A doutora Mary Pearl, em aula inaugural no início deste ano, na Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade (Escas), parecia prever a Gripe Suína, ou influenza A (H1N1), que avassalou o mundo, contaminou 12 mil pessoas, matou mais de 80, e deixou a todos com enormes incertezas. Mary foi diretora por mais de 15 anos do Wildlife Trust, instituição que tem na Medicina da Conservação um de seus principais pilares. Esta é uma ciência nova que emergiu em decorrência dos desequilíbrios ambientais que propiciam novas doenças, ou a incidência desenfreada de outras que se encontravam em estado latente. De modo a responder à complexidade do que vem ocorrendo, a Medicina da Conservação se alicerça em conhecimentos da própria medicina, do clima, da veterinária, da engenharia florestal, da ecologia e tantas outras áreas do saber, em busca de explicações e, mais importante, na previsão de doenças que podem se tornar epidemias ou pandemias, como é o caso da recente Gripe Suína.
A migração de doenças não é fato novo. Desde as grandes navegações que se tem notícias de epidemias levadas de uma nação a outra. Todavia, o desmatamento e a perda das áreas naturais vêm contribuindo para a insurgência de novas doenças, ou a proliferação das já conhecidas, agora mais freqüentes, tanto em seres humanos quanto na vida animal. E o ritmo tem se intensificado drasticamente. Segundo dados trazidos pela Dra. Pearl, em períodos de apenas cinco anos, mais de 40 novas doenças aparecem ou reaparecem, em todos os continentes. Grande parte tem origem na vida silvestre, o que leva desavisados a quererem acabar com a fauna, por exemplo.
Este foi o caso da matança de bugios no Rio Grande do Sul (veja abaixo). Vistos como responsáveis pela febre amarela, os bugios enfrentam a própria doença além de pessoas querendo os matar por pensarem que assim estarão a salvo. Mal sabem que sem os bugios podem ampliar a chance da doença se espalhar. “A morte de bugios por febre amarela alerta os órgãos de saúde locais sobre a circulação do vírus na região”, afirma o pesquisador Julio Cesar Bicca-Marques, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS), o que já propiciou campanhas de vacinação para a população humana em quase 200 municípios do estado.
Por essa razão, o Ministério da Saúde considera esses macacos importantes “sentinelas” e levou Bicca-Marques a compará-los a “anjos da guarda”, por avisarem da incidência da doença a tempo de serem tomadas providências. Tudo indica que os bugios estão sendo mortos sem que as pessoas percebam que as epidemias ocorrem essencialmente em decorrência do desequilíbrio ambiental que elas próprias estão causando.
Prevenir e proteger a natureza seria muito mais econômico, pois os prejuízos que as enfermidades causam são inestimáveis, além das perdas e do sofrimento. O cólera no Peru, por exemplo, custou 775 milhões de dólares, a vaca louca 11 a 13 bilhões ao Reino Unido, uma doença advinda do carrapato, a lyme, 16 bilhões nos Estados Unidos, a aftosa 25 bilhões de dólares, a SARS e a febre aviária na Ásia 130 bilhões. Essas cifras são altas e com a Gripe Suína não será diferente.
O estresse de um ecossistema é cada vez mais freqüente, ou seja, quando não tem mais condições de se recuperar por conta do impacto sofrido. O empobrecimento ambiental é causado por muitos fatores, como destruição de habitats, perda da biodiversidade, proliferação de toxinas causadas por metais pesados e outros males da industrialização. Ademais, a falta de investimentos em questões que não aparecem como saneamento básico, por exemplo, acarreta inúmeros males aos seres humanos e ao ambiente. O fato é que em condições desequilibradas, há um favorecimento à proliferação de doenças em ritmo acelerado e um enfraquecimento do sistema imunológico em geral. A própria Aids é prova disso, e teve um aumento significativo na década de 1980, o que pode ou não ter conexão com a destruição ambiental que também se intensificou nesta época. .
A presença de riscos ambientais é responsável por 25% das doenças do mundo, sendo que, na África, a estimativa aumenta para 35%, segundo dados recentes publicados pela IUCN (International Union for Conservation of Nature and Natural Resources). Poluição da água, falta de saneamento e má nutrição são questões relacionadas às condições ambientais. Só nos anos 1990 morreram 600 mil pessoas dos efeitos de desequilíbrios ambientais. Saúde e ambiente são indissociáveis, mesmo que esta conexão seja comumente ignorada. Por isso, as questões ambientais sempre passam a segundo plano, ou são varridas para debaixo do tapete, até que a situação se agrave a ponto de exigir tomadas de decisões urgentes, sendo que muito poderia ser evitado.
O aquecimento global ameaça a integridade planetária e vem alterando a freqüência e a distribuição das enfermidades tropicais, que agora incidem em regiões que antes eram mais frias. Doenças transmitidas por mosquitos, por exemplo, estão com um ciclo maior por causa do calor prolongado. A dengue é prova disso, pois se alastra nos trópicos e agora invade zonas temperadas do planeta.
Episódios em que el niños ocorriam eram previsíveis, mas hoje não seguem padrões. Tempestades, ondas de calor, tsunamis, secas e enchentes trazem danos incalculáveis e sofrimentos que se agravam com cólera, leptospirose e diversos males em grandes proporções. Muitas das regiões onde ocorrem carecem de condições adequadas para responderem à altura do problema com a rapidez necessária. Os países mais pobres acabam sofrendo com maior intensidade, e tudo indica que com o aumento das temperaturas terrestres as calamidades por fatores climáticos serão mais freqüentes.
O movimento das epidemias é global, mas cada grupo de doenças reage de maneira diferente, de acordo com as condições dos contextos onde ingressam. Entretanto, alguns fatores comuns na atualidade agravam a proliferação das doenças como a concentração humana em grandes centros e a eficiência no sistema de transportes. A vida animal também está atualmente concentrada em áreas específicas, muitas delas próximas a seres humanos, o que contribui para a migração de zoonoses.
Um exemplo do efeito das mudanças climáticas na natureza e do fluxo entre gente e vida animal foi relatado pela Dra. Pearl e refere-se ao vírus Nipah que surgiu na Malásia em morcegos frugívoros e porcos. Estes animais sempre conviveram com gente sem causar danos. Mas, os porcos originalmente faziam parte das pequenas propriedades em sistemas de agricultura era familiar. Ao passarem a ser criados em grande escala pelas agroindústrias, o risco de contaminação em massa aumentou.
Por exemplo, a ocorrência de um el niño, provocou a redução de chuvas e o aumento de queimadas. Com isso, houve diminuição da luz solar nas florestas, o que afetou as figueiras, fonte principal de alimento dos morcegos. Estes passaram a comer pequenos pedaços de outros frutos, o que é normal para permanecerem leves para voar, deixando cair no solo restos contaminados. Os porcos se alimentaram desses restos e contraíram o vírus Nipah, que se espalhou rapidamente, afetando as grandes criações além da população humana, que teve casos de até 30% de mortes entre os que contraíram a doença. O vírus invadiu Bangladesh, país pobre, sem condições de reagir adequadamente, e as conseqüências foram ainda mais graves com mortes de até 80 % entre as pessoas contaminadas. Evitar esses males em cadeia, que afetam flora, fauna e gente é possível se a ciência estiver a serviço da coletividade e, é claro, se houver investimentos para pesquisa.
Outro exemplo da Dra. Pearl refere-se ao vírus do Nilo e indica a importância da pesquisa. Este vírus existe na região do Nilo há milênios, mas em apenas oito anos se espalhou nos Estados Unidos. A princípio assemelha-se a uma gripe, mas em idosos e crianças causa encefalite e morte. Em 1999 entrou por Nova York, em 2001 já se encontrava em metade do país, e em 2006 houve casos de mortes em todo o território Norte-Americano. É, essencialmente, uma doença que incide em mosquitos e aves, mas, ocasionalmente, ocorre em mamíferos. De modo a combatê-la o passo mais importante era descobrir qual o mosquito transmissor. Foram feitos estudos nas diferentes espécies com base na abundancia e no tipo sanguíneo prevalente, e o resultado apontou o mosquito Culex como o vetor. As pesquisas mostraram, ainda, que este mosquito se reproduz em ambientes urbanos degradados, e vão ficando menos presentes na medida em que o habitat se equilibra. O Culex pica sabiás que são freqüentes nas cidades em determinadas épocas do ano. Quando essas aves migram os mosquitos atacam mamíferos e gente, o que ocorre no final do verão, que é também quando os casos de contaminação se intensificam. Com as mudanças climáticas, a incidência da doença tem se tornado mais prolongada e mais grave.
Peter Daszak, um dos responsáveis por essa e outras pesquisas no campo da Medicina da Conservação aponta para o fato das doenças emergentes serem causadas pela atividade humana e afirma que as mudanças climáticas as agravarão. Segundo ele, a chave é compreender que as epidemias atuais advém de zoonoses da vida silvestre, como a SARS e o HIV. Estas surgem, em geral, em países com alta biodiversidade, que vêm sofrendo graves impactos na sua cobertura natural original. Seus mapas, publicados na renomada Revista Nature, mostram que no Brasil as regiões com maiores riscos são as mais populosas do sudeste, cujo ambiente natural foi severamente devastado. Seus estudos indicam Bangladesh como o país de maior risco (o que coincide com o caso do vírus Nipah), por ser quente, contar com a mais densa população humana do planeta e ainda alta biodiversidade em pequenas manchas remanescentes.
Daszak ressalta que os esforços mais significativos para o enfrentamento das doenças emergentes estão concentrados nos países ricos. Os Estados Unidos, por exemplo, investe maciçamente nas doenças que conhece internamente, mas deixa de se preocupar com as que surgem em outras partes do mundo, e se surpreende quando é invadido por enfermidades que se originam em um país como Bangladesh. O pesquisador defende que as verbas deveriam ser realocadas às áreas de alta diversidade biológica, pois a facilidade de transportes contribui para a migração de doenças que acabam se tornando epidemias ou até pandemias. Prova disso é a Gripe Suína, ou A (H1N1).
O International Development Research Centre (IDRC), agência do Canadá que apóia pesquisa para o desenvolvimento em várias partes do mundo, implementa programas que visam a saúde do planeta. Em dezembro passado foi um dos responsáveis pela realização de um Congresso em Mérida, México, o Eco-Health, ou Eco-Saúde, que teve a participação de quase 700 pessoas de aproximadamente 70 países. Mesmo que o foco principal do programa Eco-Health do IDRC seja a saúde humana, a visão é ampla, pois seus gestores parecem compreender que as causas das doenças, na maioria das vezes, são de origem ambiental.
Mesmo com todas as evidências, a devastação contínua do mundo natural indica que a humanidade não percebe as benfeitorias invisíveis que a natureza nos proporciona. Os chamados “serviços ambientais” ainda não têm o peso que merecem. Deveriam ser altamente valorizados por representarem a base da vida na Terra e, mais ainda, se o anseio é de uma vida saudável. Esses serviços incluem a purificação do ar e da água, a proteção do solo e a vida de inúmeros organismos que um dia podem se tornar fonte de medicamentos, combatendo essas e outras doenças que vierem a surgir. O fato é que sem um ecossistema sadio não pode haver bem estar para nós e para outras espécies, a não ser para aquelas que se nutrem do desequilíbrio, como as que provocam as doenças emergentes aqui citadas.
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