Washington D.C., a capital norte-americana, além dos problemas comuns às cidades de seu tamanho, tem a peculiaridade de estar, em sua maior parte, localizada entre dois grandes rios que desembocam no Atlântico – o Potomac e o Anacostia. E, como seria de se esperar, esses rios têm suportado, ao longo dos últimos séculos, uma considerável dose de degradação.
O Anacostia abriga em suas margens a parte da cidade que não costuma ser vista nos cartões postais. O Capitólio, a Casa Branca e as demais construções “famosas” da capital encontram-se próximas ao Potomac que, na posição de papagaio de pirata, acaba recebendo maior destaque e atenção, bem como um cuidado um pouco maior.
As partes onde vive a população de renda mais baixa e onde se localizam os distritos industriais ficam próximas ao Anacostia, que por isso não costuma constar sequer da maioria dos mapas turísticos da cidade. É justamente nessa região que se localiza Kingman Park, construído pelo governo norte-americano por volta de 1930, para abrigar a população afro-americana local – que sempre foi grande, correspondendo, nos dias de hoje a três quartos dos moradores do District of Columbia.
Mas no início da década de 1990, em vez do descaso habitual, essa área começou a receber um excesso de atenção. Washington enfrentava na época dificuldades financeiras, e buscava desesperadamente projetos que pudessem trazer dinheiro para suas contas bancárias. Então, um milionário chamado Jack Kent Cooke, dono de nada menos do que o Chrysler Building, em Nova Iorque, e do jornal Los Angeles Times, que ainda por cima acabara de adquirir o time de futebol americano Washington Redskins, decidiu que queria construir um gigantesco e moderno estádio.
O estádio humildemente levaria o seu nome. E serviria para que seu mais novo empreendimento – o time do Redskins – pudesse treinar às margens do Anacostia. Os gestores públicos aplaudiram euforicamente o projeto. Os habitantes de Kingman Park, nem tanto, porque a construção significaria um considerável aumento no tráfego de veículos na região.
A Associação de Moradores de Kingman Park decidiu agir junto ao Congresso, achando que, por motivos óbvios, não podiam contar com o poder local, ocupado em pressionar o Serviço de Parques Nacionais para aprovar o projeto. Através do deputado democrata Bruce Vento, o assunto foi levado a discussão numa audiência do Sub-comitê de Recursos Naturais, Florestas e Terras Públicas da Câmara. Ali, Bob Dreher, da ONG Earthjustice, representando a Associação de Moradores de Kingman Park e outras associações, expôs os inconvenientes de se construir, em terras de parques públicos, empreendimentos privados, e ameaçando processar Cooke caso o projeto fosse levado adiante.
Robert Boone, da Sociedade das Águas do Anacostia, destacou na audiência o esforço feito para limpar o rio e recuperar seu status de habitat para várias espécies de aves e pequenos mamíferos, salientando que a construção do estádio representaria um grande passo para trás no processo, que por sinal resultava de política posta em marcha pelos governos federal, estadual e local. Cooke não quis testemunhar. Mas, no dia seguinte, o Washigton Post noticiou a audiência, e o estádio acabou sendo construído em outra cidade.
Mais ou menos na mesma época, uma condessa italiana apresentava um projeto de construir, em duas pequenas ilhas artificiais do Anacostia, um parque temático para crianças, composto de uma dúzia de pavilhões e duas pontes, recheadas de lojas, restaurantes e cafés, que ligariam as ilhas ao continente.
Desde o início, o Serviço de Parques Nacionais mostrou-se relutante sobre a aprovação do projeto, mas cedeu às pressões políticas do Conselho da Cidade, declarou que o projeto não necessitava de um estudo de impacto ambiental e transferiu a propriedade das ilhas para o Distrito de Columbia, que imediatamente assinou um contrato de trinta anos com a empreendedora. As ilhas, chamadas Heritage e Kingman, são aterros construídos pelo exército em 1916. Mas atualmente estão cobertas de vegetação, servindo de habitat para inúmeras espécies silvestres, inclusive a águia-calva, que é um símbolo dos Estados Unidos.
Em resposta, a Associação de Moradores de Kingman Park, juntamente com outras organizações, ingressou com uma ação judicial para que a construção do parque fosse precedida de um estudo de impacto ambiental. A decisão judicial acolheu seus pedidos e o projeto foi suspenso.
A condessa e os demais empreendedores, não querendo esperar por tais formalidades, recorreram ao Congresso, onde o argumento de que o distrito precisava desesperadamente de dinheiro foi convincente. Apesar dos esforços, o então presidente Bill Clinton assinou a transferência permanente das ilhas para o distrito, que por sua vez decidiu levar o projeto adiante.
Como um último recurso, o advogado Fern Shepard, que representava os que se opunham à construção do parque, juntamente com seus colegas da recém-formada D.C. Environmental Network, uma associação de cerca de 80 organizações ambientalistas, começou um intenso trabalho de convencimento junto ao Conselho da Cidade e à banca do Congresso responsável por revisar e aprovar a decisão do Conselho sobre o assunto.
Foram apresentadas provas de que diferentes leis obrigavam a execução de um estudo de impacto ambiental, antes que o projeto pudesse ser finalmente aprovado, além de provas de que o parque jamais seria capaz de trazer o benefício financeiro que prometera. Apesar da aprovação do Conselho da Cidade, o Congresso imediatamente vetou o projeto.
Os moradores de Kingman Park ainda se engajariam em mais uma batalha judicial na mesma época. A primeira delas para conseguir abolir um projeto que previa a construção de uma auto-estrada sobre o Anacostia e a construção de uma estrada secundária margeando o rio, sob o argumento de que isso desafogaria o trânsito no centro de Washington.
O projeto, no entanto, violava nada menos do que cinco leis federais. Seria necessária uma aprovação especial do congresso, já que as estradas seriam construídas em área de parque nacional, o que não havia ocorrido. A lei que criou o Departamento de Transportes, por sua vez, proíbe a construção de auto-estradas em terras de parques ao menos que não haja qualquer outra alternativa para se atingir um objetivo. Também não era, evidentemente, o caso. A construção da estrada só traria mais poluição e tráfego para a região.
De sua parte, o governo federal fustigava o prefeito de Washington, dizendo que, caso o projeto fosse rejeitado, a cidade teria que pagar uma indenização de 20 milhões de dólares pelo planejamento realizado, argumento que mais tarde viria admitir não ter qualquer embasamento legal.
Em preparação para os processos, os advogados das organizações tiveram acesso a documentos, demonstrando que a terra que seria removida para a construção das estradas continha altíssimos níveis de contaminação por chumbo. O plano dos construtores da estrada – que já sabiam desse fato há cinco anos – era ocultar essa informação e simplesmente retirar a terra contaminada em caminhões e despejá-la em algum outro lugar.
Isso mudava tudo. O apoio ao projeto começou a murchar. Um novo estudo de impacto ambiental foi exigido, apesar de o Departamento de Estradas insistir que ele era desnecessário. O medo da reação pública ao fato de que seu governo havia omitido, deliberadamente, tal informação, enfraqueceu os argumentos a favor da construção, o que culminou com o veto do Conselho da Cidade a um contrato fundamental para a realização do projeto. O dinheiro que nele seria empregado acabou sendo usado para melhorar as estradas e pontes já existentes.
* * *
A história acima aconteceu nos Estados Unidos, mas poderia muito bem ser brasileira. O Brasil tem todos os elementos para que a sociedade aja dessa forma, ativamente lutando contra a degradação ambiental.
Nossa legislação, se não é perfeita, nos fornece muitos instrumentos para tanto. Basta ver que a França acaba de comemorar a inclusão em sua Constituição de um artigo que prevê o direito de todo cidadão a um meio ambiente saudável. Nós temos isso desde 1988. É exatamente o que diz o artigo 225 da nossa Constituição Federal. Pena que pouca gente saiba disso.
Danos ambientais também não nos faltam. Hoje, para onde quer que se olhe, é mais fácil vê-los do que não enxergá-los. E os responsáveis, na grande maioria das vezes, também não são difíceis de achar.
O que nos falta então? Talvez informação. A grande maioria da população não sabe o que é dano ambiental. Desconhece suas conseqüências e os instrumentos de que dispõe para combatê-lo. Talvez nos falte um pouco do que os norte-americanos têm de sobra, que é o hábito de lutar na justiça por seus direitos, enfrentando seja quem for – de milionários a condessas ao Presidente da República.
O objetivo desta coluna será, daqui por diante, apresentar casos de sucesso na defesa do meio ambiente, inclusive o belíssimo trabalho que o Ministério Público realiza em diversos cantos do país. Com eles, tentar propor soluções jurídicas para os nossos próprios problemas, que são muitos. E até fazer eventuais denúncias, para, aos poucos, tentar ajudar o nosso direito ambiental a amadurecer. Sem deixar por isso de ficar mais verde.
Estou aqui principalmente para ouvir sugestões e procurar a resposta às perguntas dos leitores, de preferência os leitores que estiverem interessados em usar a lei para defender seu direito a viver num país limpo, saudável e decente. Espero que elas cheguem depressa, pelo endereço eletrônico que está no cabeçalho desta página.
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