A ilustre colega e colunista deste O ECO, Maria Tereza Jorge Pádua, escreve interessante artigo sobre o Parque Nacional de Itatiaia, com enfoque para a chamada regularização fundiária da Unidade de Conservação e, em especial, para a questão suscitada pelo Núcleo Colonial de Itatiaia. Tal artigo, pela autoridade e conhecimento da articulista, é da maior relevância, pois discute tema fundamental e que merece reflexão. Ainda que sem ostentar o cabedal de conhecimentos da ilustre articulista, permito-me expor, em tese, alguns argumentos sobre a questão.
O regime de propriedade, tradicionalmente, tem sido dividido em dois grandes grupos, a saber: (i) a propriedade privada e (ii) a propriedade pública. Entendo que, após o advento da Constituição de 1988, a dicotomia tradicional perdeu sentido, haja vista que a normatividade diretamente constitucional que incide sobre o tema é de tal ordem que o melhor é tratar da propriedade como propriedade constitucional, a qual terá aspectos mais marcadamente públicos ou privados, sem deixar de ser essencialmente constitucional. O amadurecimento da compreensão da propriedade constitucional, passou por diversas fases, e, certamente, foi inaugurado pela chamada função social da propriedade , a qual teve como origem forte conflito entre necessidades coletivas, ou assim interpretadas, e o regime particular da propriedade individual. Dado que o direito de propriedade era dotado de contornos que não contemplavam o atendimento às necessidades da coletividade; a solução jurídica encontrada era a desapropriação. Não que a desapropriação e outras “limitações” não fossem possíveis mesmo nos regimes ditos “liberais”.
Contudo, há que se reconhecer que a mudança no status legal do direito de propriedade não se transmite imediatamente às formas de compreensão e interpretação desse mesmo direito. O Constitucionalismo brasileiro, desde 1934, adota o conceito de direito de propriedade como função. Não podemos nos esquecer dos longos períodos autoritários vividos pelo País nas épocas mencionadas.
A ecologia como movimento político, tem como um de seus precursores, o libertarismo, como é o pensamento de Thoreau, contudo, defesa da ecologia e liberalismo político não se confundem. Jared Diamond aponta como exemplo de proteção ao meio ambiente a República Dominicana sob o governo de Balaguer, e o período de Xogunato Tokugawa no Japão. Balaguer exerceu o poder de forma tirânica em São Domingos – o que não é desconhecido, muito menos elogiado por Diamond —, muito embora tenha dedicado grande esforço para a proteção das matas da ilha. É interessante a comparação feita com o Haiti – também uma ditadura no período em questão -, que compartilha com a República Dominicana a ilha Hispaniola. O Haiti é apresentado como exemplo de decadência, visto que fora a colônia francesa mais rica e, em função de uma agricultura intensiva e “monotemática”, acabou arruinando o seu solo, a sua riqueza e, como não poderia deixar de ser, o seu povo.
“Muitas vezes, a participação do público nas questões ambientais não leva em consideração o regime dominial e, logicamente, o titular deve ser incluído no conceito de público, sob pena de violação das normas referentes à propriedade constitucional.” |
A Constituição Federal de 1988 é dotada de princípios fundamentais, cuja finalidade é servir de base para a elaboração, fundamentação e aplicação dos preceitos constitucionais. Todos os Poderes da República devem observá-los. A partir dos princípios fundamentais são estabelecidos diferentes subprincípios que se encontram organicamente articulados e subordinados aos primeiros. No que se refere a esse artigo eles são (i) a dignidade da pessoa humana, (ii) os valores sociais do trabalho e (iii) da livre inciativa . Sem esquecer que, dentre os objetivos fundamentais da República estão os de garantir uma sociedade livre, justa e solidária, bem como promover o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e promover o bem de todos. Há, contudo, que se ter claro que aplicar o Direito e, sobretudo, aplicar a Constituição é ser capaz de dar solução aos problemas concretos que são postos diante da sociedade e do indivíduo. Assim, o Administrador, ao dar cumprimento ao inciso II do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal deve levar as questões acima mencionadas em consideração e, especialmente, fazê-lo em conformidade com os subprincípios constitucionais especialmente voltados para a Administração Pública, tal como estabelecidos pelo caput do artigo 37 da Lei Fundamental . No caso específico, merece relevo, sem desmerecer os demais, o princípio da eficiência administrativa, haja vista que deve, a Administração de buscar os seus fins de forma a causar menos prejuízos para o particular e gastar menos recursos.
A doutrina jusambientalista tem reconhecido, à unanimidade, que um dos princípios fundantes do direito ambiental é o chamado princípio democrático, mediante o qual é reconhecido o direito da população a opinar sobre a adoção de medidas que venham a afetá-la do ponto de vista ambiental. Tal princípio está consolidado em várias leis e, inclusive, na própria Constituição Federal, art. 225, § 1º, inciso IV, que assegura o direito de informação, com vistas à ação em defesa do meio ambiente. Contudo, muitas vezes, a participação do público nas questões ambientais não leva em consideração o regime dominial e, logicamente, o titular deve ser incluído no conceito de público, sob pena de violação das normas referentes à propriedade constitucional.
A atuação do estado para a implementação de direitos constitucionalmente assegurados, sobretudo quando se trata de direitos que são, simultaneamente, individuais e coletivos – os direitos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado são um notável exemplo – deve ser feita de forma equilibrada e, na justa medida do necessário, sobretudo quando implicam no desequilíbrio entre as cargas sofridas pela coletividade e pelo indivíduo. No particular, justifica-se a limitação, especialmente, devido ao fato de que, no caso concreto, a atividade do Estado se caracteriza por uma prestação positiva e não meramente por uma inação. É da própria natureza da prestação positiva que, caso não seja limitada ao mínimo estritamente necessário, ela se desdobre em arbítrio acobertado pelo manto da discricionariedade administrativa, fundada em juízos de conveniência e oportunidade que, em última instância, decorrem de um programa político da maioria, ou na interpretação de tal programa pelos encarregados de implementá-lo.
O ato de criação de uma Unidade de Conservação, por vinculado, está submetido ao controle de legalidade, no sentido de que os pressupostos ambientais e a categoria de UC por ele criada, são elementos de legalidade e não de mérito do ato administrativo. Esta é uma tradição do direito brasileiro que remonta ao célebre julgamento do tombamento do Arco do Teles, realizado pelo Supremo Tribunal Federal ainda na década de 40 do século XX, cujo voto pivotal para definir a possibilidade da sindicância da legalidade no exercício do tombamento proferido pelo Ministro Castro Nunes.
“O meu argumento é que a instituição de UCs do grupo de proteção integral deve se ater ao princípio da proibição de excesso e, portanto, ela somente fará sentido jurídico se impossível a criação de Monumentos Naturais ou Refúgio da Vida Silvestre.” |
O meu argumento é no sentido de que, por vinculada, a instituição de UCs do grupo de proteção integral – em especial – deve se ater ao princípio da proibição de excesso e, portanto, ela somente fará sentido jurídico se impossível a criação de Monumentos Naturais ou Refúgio da Vida Silvestre sem a concordância do proprietário. Veja-se interessante jurisprudência sobre o controle de legalidade de desapropriação de imóvel que já se encontrava tutelado pelo regime de tombamento. O Supremo Tribunal Federal, no Mandado de Segurança nº 19.961 – DF, assim se pronunciou: “Não tem qualquer pertinência a tese sustentada pela Consultoria Jurídica do Ministério da Educação e Cultura, no sentido de que o Poder Judiciário jamais pode apreciar a razão justificadora do ato expropriatório, devendo limitar seu mister à fixação do valor da indenização devida. ……..A própria lei o diz, aliás, na conjugação dos arts. 9º e 20 do Decreto –lei nº 3.365/41: ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificaram ou não os casos de utilidade pública, pelo que a contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou impugnação ao preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta……….No caso examinado nesse precedente, o proprietário rebelava-se contra o tombamento e as restrições e ônus que dele advinham, e pretendia compelir a União a desapreopriar o imóvel. Por isso algumas colocações do voto do Ministro Castro Nunes devem ser desdobradas ou retificadas para o caso presente, que oferece realidade inversa: aqui, os proprietários comformam-se com o tombamento o que até provocaram, e querem impedir a União de desapropriar, porque a conservação e preservação dos bens já estava assegurada, nos termos da legislação especial, or aquela medida restritiva……..Verifica-se desses textos, que devem ser conjugados com o disposto na lei de despropriações, que, ….a única hipótese de desapropriação paar fins de preservação e conservação da coisa tombada como patrimônio histórico e artístico nacional é, efetivamente, a de o proprietário comuniciar ao instituto a necessidade das obras e a sua impossibilidade, por falta de recursos, de realizá-las. Tanto assim é que, tem ele a opção de mandar executar as obras, a expensas da União, ou de promover a desapropriação, providências alternativas que claramente se condicionam à manifestação do proprietário e que, se não tomadas, dão-lhe significativamente, o direito de requerer o cancelamento do tombamento. Por outro lado, só para a realização de obras urgentes é que a lei dá ao instituto a iniciativa, independentemente de comunicação por parte do proprietário.
Resulta que, ao contrário do que ocorre nos demais casos de desapropriação, o proprietário de coisa tombada não pode tê-la expropriada, para fins de preservação e conservação como patrimônio histórico ou artístico, à sua revelia. Deu-lhe a lei o direito de condicionar a expropriação, subordinando-a à denuncia, que lhe cabe a ele, de não dispor de recursos para preservar e conservar o bem. Fá-lo, talvez, em compensação pelas limitações que o tombamento lhe impõe e em homenagem ao apreço que pode etr pelo mesmo bem, apreço e sentimento que não são privilégio de ninguém, nem mesmo das autoridades incumbidas da proteção de tal patrimônio…” (Ministro Xavier de Albuquerque)
Afinal, o que caracterizaria o excesso em ralação à instituição de unidades de conservação? A matéria pode ser examinada por duas vertentes principais (i) a primeira delas seria o excesso no que diz respeito à criação de unidades do grupo de proteção integral em espaços territoriais submetidos ao regime de direito privado. Tal excesso pode ser subdividido em (a) criação de unidades de conservação sem observância de todos os requisitos legais que justificassem a medida e (b) em especial a não indenização prévia do particular e o consequente desapossamento administrativo, ainda que de forma “branca”. A segunda vertente (ii), um pouco mais sutil e, portanto, de difícil caracterização e a criação de unidades de conservação do grupo de proteção integral em terras públicas, com a violação dos direitos da coletividade em usufruir bem público de uso comum do povo de forma mais plena. Aqui, a instituição de um regime de utilização indireta, pode ter consequências graves para populações que legitimamente buscam em tais áreas sua sobrevivência.
A lei nº 9.985/2000, em seus dispositivos estabeleceu um conjunto de regras e normas vinculantes que buscam evitar a prática dos excessos ora mencionados e que, se bem observados, certamente, impedem que a criação arbitrária de unidades de conservação, em especial aquelas do grupo de proteção integral, possa redundar em danos sociais maiores que os benefícios. É de se observar que, ao nível do atual debate judiciário, o cerne da proibição de excesso tem se limitado ao aspecto pecuniário da questão, com a firme decisão das Cortes judiciais em determinar o pagamento de indenizações quando se verifica a instituição de algumas modalidades de unidades de conservação do grupo de proteção integral, sem a transferência do domínio e sem a compensação para o particular.
As Uc são criadas por ato do poder público , de acordo com expressa determinação constitucional , assim, ao administrador não é possível deixar de criar ”em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos”. Ao administrador cumpre identificar os espaços merecedores de proteção especial e instituir as UCs aptas a servirem de proteção aos espaços territoriais e seus componentes. Observe-se que não se cuida de um exagero do constituinte originário a determinação de que as UCs sejam criadas em “todas as unidades da Federação”, pois tal norma deve ser compreendida em harmonia com o § 4º do artigo 225 que estabeleceu diversos biomas como patrimônio nacional , biomas esses que se encontram espalhados em todas as unidades federativas. Relembre-se, por imperioso, que o patrimônio nacional não se confunde com o patrimônio público, como tem sido exaustivamente decidido pelo Supremo Tribunal federal, “Artigo 225, § 4º, da Constituição Federal.
Penso que, no particular, o Constituinte originário não deixou margem de discrição ao Administrador que, uma vez identificados os espaços dignos de proteção, deve estabelecer a UC capaz de dar a melhor proteção possível ao ambiente, levando em consideração que o bem de valor ambiental pode estar submetido ao regime de direito público ou de direito privado. Note-se que a compatibilização dos regimes jurídicos público e privado não é simples, motivo pelo qual o legislador ordinário, ao editar a lei nº 9.985/2000, criou um naipe de variadas UCs que se divide em dois blocos principais (i) as do grupo de proteção integral e (ii) as do grupo de uso sustentável. Tanto umas, quanto outras podem estar sujeitas aos regimes de direito privado ou direito público, incidindo em ambas um regime administrativo tutelar do valor propriamente ambiental que, repita-se, não se confunde com o regime dominial, muito embora sobre ele tenha repercussão. A Lei do SNUC determina em seu artigo 22 que: (i) a criação de uma unidade de conservação deve ser precedida de estudos técnicos e de consulta pública que permitam identificar a localização, a dimensão e os limites mais adequados para a unidade, conforme se dispuser em regulamento; (ii) no processo de consulta , o Poder Público é obrigado a fornecer informações adequadas e inteligíveis à população local e a outras partes interessadas.
Mesmo nos casos de ampliação, a Corte Suprema, tem sido firme no sentido de que é exigível a realização prévia de (i) estudos técnicos e (ii) consulta pública, sob pema de nulidade do ato de criação ou ampliação: “Unidade de conservação. Estação ecológica. Ampliação dos limites originais na medida do acréscimo, mediante decreto do Presidente da República. Inadmissibilidade. Falta de estudos técnicos e de consulta pública. Requisitos prévios não satisfeitos. Nulidade do ato pronunciada. Ofensa a direito líquido e certo. Concessão do mandado de segurança. Inteligência do art. 66, §§ 2º e 6º, da Lei nº 9.985/2000. Votos vencidos. A ampliação dos limites de estação ecológica, sem alteração dos limites originais, exceto pelo acréscimo proposto, não pode ser feita sem observância dos requisitos prévios de estudos técnicos e consulta pública”(Ministro Cézar Peluso)
O Supremo Tribunal federal, em decisão que tem sido pouco abordada, manifestou-se no sentido de que a mera existência de decreto criando parque não é suficiente para sua constituição: “É que a implantação do Parque Nacional Mapiguari – assim como a de toda unidade de proteção integral – não se consuma com o simples decreto de criação, e, muito menos, a desapropriação, com a só declaração de utilidade pública das áreas privadas contidas no perímetro. Não custa, aliás, advertir que a criação dessas unidades pode significar tão-só limitações administrativas que não impliquem transferência de domínio, nos casos em que não haja esvaziamento do conteúdo econômico do direito de propriedade. E, como essa poderá ser a hipótese, não há falar em previsão orçamentária para expropriação ainda não efetivada.”(Ministro Cézar Peluso)
Merece ser afirmado que, infelizmente, tem sido prática muito comum que entes públicos decretem a “criação” de parques – nas três esferas de Poder e não implementem as medidas necessárias para a real constituição da unidade de conservação, muito embora desenvolvam atividades administrativas como se, de fato, as áreas tivessem sido desapropriadas e o domínio privado houvesse sido transferido para o público. Assim, são estabelecidas proibições para as atividades particulares que ultrapassam os limites estabelecidos pelo artigo 22-A da Lei do SNUC , praticando um “desapossamento branco” dos proprietários. A medida é, certamente, ilegal e se caracteriza como abuso de poder ou de autoridade, conforme o caso.
Parece claro que, após o realizar dos estudos previstos em lei e concluindo que a área merece proteção especial, ao administrador cabe, única e exclusivamente, decretar o regime especial de proteção consistente na instituição de uma UC. Aqui cabe uma advertência: a categoria de UC a ser criada deve ser aquela que legalmente atenda aos objetivos específicos de cada uma das diferentes categorias existentes em nosso ordenamento jurídico positivado. Explico-me melhor, se a criação de uma Área de Proteção Ambiental atende aos objetivos protecionistas indicados pelos estudos técnicos, não tem o administrador a discricionariedade administrativa para, em seu lugar, criar um Parque, por exemplo. Inúmeros são os motivos que, em meu pensamento, contribuem para que se chegue a essa conclusão. Passo a alinhá-los.
Em primeiro lugar, (i) há que se registrar que o naipe de Unidades de Conservação postos à disposição do administrador corresponde ao atual nível de compreensão das diferentes modalidades de proteção necessárias para que se possa atingir, simultaneamente, os objetivos de proteção ambiental com o desenvolvimento econômico que, se assim feito, tem-se por sustentável. Em seguida, há que se compatibilizar os direitos da coletividade em usufruir de um meio ambiente equilibrado com os direitos constitucionais dos indivíduos, relativos à propriedade. Sendo certo que, tanto o estado como o indivíduo tem o mesmo dever de proteger o meio ambiente, não é razoável que um deles (o estado) exerça o seu dever, sem que dê ao particular a oportunidade de fazê-lo da forma que lhe seja menos gravosa. Assim, sempre que ecologicamente possível garantir a proteção ambiental sem a violação aos direitos de propriedade pública ou privada, tal fórmula deve ser obrigatoriamente adotada pela Administração. No particular deve ser observado que, no âmbito das UCs do grupo de proteção integral, não há diferença essencial entre os Parques e os Monumentos Naturais, salvo no que diz respeito ao regime dominial, haja vista a possibilidade de criação de Monumentos Naturais em áreas submetida ao regime jurídico de direito privado. Relevante considerar que há precedente de transformação de Parque Nacional em Monumento Natural, mediante a edição da lei nº 11.686, de 2 de junho de 2008 .
A Administração deve instituir UCs que, atingindo os objetivos de proteção identificados nos estudos técnicos que concluíram pela sua necessidade, de maneira menos onerosas para o contribuinte, com a menor mobilização de recursos técnicos, econômicos e financeiros possíveis. Esta é uma determinação da Constituição Federal, como se pode concluir do caput do artigo 37. Cuida-se de uma técnica elementar de administração pública que busca a obtenção dos melhores resultados para a aplicação de recursos escassos. Nem se argumente que os recursos da compensação ambiental não são públicos e, portanto, estariam fora de tais regras.
Devo observar que o direito ambiental tem sido considerado pela doutrina mais autorizada como um direito de novo tipo que não se enquadra nos conceitos tradicionais de direito público ou direito privado, situando-se em patamar inteiramente diverso. Tal concepção, necessariamente, implica em que os institutos jurídicos sejam analisados dentro de uma perspectiva qualitativamente diversa daquela que tradicionalmente tem sido adotada como padrão. Ora, uma compreensão, conforme a Constituição de 1988, do direto de propriedade deve evitar o tradicionalismo, vez que esse foi o objetivo do legislador. Como leciona Tepedino , “não basta, porém, a referência à função social, ainda que considerada como elemento de qualificação jurídica, para a definição dos contornos da propriedade constitucional. Antes, poder-se-ia legitimar ulteriormente o núcleo proprietário tradicional se, …, se continuasse a configurar a relação de propriedade como uma disputa entre o interesse egoístico, tendencialmente pleno …e o interesse social” .
Como sabemos, a função social da propriedade é uma resposta dada aos movimentos socialistas que, em fins do século XIX e começo do Século XX, reivindicavam melhorias em suas condições de vida, renda e trabalho. No contexto em questão, cuidava-se de pleitear a chamada justiça distributiva. Tais movimentos, em diferentes países, tiveram como expressão, como já visto neste trabalho, a Constituição Mexicana de 1910, a Revolução Russa e a Constituição de Weimar. Entre nós, o Diploma Constitucional de 1934 foi o primeiro a tratar do tema da função social da propriedade. Ninguém duvida que o conteúdo da função social da propriedade é facilmente identificável, toda vez que a propriedade não estiver atendendo à sua função tal qual definido em lei, o Estado poderá desapropriá-la, mediante indenização prévia, e destiná-la para funções de interesse ou utilidade pública. Assim, a função social da propriedade é um atributo da propriedade privada. A função ambiental independe do regime dominial, pois uma floresta pública ou privada, desempenha a função ambiental, ou não, sem que o status jurídico de seu proprietário seja relevante. Aliás, somente a desatenção com a realidade pode ver contradição entre regime de propriedade e proteção ao meio ambiente.
A Constituição de 1988, além de ter dado uma nova configuração jurídica à proteção do meio ambiente, estabeleceu em seu capítulo de direitos e garantias individuais, uma importante inovação no que se refere aos direitos individuais, cuja inspiração direta se pode encontrar no princípio constitucional da dignidade humana. Dentre os direitos individuais, certamente, encontra-se o direito de propriedade que, em sua acepção moderna, não e exercem deforma egoística mas, isto sim, de forma solidária. Veja-se o que dispõe o artigo 1228 do Código civil Brasileiro . O legislador do SNUC, no que diz respeito à instituição de UCs do grupo de proteção integral, antecipando-se ao legislador do Código Civil, determinou, no caso específico da instituição de Monumentos Naturais e Refúgios da Vida Silvestre estabeleceu que o “Monumento Natural pode ser constituído por áreas particulares, desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários.” acrescentando que, “havendo incompatibilidade entre os objetivos da área e as atividades privadas ou não havendo aquiescência do proprietário às condições propostas pelo órgão responsável pela administração da unidade para a coexistência do Monumento Natural com o uso da propriedade, a área deve ser desapropriada, de acordo com o que dispõe a lei.” No que concerne ao Refúgio da Vida Silvestre, ele “pode ser constituído por áreas particulares, desde que seja possível compatibilizar os objetivos da unidade com a utilização da terra e dos recursos naturais do local pelos proprietários”, afirmando ainda que: ”havendo incompatibilidade entre os objetivos da área e as atividades privadas ou não havendo aquiescência do proprietário às condições propostas pelo órgão responsável pela administração da unidade para a coexistência do Refúgio de Vida Silvestre com o uso da propriedade, a área deve ser desapropriada, de acordo com o que dispõe a lei.”
Penso que, na verdade, há uma profunda incompreensão do complexo sistema de relações que uma organização política, que se constitui em “Estado Democrático de Direito”, deve manter com os cidadãos com vistas ao desempenho de suas funções fundamentais, dentre as quais se inclui a proteção do meio ambiente que é para o “poder Público e à coletividade [um] … dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.” E mais, parte-se da concepção que a proteção do meio ambiente é um ônus que deve ser suportado pelo cidadão. A proteção ao meio ambiente, certamente, pode ser um ônus, quando esvaziado o conteúdo econômico da propriedade. Contudo, por ser a propriedade um direito amplamente disponível, não há qualquer impedimento para que um indivíduo capaz possa, livremente, abrir mão de parcela de seus poderes inerentes à condição de proprietário. Foi exatamente o que a lei fez. É cada vez mais frequente o número de pessoas que, por motivos diversos e de natureza estritamente privada, consagram parcelas de suas propriedades, ou mesmo a propriedade inteira, à proteção ambiental. Desejam desfrutar da natureza com os familiares e até se sentem orgulhosos de, solidariamente, contribuírem para a salubridade ambiental. Há que se observar que, ontologicamente, não há qualquer distinção que possa justificar o aplauso para o particular que queira estabelecer uma Reserva Particular do Patrimônio Natural – RPPN e a crítica aquele que deseje um Monumento Natural. Em ambos os casos, estamos diante de um ato administrativo negocial, sem que, com isto, se pratique qualquer atentado contra a ordem constitucional. Veja-se que mesmo as desapropriações – forma mais drástica de intervenção na propriedade privada – podem ser realizadas amigavelmente . Não se pode deixar de registrar que a “lei”(Rectius: decreto-lei) de desapropriações é do Estado Novo; ainda ali se admitia um mínimo de negociação entre estado e particular. Nem se diga que a questão se limita ao preço, pois este é um elemento chave no processo expropriatório e, no caso, o Estado deve desapropriar pelo valor de mercado.
Os direitos de propriedade constitucional, certamente, são direitos de liberdade, seja a liberdade individual, seja a liberdade comunitária que são complementares e indissociáveis, haja vista que uma não existe sem a outra, como nos demonstram as experiências totalitárias do Século XX.
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