A introdução do conceito de “área consolidada” no Direito Ambiental, prestes a ser aprovada pelo Senado, premia o infrator e o coloca em vantagem econômica sobre quem sempre cumpriu a legislação. Gera insegurança jurídica e fratura a espinha dorsal da democracia, que é o princípio da igualdade de todos perante a lei. Se não fosse o bastante, o pretenso argumento jurídico para fixar em 2008 a data de anistia a desmatadores não tem pé nem cabeça.
O Projeto de Lei da Câmara, o PLC 30/2011, cria o conceito de área rural consolidada: ocupação humana consolidada pré-existente a determinada data, com edificações, benfeitorias e atividades agrossilvopastoris.
Esse projeto, que desfigura os padrões de proteção ambiental estabelecidos pelo Código Florestal hoje em vigor, tramita em velocidade de cruzeiro para ser confirmado no Senado nos próximos dias, sem alterações substanciais que revertam o seu afrouxamento de regras ambientais que vigoram há 50 anos. A emenda substitutiva global do Senado, cujo relatório do Senador Luiz Henrique da Silveira foi aprovado (pela Comissão de Ciência e Tecnologia e pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária), não afastou os riscos que o projeto traz para as áreas de saneamento e recursos hídricos.
A comédia começa com a discussão da data de caracterização do conceito de área rural consolidada.
O Senador Antonio Carlos Valadares apresentou a Emenda n. 51, propondo que a data fosse alterada de julho de 2008 para agosto de 2001 (essa última, data da edição da Medida Provisória nº 2166-67/01, que deu nova redação a vários dispositivos do Código Florestal).
O relator, Senador Luiz Henrique da Silveira, rejeitou referida emenda, afirmando que a data estabelecida para área rural consolidada no PLC 30 de 2011, 22 de julho de 2008, corresponde à edição do Decreto 6.514, pelo qual o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva regulamentou a Lei dos Crimes Ambientais.
Esta data obteve consenso entre as forças políticas da Câmara dos Deputados e o Governo. Porém, a sua suposta racionalidade jurídica é absurda.
Tomemos em consideração em primeiro lugar os limites do decreto do Lula (Decreto n. 6.514/08), um ato normativo do Poder Executivo regulamentando a Lei n. 9.605/98. Esta lei, para quem não sabe, trata dos crimes e infrações administrativas ambientais. Ou seja, de delitos, penas e multas.
O decreto do Lula (6.514, de 2008) não regulamentou jamais o Código Florestal. Nem a Lei 9.605, de 1998, nem esse decreto disciplinavam o uso e ocupação de áreas de preservação permanente. Disposições do decreto 6.514 que extrapolassem os limites da Lei de Crimes e Infrações Administrativas Ambientais (a lei 9.605) seriam de duvidosa legalidade e constitucionalidade.
Exatamente por esse motivo, o decreto do Lula não cuidou em nenhum momento da consolidação de situações irregulares sob a perspectiva do Código Florestal, mas de sua regularização.
Regularização não é permissão para que a degradação seja perpetuada e as multas anistiadas. Trata-se de fixação de um prazo razoável para que os danos ambientais sejam reparados e os proprietários rurais possam, durante esse prazo fixado, recuperar o dano sem o risco de serem multados administrativamente ou processados penalmente.
Disparate Jurídico
“Os artigos 53 e seguintes do Substitutivo do Senado criam um grotesco direito adquirido de poluir, pois eternizam a ocupação e utilização irregular de Áreas de Preservação Permanente.” |
Surpreende, por isso, a confusão que se começou a fazer, desde que os debates no Congresso Nacional se acirraram, entre anistia de multas referentes a irregularidades ocorridas entre 24/8/2001 e 22/7/2008 e a adoção de uma destas duas datas para definição de “área rural consolidada”. De novo, nenhuma das duas datas faz qualquer sentido jurídico.
É claro que a escolha do dia 24 de agosto de 2001 seria menos nefasta. Afinal seriam reparados os danos ambientais em Áreas de Preservação Permanente que tivessem ocorrido nos sete anos e onze meses posteriores.
Mas nem por isso é juridicamente justificável pensar numa ou noutra data para a caracterização de “área rural consolidada”, pois nem a Medida Provisória (n. 2166-67, de 2001) nem qualquer lei ambiental brasileira autoriza a ocupação irregular de Áreas de Preservação Permanente (as APPs).
Na hierarquia das normas jurídicas, em primeiro lugar vem o Código Florestal – que é uma lei ordinária. Suas disposições só podem ser modificadas por outra lei ordinária ou, em caso de urgência ou relevância, por uma Medida Provisória (caso da Medida Provisória n. 2166-67 de 2001). Nenhum decreto, resolução do CONAMA ou portaria do IBAMA podem contrariar o que está estabelecido em lei.
Os artigos 53 e seguintes do Substitutivo do Senado criam um grotesco direito adquirido de poluir, pois eternizam a ocupação e utilização irregular de Áreas de Preservação Permanente. Os efeitos da introdução do conceito de “área consolidada” para as políticas de saneamento, recursos hídricos, meio ambiente e defesa civil são imediatos, pois perpetuam ocupações de áreas rurais e urbanas, em Áreas de Preservação Permanante ao longo dos rios ou de qualquer curso d’água, ao redor de lagoas, lagos ou reservatórios d’água naturais ou artificiais, nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados olhos d’água.
O crime, nesse caso, compensou. Os proprietários que sempre cumpriram as exigências do Código Florestal ou os que foram punidos e recuperaram o ambiente degradado estarão impedidos de explorar estas áreas preservadas; e, de outro, infratores que por décadas afrontam a legislação serão beneficiados com a extinção dos padrões de proteção nas áreas degradadas. Serão senhores de possíveis “Áreas de Degradação Permanente”.
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