Recém voltei de uma viagem de dois meses pela Amazônia, quando fiquei totalmente imerso na floresta e no meu computador onde redigi as intermináveis páginas de uma tese que me consumiu o espírito, a paciência e o humor. No período, não dormi três noites seguidas na mesma cama. Cama aliás, foi objeto de luxo. Passei a maior parte das noites em redes ou barracas. Suei por todos os poros, fui comido por esquadrilhas de mosquitos e convivi diuturnamente com persistentes dores no quadril, sequela de uma fratura, que os médicos chamam de “open book”, ocorrida em agosto de 2009, sobre a qual vou contar um pouco mais daqui a pouco.
De volta à casa, abri os jornais e deparei com a chocante notícia do acidente envolvendo Bernardo Collares nos Andes. Fiquei perplexo e gelado por dentro. Bernardo era um grande montanhista e uma pessoa especial. Agregador, idealista e “gente-que-faz”. Apesar disso tudo, partiu cedo, antes da hora. Por que acontecem essas coisas? Há quem diga que o espírito da montanha vez ou outra confisca um corpo. Não sei “se creo en brujas, pero que las hay, las hay”.
Conto uma história que o acidente de Bernardo trouxe de volta à minha cabeça, como se tivesse ocorrido ontem. Há cerca de dois anos, quando ainda morava em Lisboa, fui ao Malaui participar do resgate de Gabriel Buchmann no Monte Mulanje. Antes de embarcar telefonei a pessoas que conheciam o jovem economista para tentar identificar sua proficiência nas atividades de montanha e assim poder melhor aquilatar as decisões tomadas por ele em seu infortúnio. Todas as respostas foram unânimes: Gabriel era excelente montanhista. Sabia navegar, escalar e tinha experiência. Mais do que isso, o garoto era idolatrado pelos amigos que o consideravam inteligente, altruísta e cheio de ideais.
Ao chegar no Malaui encontrei um grupo de resgatistas canadenses. Auxiliados por dezenas de guias locais, embora ainda não tivessem localizado Gabriel, tinham executado um trabalho exemplar e digno de elogios. Uma equipe acampou no cume da montanha (Pico Sapitwa, localizado a 3.000 metros acima do nivel do mar) e a partir dai realizou varreduras circulares descendentes e concêntricas até a altitude de 2.050 metros, vasculhando diversas das centenas de cavernas e fendas existentes na região. Ao mesmo tempo, duplas de guias locais percorreram todas as trilhas e possiveis caminhos de acesso ao cume, procurando também nos rios e vales imediatamente adjacentes. Enquanto isso, outra equipe realizou sucessivos voos de helicóptero, tentando visualizar sinais de Gabriel nos diversos lados da montanha e em diferentes horas do dia, de modo a cobrir todas as incidências de sol e sombras. Na base do Mulanje, unidades da Policia visitaram as aldeias da região pedindo que eventuais informações fossem repassadas imediatamente à Delegacia.
A operação feita pelos canadenses foi registrada em um mapa onde os principais pontos de busca estavam plotados com suas coordenadas de GPS. Analogamente, as trilhas, cavernas e buracos rochosos já investigados encontravam-se marcados a grafite no próprio terreno, medida que auxiliaria na continuação das buscas, evitando a perda de tempo em procuras em locais já checados.
Cheguei a me preparar para subir a montanha com um grupo de guias locais para dar continuidade aos trabalhos de varredura (Gabriel havia desaparecido há 17 dias e os canadenses ja haviam dado a busca por encerrada). Não cheguei a procurar Gabriel. Quando me aprontava para reiniciar as buscas, chegou uma noticia de que Bernard Nyove e Luka White, dois artesãos locais, haviam encontrado um corpo de homem branco, enquanto coletavam capim para a confecção de vassouras na parte alta da montanha. Devido a uma lenda malauiana, segundo a qual o Monte Mulanje é povoado por espiritos malignos que matam qualquer pessoa que o desafie subindo em sua parte alta desacompanhada, os coletores alegaram ter tido medo de se aproximar do corpo e, portanto, não sabiam dizer se a pessoa visualizada estava viva ou morta.
Imediatamente foi montada uma operação de resgate que contou com três equipes. A primeira saiu menos de dez minutos após a noticia. Constou de uma enfermeira, um paramédico e quatro guias locais. De modo a poder caminhar o mais rápido possivel, carregaram consigo apenas água e equipamentos de primeiros socorros. Segui na segunda partida com a namorada de Gabriel, seu irmão e mais um grupo de carregadores, para auxiliar na remoção expedita do corpo de Gabriel, caso ainda se encontrasse vivo. Por fim, o último time seguiu com alimentos, barracas, sacos de dormir e agasalhos para o caso de Gabriel já estar morto e ser necessário que as equipes de resgate pernoitassem na montanha.
Após cerca de quatro horas de caminhada acelerada, membros do primeiro grupo encontraram Gabriel. O corpo estava deitado sobre uma cama improvisada de gramíneas e também coberto por capim, o que sugere uma tentativa do jovem em manter seu calor corporal, mas que acabou funcionando como um disfarce que impediu sua visualização pelo helicóptero ou por qualquer uma das três equipes de busca que em dias anteriores chegaram a procurar em locais a menos de 100 metros do local onde faleceu. Seu braço esquerdo estava embaixo da cabeça, em posição confortável de sono, conhecida como “sleeping position”, posição clássica assumida pela grande maioria dos escaladores que falecem vitimados por hipotermia.
Breve análise das fotos tiradas por Gabriel mostram que ele iniciou sua caminhada com céu claro, mas quando atingiu o Pico Sapitwa o tempo já estava completamente fechado. A fotografia que tirou junto ao marco geodésico dos 3.000 metros mostra densa bruma e forte chuva, cujos pingos chegaram a atingir a lente da câmera. Esse nevoeiro deve ter sido o principal fator que impediu Gabriel de encontrar o caminho de volta, o que não teria sido grande problema caso a temperatura não tivesse caído tanto ou tão rápido (acredita-se que tenha rondado zero grau no topo da montanha no dia em que Gabriel atingiu o pico, bem como nos dois dias seguintes).
Gabriel provou ser um montanhista habilidoso. Desceu imediatamente tentando minimizar os efeitos do vento e procurando altitudes menos frias. No caminho, suas fotografias mostram que encontrou uma pequena caverna, onde despiu-se e procurou secar suas roupas. Novamente, pelas suas fotografias parece que retomou a descida tão logo suas vestimentas secaram um pouco e a chuva parou momentaneamente. Conseguiu vencer grande extensão de terreno em condições muito desfavoráveis. Caminhava apenas com sandálias em solo de matacões pedregosos, extremante escorregadios, com pouca visibilidade e sob muita chuva e frio. Tudo indica que buscava a proteção da floresta mais abaixo, onde vento e chuva incidem com menos intensidade e melhoram as chances de sobrevivência. Chegou muito perto, pois faleceu a 2.000 metros de altitude, há menos de 25 minutos de caminhada da entrada da selva, que provavelmente não viu, devido ao nevoeiro. Sua última foto sugere que já estava deitado no local onde viria a falecer de hipotermia, tal como o laudo da autópsia posteriormente confirmou.
Gabriel Buchman parece ter sido vitima da sua própria excelente condição física e da maestria que tinha em atividades de montanha. Ao que tudo indica subestimou as condições climáticas. Para bons montanhistas, o Monte Mulanje não é uma montanha dificil. As trilhas são bem definidas, contam com boa manutenção e têm sinalização clara e abundante. Os guias que ali trabalham são bem treinados e mostram-se profissionais capazes. Talvez essas facilidades tenham levado Gabriel a achar que não precisava tomar precauções extras em sua caminhada ao Pico Sapitwa. Para um montanhista como ele, que já subira o pico da Neblina, o Kilimanjaro e diversas montanhas no Himalaia, os 3.000 metros do Sapitwa não apresentariam, em condições normais, dificuldade alguma. Dai sua decisão em atingir o cume sozinho e calçando apenas sandálias.
Infelizmente a maioria dos montanhistas brasileiros que conheço tendem a subestimar mudanças bruscas de tempo com quedas vertiginosas de temperatura, uma vez que são raras no Brasil. Este parece ter sido o caso de Gabriel Buchman que, outrossim, demonstrou ter grandes conhecimentos de montanhismo e de técnicas de sobrevivência tendo avancado uma distância muito grande sob condições adversas. Provavelmente, se tivesse respeitado a sinalização do Parque que inequivocamente instruí a todos os montanhistas a “Never climb Peack Sapitwa alone. Parties of four are recommended. Never climb the peak without the proper equipment and warm clothes”, teria se safado. Com sua destreza nas atividades de montanha, um bom par de botas e um casaco para temperaturas abaixo de zero teriam sido ferramentas que talvez salvassem sua vida.
Em 32 anos de montanha, já vi muitos acidentes e diversas fatalidades. Poucas me abalaram tanto quanto a e Gabriel. Nove entre dez montanhistas que conheço já cometeram imprudências como a dele, sem no entanto incorrer em consequências tão trágicas. Eu mesmo já me encontrei em situações espinhosas mais de uma vez, mas fui ajudado pelo destino. É comum aos mais habilidosos serem vítimas de sua própria auto-confiança. É alguém que vai caminhar desacompanhado, ou que decide escalar sem o equipamento de segurança necessário (afinal é uma parede fácil…). O que sucedeu a Gabriel poderia ter acontecido com algum dos meus melhores amigos, poderia ter acontecido comigo…
Por outro lado, este não parece ter sido o caso de Bernardo. Pelo que li e ouvi, o ex-presidente da FEMERJ não foi inconsequente nem descuidado. Mesmo assim, a Montanha o levou. Por quê? É justo? Se ele fêz tudo certo, porque as coisas deram errado? O fato é que, gostemos ou não, o montanhismo é um esporte que envolve riscos. Quem é seu adepto precisa compreender essa premissa básica: a natureza é indomável e tem seus mistérios indecifráveis.
De volta à história do Malaui, quando comecei a tomar as decisões necessárias para a remoção do corpo e seu traslado para o Brasil, fui abordado por um guia local que me disse em tom definitivo:
“Não remova o corpo”
Não entendi. Respondi:
“Como assim, não remova o corpo? Vim aqui para isso”.
“O corpo pertence à montanha. Tem que ficar nela”.
Apontei para a família de Gabriel e disse:
“O corpo não pertence a montanha alguma, pertence aos parentes de Gabriel.”
Meu interlocutor não se deu por vencido:
“ A montanha confiscou o corpo. Se você não impedir sua remoção. Vai pagar caro. Essa montanha é regida por espíritos poderosos. Eles se vingarão de você, e será rápído”.
Nesse ponto, cansado e impaciente, pequei. Não fui humilde, nem respeitoso com as crenças alheias:
“Escute. Não acredito em Deus Todo Poderoso. Logo tampouco acredito em espíritos não tão poderosos. Gabriel voltará para sua família. E pode mandar os espíritos virem que os receberei de braços abertos”.
Virei as costas e continuei meu trabalho. Havia muita burocracia a vencer para conseguir embarcar Gabriel e seu tio no próximo vôo em direção ao Brasil.
Terminada a faina. Descansei um dia e tomei um ônibus em direção à Lilongue, de onde meu avião decolaria de volta à Lisboa. Na estrada fotografei um feiticeiro, desdenhando um pouco de suas crenças.
Cheguei a Lisboa em uma sexta-feira. No domingo montei em minha moto e fui mergulhar na península de Setúbal. Na volta para casa, bati. Não vinha rápido. Estava a 20 km por hora. Quando caí me preocupei mais com a moto do que comigo.
Menos de 24 horas depois fui operado para colocar uma placa e seis parafusos no quadril. De acordo com o médico que me operou, Dr. Mineiro, tive sorte de não ter morrido. Segundo ele, mais de 90% dos casos iguais ao meu rompem a artéria femural e falecem por perda de sangue, antes mesmo da chegada da ambulância. Mineiro também me disse para esquecer as trilhas, por que não acreditava que eu voltaria a ser capaz de fazer montanhismo. Felizmente, suas previsões não se confirmaram e, apesar de conviver com dores, voltei a caminhar.
Semana passada, contei o caso a um sangoma, que é o equivalente sul-africano dos feiticeiros do Malaui. Ele riu. Riu de mim e da minha ingenuidade, ou melhor da minha burrice atávica.
“Como é possível negar a existência do espírito da montanha? É óbvio que ele existe. Mas ele não é mau. Ele é apenas o espírito da montanha. É natural que vez por outra chame um montanhista para ficar ali em sua companhia durante a eternidade. É uma honra para qualquer montanhista ser escolhido. As famílias não devem ficar tristes. Quem fica na montanha, está ao lado do espírito. Será feliz para todo o sempre.”
Mas se o espírito não é mau, porque tentou me matar? provoquei. O sangoma explicou:
“Foi um aviso. Para você aprender a respeitá-lo. Não foi sem razão que ele atingiu suas pernas. Afinal nelas estão o seu coração, não é mesmo? Ele não te quer mal, afinal te permitiu que continuasse trihando e desfrutando as montanhas”.
Será? Apesar de tudo não sou menos cético. A verdade é, todavia, que me conforta buscar refúgio em uma lenda em que almas boas de talentosos montanhistas como Gabriel e Bernardo são escolhidas pelo espírito da entidade que eles mais amavam e respeitavam: a Montanha. Torna sua perda menos brutal e mais romântica. Reconforta a alma. Se non è vero, è ben trovato.
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Lindo e muito instrutivo!! Não sou crente nesses deuses propalados por "empresas da fé", mas não sou ignorante de que talvez não saibamos quase nada da natureza ou bem menos que nosso orgulho gostaria de admitir. Nada como uma boa dose de agnosticismo, que nos traga o mínimo de humildade. Todo o meu respeito ao Gabriel, ao Bernardo e tantos outros que foram atrás de sonhos e desejos tão nobres. Acredito que possam estar desfrutando de todo o conforto que possa haver ne existência eterna.
Grande Zero-Um… acabei de ler seu artigo – grato pela referência!
Realmente, bem parecido com o caso do francês Eric, aqui no Vale do Paraíba em abril de 2018.
Pior para o francês que não tinha experiência em montanhismo (somente no esporte de "corrida de montanha"); mas não tem como não comparar os dois "casos" = perdidos no tempo ruim (abaixo de zero) e morte por hipotermia. Ambos achados 17 dias depois…
Abraços e parabéns pelos textos!