rio livre, que corre desempedido, formando um dos mais importantes corredores ecológicos de toda a imensa área cercada por represas hidrelétricas ao norte. Este é o único rio que ainda permite um fluxo mínimo da fauna aquática e florestal do Parque com seu entorno. Resumidamente, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros encontra-se ameaçado de ser finalmente isolado, especialmente no que se refere à sua biota aquática e às espécies relacionadas a formações florestais associadas a cursos de água.

A porção mais baixa do Tocantinzinho termina na represa da UHE Serra da Mesa (que inundou também partes do rio Bagagem, do rio Maranhão, do rio das Almas e do rio Passa-Quatro, além de outra centena de cursos menores). O rio Tocantinzinho, portanto, já está fragmentado? Sim e não. Sim, porque ele acaba no lago de Serra da Mesa. Não, porque ele ainda possui diversos ambientes especiais que não estão representados nas áreas a montante do reservatório projetado. Por isso, os impactos de Mirador terão grande relevância regional. A perda de hábitats decorrente de Mirador se somará à perda de hábitats causado por este e pelos outros empreendimentos.

É mais um degrau na “escadinha” de usinas dispostas em fila ao longo do rio Tocantins e afluentes principais, formando uma seqüência de grandes lagos. É o nosso Canadá tupiniquim, que se inicia em Tucuruí e termina na Serra da Mesa, incluindo ainda empreendimentos recentes ou em execução, como Estreito, Ipueiras, Lajeado, São Salvador, Peixe-Angical. Com exceção de Tucuruí, todos estes no Bioma Cerrado.

Além do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, a UHE Mirador afetará também a APA do Pouso Alto e nove Reservas Particulares do Patrimônio Natural, afogando partes da RPPN Campo Alegre, a maior de toda região. A porção do rio dos Couros que será engolida por Mirador inclui locais onde o pato-mergulhão (Mergus octosetaceus) forrageia, se abriga e se reproduz. Mirador é uma idéia infeliz, localizada em local errado.

Os relatórios de impacto ambiental foram produzidos por FURNAS Centrais Elétricas S/A, uma das maiores interessadas no projeto. Furnas não cita no seu relatório a presença de unidades de conservação afetadas pela da UHE Mirador, nem a presença de espécies ameaças ou raras. A ausência destas informações, de certa forma, pode incentivar investidores a apoiar o projeto, especialmente por significar menor investimento em programas ambientais e menos etapas no licenciamento ambiental.

Distantes centenas de quilômetros do rio Tocantinzinho, somos profundamente envolvidos pelo dia-a-dia. Por sorte recebemos informações sobre o que acontece naquela região através da rede de computadores ou de pessoas como o Peter Midkiff, morador de Alto Paraíso. Sua fantástica simplicidade não impede que ele tenha um apurado senso de cidadania e de coragem de lutar pelo que acredita. O Peter disponibilizou documentos sobre a UHE Mirador e produziu textos que contam o que vêm acontecendo há sete anos na região. Peter pede socorro em uníssono com a natureza do PNCV.

O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros já é pequeno diante da imensa relevância biológica da região que ocupa, apontada como uma das mais relevantes de todo Cerrado brasileiro. A instalação de Mirador fecha um dos últimos sistemas hídricos da região sem barreiras para a migração de organismos associados aos cursos de água e/ou aos ambientes ribeirinhos, conectando cabeceiras e vales florestados. Além de ter sido reduzido a um tamanho mínimo diante da sua importância, o parque também está perdendo, a cada dia, sua conectividade com outras regiões do Cerrado. Ao longo do tempo, a diversidade protegida no PNCV será apenas uma parcela da biodiversidade que hoje existe lá.

A avaliação dos impactos ambientais associados a Mirador não podem restringir-se apenas à avaliação do empreendimento em si. Devem ser considerados os componentes regionais e estratégicos, incorporando aí as metas de conservação estabelecidas pelo Governo Federal e pelo Estado de Goiás. O foco não deve ser dado apenas à presença ou ausência de certas espécies, mesmo sabendo da relevância dos endemismos existentes na região. Também se deve considerar a presença de processos ecológicos relevantes, dos serviços ecológicos que serão perdidos, das mudanças na dinâmica de movimentação da biota e da possibilidade de colonização por espécies invasoras. Alguns estudos executados em Serra da Mesa nos apontam um quadro do que poderá ocorrer em Mirador: perda de 100% das espécies de sapos associadas a ambientes de fundo de vale; perda de 20% das espécies de lagartos e de 60% dos sapos em fragmentos, mortandade de grandes peixes de fundo de rio, isolamento de populações e perda massiva e irreparável de ambientes importantes para conservação. Esta é a perda visível. A perda invisível, porém mais radical, é a perda de variabilidade genética das populações isoladas, a perda de serviços ambientais e de interações ecológicas responsáveis pela regulação dos ecossistemas. Por causa disso, muitas mudanças podem não ter volta. Pode-se manter certos ambientes, criar algumas normas, delimitar certas áreas, mas mesmo assim, estas áreas estarão empobrecidas do ponto de vista da conservação.

Peter Midkiff concorda que a questão de fazer ou não Mirador não é apenas uma bandeira erguida pelo ambientalismo praticante contra ameaças à conservação. É uma questão de negociação, de avaliação, de planejar o futuro da região.

Há décadas foi decidido pelo setor energético o sacrifício do rio Tocantins para o aproveitamento hidrelétrico, poupando, com isso, o rio Araguaia. No entanto, não foi decidido o sacrifício dos afluentes do Tocantins, nem do Parque Nacional. Manter o que resta de conectividade entre o Parque e outras regiões do Cerrado deve ser entendida como a máxima prioridade, porque o parque é prioridade, é de utilidade publica e é bem da coletividade. Na área do reservatório projetado, o Tocantinzinho apresenta algumas das áreas mais fantásticas e bonitas da região, onde a seca do Cerrado parece nos impregnar. Ficamos com cara de Cerrado ao meio dia devido à falta de umidade. Ainda bem que podemos nos hidratar nas belíssimas cachoeiras do rio dos Couros, vislumbrando os contornos do relevo do Tocantinzinho, enquanto a inundação de Mirador não chega.

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