Reportagens

Olhares exóticos sobre Paquetá

Árvores centenárias tombadas em 1967 testemunham o processo de especulação imobiliária e a degradação transformarem a natureza da ilha de Paquetá, na Baía de Guanabara (RJ).

Felipe Lobo ·
28 de agosto de 2009 · 15 anos atrás
Vista da Ilha de Paquetá para a Serra dos Órgãos. Foto: Felipe Lobo
Vista da Ilha de Paquetá para a Serra dos Órgãos. Foto: Felipe Lobo

Nos fundos da Baía de Guanabara e próxima às áreas industriais da Petrobras resiste uma ilha repleta de contradições: Paquetá. Ela é ao mesmo tempo admirada e visitada por muitos cariocas, como mais uma atração turística, mas passa ao largo das políticas públicas locais. É por isso que este bairro do Rio de Janeiro cultiva ao mesmo tempo praias bonitas, tranqüilidade e muita poluição, reforçada pelas favelas que já marcam presença em pelo menos metade de seus oito morros.

Para chegar à Paquetá a partir do centro da cidade basta pegar uma barca na Praça XV e aguardar cerca de uma hora. No trajeto de 15 quilômetros tem-se a exata noção de quanto as águas da Baía de Guanabara continuam sujas e como a urbanização tomou o continente sem pedir licença. Apesar de enorme esforço, é difícil imaginar a baía limpa e transparente que recebeu a expedição de Nicolau Durand Villegaignon, oficial que aportou na ilha em 1555 depois de sair do Velho Continente para fundar a França Antártica na América do Sul.

Além dos costumes europeus e da soberba típica das antigas metrópoles, os primeiros colonizadores levaram para a pequena ilha de 1,7 quilômetro quadrado dezenas de espécies exóticas de flora. E, hoje, passear por Paquetá significa esbarrar (literalmente) na sua história ecológica. Afinal, muitas das árvores despejadas pelas grandes caravelas ainda estão de pé. Dez delas foram tombadas no dia 22 de novembro de 1967 pela Divisão de Patrimônio Histórico e Artístico, órgão da Antiga Secretaria de Educação e Cultura. Isso garante que as amendoeiras, jaqueiras, mangueiras, algodoeiras, tamarineiras e a famosa Maria Gorda, baobá símbolo da ilha, só deixarão o bairro por causas naturais.

Esta tamarineira é uma das 10 árvores tombadas em 1967.  As ruas de saibro e as construções estão invadindo seu espaço. Foto: Felipe Lobo
Esta tamarineira é uma das 10 árvores tombadas em 1967. As ruas de saibro e as construções estão invadindo seu espaço. Foto: Felipe Lobo

Mas se engana quem pensa que a preservação das imponentes árvores centenárias se deve à sua relevância para a natureza. “Elas têm importância histórica e paisagística, porque os seus respectivos traçados foram mantidos na abertura de ruas”, afirma Marcelo Cardoso, médico e um dos mais respeitados historiadores de Paquetá. São elas as maiores testemunhas do processo de devastação da Mata Atlântica original da ilha. Junto com as sementes, os franceses tinham na bagagem os instrumentos necessários para derrubar a floresta que cercava os sete quilômetros de perímetro do bairro. Tímido, o processo de ocupação iniciou nesta época, quando o baobá e suas companheiras ainda brotavam. Há uma lacuna de informações nos dois séculos seguintes, mas o que se sabe é que os principais registros sobre a exploração dos recursos naturais de Paquetá foram feitos após a chegada ao Rio de Janeiro da família real portuguesa, em 1808.

“O problema aqui foi o mesmo das cidades. A pesca na baía, principalmente para fazer óleo, a busca por conchas para a cal das construções e, principalmente, o sacrifício de manguezais. A baía hoje se sustenta graças à Área de Preservação Ambiental (APA) de Guapimirim, que ainda ostenta belos mangues”, diz José Lavrador, engenheiro de formação e presidente da Casa de Artes de Paquetá – entidade sem fins lucrativos que visa o desenvolvimento sustentável da ilha com a valorização de sua identidade histórica, cultural e ambiental.

Antiga “Ilha dos amores”

Já adultas e com cerca de vinte metros de altura, as espécies exóticas viram um século XX de expansão imobiliária a todo vapor em seu entorno. As favelas cresceram nos morros com o passar do tempo, e a paisagem dos anos 2000 se transformou muito em relação àquela de quatro décadas atrás. Hoje, cerca de 4.500 pessoas vivem na ilha e quase não existem mais fragmentos da Mata Atlântica nativa. Infelizmente, não há estudos que comprovem a extinção de animais ou o número exato de remanescentes da floresta.   

“Há um paralelo razoável da vegetação original de Paquetá com a que ainda existe hoje na Jurubaíba (outra ilha da Baía de Guanabara). Por exemplo, palmeiras baba-de-boi, cactos e algumas árvores frutíferas silvestres cujas sementes chegaram através dos passarinhos”, diz Cardoso. O seu argumento ganha continuação nas palavras de José Lavrador. “Há bichos como gambás, mas a avifauna caiu muito. E também vêm animais do manguezal da APA de Guapimirim”, informa.

Paquetá depende da prefeitura carioca para cuidar de sua natureza. Pobre ilha. Não há qualquer iniciativa de educação ambiental da população ou projetos de reflorestamento em andamento.  Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da Superintendência de Parques e Jardins disse que não existe um “trabalho efetivo naquela área, a não ser a recuperação de jardineiras que foi feita pela nossa coordenadoria de reflorestamento, mas já tem algum tempo”. Os delimitadores físicos para conter o avanço de favelas, criados há anos, não parecem dar conta do recado.

O baobá Maria Gorda, símbolo da ilha, foi trazido à Paquetá pelos primeiros colonizadores. Uma placa convida os turistas a beijar seu tronco. Foto: Felipe Lobo
O baobá Maria Gorda, símbolo da ilha, foi trazido à Paquetá pelos primeiros colonizadores. Uma placa convida os turistas a beijar seu tronco. Foto: Felipe Lobo

O baobá Maria Gorda, cuja lenda diz que os gestos de carinhos a seu tronco e galhos serão recompensados com sorte eterna, não deve ter boas lembranças do acúmulo crescente de pessoas na ilha onde vive. “Há o desvario da expansão de casas e a falta de uma fiscalização mais eficiente pelo poder público. Por fim, não existem muitas lideranças comunitárias capacitadas para o debate desses problemas com os representantes governamentais”, enumera Cardoso.

Mas não é só de impactos no meio ambiente que vive a “Ilha dos amores”, nome dado por Dom João XI ao seu local de refúgio preferido. De acordo com José Lavrador, que comanda trabalhos sociais na ilha e também uma produtora cultural para receber grupos de visitantes, as águas de Paquetá são próprias para banho na maioria das vezes. “As grandes enseadas da baía são mesmo muito poluídas, mas não chegam aqui. Estamos no canal principal, então a maré se renova duas vezes por dia. Mas quando chove muitos rios sujos acabam na ilha, e daí não pode mergulhar”, diz.

Depois de passar oito anos na Inglaterra a serviço de uma empresa de engenharia, Lavrador decidiu mudar o estilo de vida e foi viver em Paquetá, onde passava férias desde pequeno. Isso faz 17 anos. Hoje, sonha em criar um pólo turístico sustentável na região, com a participação da comunidade. Ela, aliás, ajuda a cuidar do patrimônio histórico e natural do bairro, embora involuntariamente. Não entram carros particulares por lá, o que leva os moradores e visitantes e andarem a pé ou, mais comum, de bicicleta. Charretes também são figurinhas fáceis.

Visão de Paquetá de dentro da Barca, a menos de cinco minutos do porto. Foto: Felipe Lobo
Visão de Paquetá de dentro da Barca, a menos de cinco minutos do porto. Foto: Felipe Lobo

No verão, este antigo paraíso chega a receber 30 mil turistas diariamente, o que dificulta a coleta de lixo realizada pela Companhia Municipal de Limpeza Urbana (Comlurb). O mesmo acontece com o esgoto, tratado na própria ilha em dias normais. Quando as barcas chegam lotadas ao cais, no entanto, os dutos tendem a estourar e os resíduos são enviados por submarinos para o município de São Gonçalo. Cartões postais de Paquetá, as exóticas sabem melhor do que ninguém que a jóia para onde foram trazidas é bonita demais para ser tão negligenciada.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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