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Yes, nós temos sertões!

Aprovação da PEC do Cerrado e da Caatinga é o começo para mudar visão equivocada que o Brasil tem dos biomas. Mas a conservação não pode ficar só no discurso.

9 de julho de 2010 · 14 anos atrás
  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

Ninguém deu muita bola, não teve festa de ONGs, nem comentarista na televisão. Mas no último dia 7, um dia após o ataque ruralista ao Código Florestal, uma matéria que tramitava há quase uma década no Congresso foi aprovada no plenário do Senado. A emenda constitucional 51, mais conhecida como a PEC do Cerrado, transformou a savana brasileira e também a Caatinga em Patrimônios Nacionais.  Depende, agora, de uma chancela na Câmara dos Deputados e finalmente uma assinatura presidencial, que se espera não demore o bastante para estrear a caneta do sucessor de Lula.

Pode parecer estranho que a Constituição de um país possa acolher algumas partes de sua riqueza natural, como é agora o caso da Amazônia, da Mata Atlântica e do Pantanal, e simplesmente desprezar outras regiões como se elas não existissem dentro dos mesmos limites que a convenção nos faz chamar de pátria.  Não estamos falando de uma gleba, uma reserva, um rincão; juntos, Cerrado e Caatinga representam 1/3 do território brasileiro.

Mas, como se diz por aí, nada acontece por acaso. Em 1988, quando os constituintes selavam a nova ‘carta-magna’, os agricultores brasileiros, bem assessorados pelos crânios da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) já enxergavam os sinais da vantagem competitiva dos cerradões que se alargavam do Oeste de São Paulo ao Mato Grosso, passando pelo Goiás e as chapadas da Bahia. Um movimento que acabou por ofuscar o rei da soja do Sul, Olacyr de Moraes, e consagrar Blairo Maggi, o monarca de Sapezal, no Mato Grosso.

Queimadas no Brasil Central. Patrimônio Nacional virando fumaça (foto: FIRMS)
Queimadas no Brasil Central. Patrimônio Nacional virando fumaça (foto: FIRMS)

A conquista do Cerrado  que transformou o solo pobre no motor da supremacia agrícola do Brasil é um capítulo da nossa História que sempre merece ser revisitado. Não pelo mérito da pesquisa da turma da Embrapa, mas pela forma como mudou a visão dos nossos sertões. Enquanto a economia comia a ferro e fogo a Mata Atlântica, no sertão vivia índio, quilombola, vaqueiro, “um território vazio”. Depois veio a Capital de JK, as estradas e a soja. Edson Sano, da Embrapa Cerrados, há anos vem dizendo que foi Brasília que começou por matar o sertão. Nem todo mundo concorda e há quem vê mais responsabilidade na ciência da Embrapa.

Mas no fundo não importa de quem é culpa, importa que, de território maldito, o sertão passou a pote de ouro. Um pote de ouro, entretanto, exaurido em ritmo para lá de acelerado. Já é ponto pacífico entre os especialistas que a taxa de desmatamento do Cerrado é hoje superior ao da Amazônia. Mesmo em termos absolutos já há mais território sendo destruído na savana do que na hileia. Algo em torno de 1,4 milhões de hectares por ano, dados do próprio Ministério do Meio Ambiente. Já projeções da ONG Conservação Internacional indicam que, nesta toada, o bioma ficaria, em 2050, com apenas 17% de sua extensão original. Na Caatinga, os números não são tão claros, mas o que sabemos é de uma constante, e desprezada, devastação de matas secas para a produção de carvão, que alimenta polos industriais ineficientes do Ceará ao Sergipe.

Talvez tenha chegado o momento do Brasil esquecer o pote de ouro e  voltar a ser sertão. Não bem o sertão desabitado, pois isso não é possível. Mas o sertão natural e cuja a biodiversidade tão pouco se conhece. Ou o sertão que supre água para boa parte do Brasil, pois ali estão nascentes que alimentam o São Francisco, o Paraná, o Tocantins, o Xingu, só para falar dos maiores. No momento basta olhar para a imagem ao lado para ver que aquilo o que o Senado concordou em chamar de Patrimônio Nacional está pegando fogo. A  foto do sensor MODIS, que capta os focos de calor nos satélites Aqua e Terra da NASA, mostra as inúmeras queimadas que ocorrem no Brasil Central entre junho e novembro. Como se vê elas estão a toda no Tocantins e no Piauí, as últimas fronteiras agropecuárias do Cerrado.

Cerrado e Caatinga têm sido os primos pobres da conservação. Ali o Código Florestal determina que a reserva legal seja menor do que nas áreas da floresta amazônica. Além disso, nenhum dos dois  têm a mesma quantidade  de unidades de conservação que possui a Amazônia, a menina dos olhos de qualquer presidente ou ministro do Meio Ambiente. Tampouco os órgão internacionais, sejam da ONU ou do Banco Mundial, destinaram ao longo dos anos recursos vultosos para estas porções do território nacional.  Isso parece estar mudando, inclusive com um esforço maior de monitoramento por satélite. Até pouco tempo, só a Amazônia era constantemente vigiada.

A emenda constitucional talvez seja um pouco etérea para garantir que os dois biomas vão de fato ser protegidos. Afinal, ela não diz mais nada além de colocar os esquecidos ao lado da Amazônia, Mata Atlântica e Pantanal. Para explicar o que de fato significa alçar Cerrado e Caatinga ao status de Patrimônio Nacional na Constituição, a ministra do Meio Ambiente, Isabela Teixeira, tem dito que, a partir de agora, será uma obrigação do governo tomar mais cuidado dos biomas. Se colocado em prática o discurso,  mais medidas de conservação serão tomadas, entre elas a criação parques, reservas e a imposição de restrições de uso dos recursos naturais. Alguém duvida que vai ter choradeira ruralista no Congresso?

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Reportagem – As várias caras do Cerrado
Mapa – Cerrado em detalhes

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