A preparação, discussão e aprovação da Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei 9.985 de 18 de julho de 2000) foi um extraordinário e difícil processo que demorou mais de uma década na sociedade, na academia, no CONAMA e oito anos apenas no Congresso Nacional. Como também ocorreu recentemente com a revisão do Código Florestal, essa lei foi fruto de um elaborado consenso entre os mais diversos e às vezes extremos interesses, que no caso incluiu o dos mineradores e o do Ministério de Minas e Energia. Então, como é possível sequer entrar em pauta um projeto de lei que destrói todo o trabalho feito, e mostra absoluto desconhecimento dos antecedentes e das suas implicações?
Prestes a ser votado na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 3.682/2012 não só contém propostas que destroem a essência da Lei 9.985, mas, além disso, comprometem mandados constitucionais como os que se referem aos direitos dos povos indígenas, o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e o direito à preservação do patrimônio natural. Dentre outras medidas, o projeto eliminaria a intangibilidade das áreas protegidas de proteção integral permitindo que até 10% delas sejam utilizados pela mineração. Abriria as áreas protegidas de uso sustentável e as terras indígenas para esta finalidade e para usos energéticos, transferiria o estabelecimento de novas Unidades de Conservação para o Congresso, imporia limitações insuperáveis para o estabelecimento de novas áreas protegidas, permitiria desafetar áreas protegidas por simples decreto presidencial, etc., etc.
Não se requer muita imaginação para vislumbrar o que tais medidas implicariam. De fato, nenhuma área de todas e cada uma das Unidades de Conservação existentes ficaria livre da cobiça dos mineradores. A realidade implica que estes recursos existam em maior ou menor quantidade em todas elas. Como ficariam os planos de manejo, submetidos às descobertas geológicas ou à variação do preço dos minerais? O que ocorreria se as empresas demandassem explorar minérios no setor biologicamente mais importante? Ou, no setor onde existem os maiores atrativos naturais e turísticos? E por onde passariam as estradas ou as ferrovias para extrair o mineral? E que fazer com a inevitável contaminação ambiental gerada pela exploração? Como consolação o projeto diz que os mineradores estariam obrigados a compensar a área mineirada com uma área duas vezes maior. Mas será que o generoso legislador sequer pensou como isso seria viável? Acaso esqueceu que as áreas protegidas se estabelecem onde é ecologicamente necessário que estejam e não em qualquer lugar? Ou não sabe que, em geral, ao redor delas já não existe nenhum espaço natural disponível?
Outras medidas incluídas no projeto são igualmente fatais para o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. Já o governo federal atual decidiu, usando argúcias legais, amputações a Unidades de Conservação importantes com o intuito de construir hidroelétricas e autorizar a passagem de linhas de transmissão e estradas. Alguns estados, como o de Rondônia, tem praticamente eliminado seus sistemas estaduais. Não é difícil prever o que ocorreria se a lei proposta fosse aprovada, dispensando lei específica para alterar, aumentar ou reduzir o tamanho ou limites das Unidades de Conservação. São várias dúzias delas que sucumbiriam apenas no primeiro ano da sua aplicação — dentre elas o Parque Nacional Iguaçu– e, quiçá, todas passariam por isso antes da passagem da primeira década da aprovação da nova lei.
Criação de novas UCs será impossível
Na realidade, o Projeto de Lei 3.682/2012 é, quiçá, sem se ter consciência disso, uma proposta para acabar com a conservação da natureza no Brasil.
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Estabelecer novas Unidades de Conservação, o que já é muito difícil, seria literalmente impossível. Dever-se-ia demonstrar que a área não tem interesse para a mineração (“favorabilidade geológica”) ou para a geração de energia hídrica, a serem determinados pelo órgão competente, ou seja, o setor mineiro e energético. De fato, em qualquer lugar do Brasil há recursos minerais e há água, com a relativa exceção dos desertos onde não obstante pode haver água subterrânea. Tampouco seria possível sequer pensar em estabelecer áreas de proteção ambiental e outras de uso direto ou uso sustentável, pois elas estão antropizadas. As novas áreas protegidas só poderiam ser criadas por lei do Congresso embora contraditoriamente o mesmo projeto de lei proponha que sejam alteradas por decreto. Para dificultar ainda mais a coisa, não se poderia estabelecer novas áreas sem previsão em lei orçamentária dos recursos para a implantação, incluindo recursos para desapropriação da área e pagamento de indenização aos proprietários particulares. Isto é um sonho nunca realizado no passado, mas, que no contexto que se discute é apenas um estorvo adicional.
Na realidade, o Projeto de Lei 3.682/2012 é, quiçá, sem se ter consciência disso, uma proposta para acabar com a conservação da natureza no Brasil. A mineração e a geração de energia são atividades indispensáveis para o desenvolvimento e promovê-las é, sem dúvida, assunto de interesse nacional. Porém, os legisladores têm o dever de evitar destruir com o cotovelo o que seus próprios colegas fizeram com a mão e usando o cérebro. As áreas protegidas assim são chamadas porque protegem a natureza do uso e abuso humano.
Preservar o patrimônio natural é tão necessário para o futuro da nação como a energia ou os minérios. Há lugar para cada atividade como também existe para a agropecuária ou a exploração florestal e pesqueira. Se houver um caso muito especial que requeira abrir uma exceção à regra que as unidades de conservação são essenciais para manter o patrimônio biológico nacional, esse caso deve ser tratado como tal. Para atender um ou outro caso específico não se precisa abrir a comporta que poderia deixar o país sem nenhuma segurança de manter seu patrimônio genético natural, sem mencionar outros serviços ambientais que as áreas protegidas oferecem.
É provável que o senso comum prime e que o Projeto de Lei 3.682/2012 não prospere ou que seja drasticamente alterado. Não parece lógico que o projeto, que mexe com a essência da conservação da diversidade biológica de um país, seja visto numa comissão de minas e energia, onde é óbvio que o tema é desconhecido. Mas, ainda que esse projeto despareça do cenário, ele deixa um rastro amargo e, obviamente, afetará negativamente a boa reputação internacional do Brasil em matéria ambiental, bem ganha e com tanto esforço.
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