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Água mole em cabeça dura

Enquanto a Justiça e o Ministério Público brigam pelas margens do Rio Piabanha, em Petrópolis, as invasões se multiplicam e os danos ambientais crescem.

8 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

O ingresso na carreira pública, especialmente em cargos junto ao Poder Judiciário, tem sido, por anos, o sonho de muitos brasileiros. Os mais concorridos e desejados são os da magistratura. O caminho é recompensador, mas chegar ao seu final requer um grande sacrifício. Anos se passam em dias com 10, 12 ou até mais horas diárias de estudos, na tentativa de apreender o máximo que se consegue sobre todos os ramos do direito.

A verdade é que isso tem um efeito extremamente benéfico, que é o de apenas permitir o ingresso, numa carreira de tamanha importância, de pessoas muito bem preparadas. O “concursando” supera de longe o “vestibulando” em matéria de estiva intelectual. Ao menos em se tratando de questões jurídicas, essas pessoas sabem praticamente tudo o que há para saber. O efeito maléfico, no entanto, é que em alguns casos – para nossa sorte, na minoria deles – a pessoa aprovada no concurso desenvolve uma espécie de síndrome de sabichão. Por saber muito a respeito das questões jurídicas, acha que se tornou autoridade em tudo.

Nessa semana, o Dr. Ronald Pietre, um juiz de Petrópolis, ganhou as páginas dos jornais, aparentemente acometido da tal síndrome, por ter proferido duas decisões julgando improcedentes ações civis públicas ambientais, movidas pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. O que tornou as decisões notórias não foi, no entanto, o simples fato de ter negado provimento às ações, mas a maneira como o fez. O ilustre magistrado abusou da ironia em seus argumentos, desferindo golpes, do alto de sua frágil magnitude, contra o Ministério Público, o Legislativo e seus próprios colegas de Judiciário.

As ações movidas pelo Ministério Público tinham por objetivo obrigar o Estado do Rio de Janeiro e o Município de Petrópolis a assentar, em local digno, famílias que haviam construído suas casas em áreas de mata ciliar, próximas às margens do Rio Piabanha. A motivação para tanto é que as matas ciliares são consideradas, pelo art. 2º, a, do Código Florestal (Lei nº 4.771/65) áreas de proteção permanente, por seu papel fundamental na preservação dos cursos d’água que margeiam.

Apesar disso, as decisões proferidas afirmam serem as ações completamente desprovidas de razoabilidade, bom senso e coerência, diante do inegável fato de que “o meio ambiente existe para servir ao homem, e não ao contrário”. Sob esta ótica, não haveria qualquer discrepância em sacrificar o meio ambiente quando está em jogo a própria habitação de algumas famílias de baixa renda. No confronto entre o meio ambiente e o que o Dr. Ronald chama de dignidade da pessoa humana, esta deve prevalecer, a qualquer custo.

Além do mais, as decisões trazem outros pontos de vista bastante peculiares acerca da legislação ambiental brasileira, que ironiza e desdenha, e sobre temas diretamente ligados à ecologia. Podemos citar, por exemplo, a idéia de que a destruição das casas que hoje se encontram nas áreas de proteção permanente geraria um entulho que, necessariamente, seria de difícil disposição, transformando-se em um outro problema ambiental. Nesse ponto, o Dr. Ronald que me desculpe, mas poderia ter se informado melhor.

Uma rápida pesquisa na internet, utilizando-se as palavras “entulho” e “reciclagem”, nos revela, dependendo da ferramenta de busca utilizada, algumas centenas de páginas que tratam da reciclagem do entulho oriundo da construção civil. Várias dessas páginas ensinam que os resíduos de demolições podem ser utilizados para a fabricação de materiais de construção como areia, brita, tubos e placas. Tudo isso por um custo muito inferior ao dos materiais comumente utilizados – podem representar uma economia de até 80% – sem, é claro, abrir mão da qualidade. Estudos realizados pela USP, por exemplo, concluíram que o concreto feito com elementos de entulho pode possuir uma resistência igual ou superior ao concreto comum.

Essa não é a última das inconsistências das decisões proferidas. O Dr. Ronald ridiculariza os dispositivos de nossa legislação ambiental, que colocam entre as áreas de proteção permanente os topos de morros e as encostas com inclinações superiores a 45 graus. Segundo ele, se estes dispositivos fossem aplicados, as cidades de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo teriam que ser postas abaixo e seus milhares de habitantes removidos. O mesmo ocorreria com as favelas.

No entanto, bastaria que o brilhante magistrado olhasse para fora da janela de seu gabinete para ver que Petrópolis, assim como as demais cidades mencionadas, apesar de sua relativa altitude, não foi construída no topo de um morro, mas em um vale. Por motivos óbvios: no topo dos morros, venta muito, caem mais raios, o relevo é desfavorável e dificilmente há água potável. Até as favelas, se pudessem, evitariam o topo dos morros, porque são lugares de difícil acesso, o que fica muito claro para quem precisa subir a pé.

Já no caso das encostas muito inclinadas, há uma dupla razão para que nelas não se construa. Primeiramente, seu desmatamento abre caminho para um acelerado processo de erosão e empobrecimento do solo. Em segundo lugar, para uma construção erguida sobre um terreno com 45 graus de inclinação o risco de desabamento é muito grande. Aliás, não é necessário um grande esforço de memória para se lembrar da última vez que isso aconteceu. Por todo o Brasil, basta que venha a temporada das chuvas mais fortes, os casos de desabamento começam a virar notícia. Se o Poder Público se habituasse a tomar medidas mais enérgicas contra construções irregulares, talvez muitas tragédias desse tipo fossem evitadas.

Mas o Poder Público não se mete com esse problema porque, como as margens de rio, as tragédias não têm dono. O Dr. Ronald alega que as casas que o Ministério Público queria ver desocupadas e demolidas são as próprias vidas de seus moradores. Ora, estando estas mesmas casas às margens de cursos d’água, elas ficam muito mais sujeitas a desabamentos e enxurradas, como se sabe. Tirar essas pessoas dali pode salvar suas vidas. As casas, nesse caso, podem representar não a vida, mas a morte de muitos.

Outro momento em que o Dr. Ronald vai além do que os seus conhecimentos gerais lhe permitiriam é quando alega – e aqui faço questão de transcrever na íntegra – que “a árvore renasce, basta que se plante outra espécie. O homem não. A evolução científica vem garantindo a possibilidade de recomposição ambiental. Na seara humana isso não ocorre. as enfermidades deixam seqüelas e a medicina jamais evitará a morte de um ser humano”. Usando o jargão jurídico: data venia, a afirmação não poderia ser mais infeliz.

Vamos por partes. Uma floresta não é apenas o somatório de suas árvores. Derrubada uma mata de cem árvores, não basta que se plantem outras cem, alguns metros adiante, para se dizer que o meio ambiente não sofreu dano. Uma floresta, um bosque que seja, é um ecossistema complexo, com vegetais superiores, inferiores, fauna – bactérias incluídas – e até umidade próprios. O replantio de árvores não recompõe a biota que se foi. O sistema se perde.

A evolução científica não vem garantindo a possibilidade de recomposição ambiental. Todos os esforços feitos pela humanidade, até o momento, nada mais fizeram do que minimizar o gigantesco estrago que provocamos, todos os dias, sobre o meio ambiente. Na verdade, tudo o que logramos até o momento foi reduzir o ritmo de destruição, e assim mesmo só nos lugares onde a legislação ambiental é levada a sério.

Ao mesmo tempo, felizmente os últimos séculos assistiram a incontáveis avanços no campo da medicina, o que não deixa de ser uma pressão ambiental, pelo fato de que a população humana mundial passou para sete bilhões de habitantes na virada do milênio. De onde ele tirou a idéia de que a ciência não é capaz de salvar vidas humanas? Será dos hospitais de Petrópolis? Convenhamos que a penicilina, os antibióticos em geral, as modernas técnicas cirúrgicas, as próteses e os transplantes desmentem essa impressão. Não faz muito tempo, as pessoas morriam de unha encravada, nó nas tripas e apendicite.

Ainda, seguindo a tendência atual de se culparem as exigências ambientais pelo atraso na realização de algumas obras públicas, o ilustre juiz atribui a supostas “exigências ambientais exageradas” o número de acidentes fatais num determinado trecho da Rodovia Régis Bittencourt. Segundo ele, as obras de duplicação, atrasadas por pendências ambientais, são responsáveis pelo grande número de mortes no trecho. “Preservam-se as árvores e enterram-se os cadáveres. Lindo!” afirma. Não cogita sequer da possibilidade de, ao invés de culpar o meio ambiente, educar e punir os motoristas imprudentes. Isso não. É melhor lhes dar logo mais duas, três, quatro pistas, para que eles possam correr à vontade.

A verdade é que essas decisões são muito bem fundamentadas no aspecto jurídico, trazendo na maior parte do tempo argumentos consistentes e pertinentes, como seria de se esperar. Pecam, no entanto, ao tratar com desdém e superficialidade um problema muito complexo. As questões sociais no Brasil não podem ser ignoradas, mas o Judiciário precisa, urgentemente, aprender a pensar no longo prazo. O meio ambiente, mais do que um direito assegurado a todos pela Constituição Federal, é substrato essencial à própria vida. Quando houver escassez de água doce e a qualidade do ar for insuportável, questões como a dignidade da pessoa humana e o direito de propriedade serão vistas sob uma nova perspectiva, mas provavelmente será tarde demais.

Por outro lado, pretender demolir, da noite para o dia, mais de quatrocentas casas pode não ser a melhor solução para o problema de construções em áreas de preservação permanente. Pode ser até inviável. Talvez uma solução alternativa fosse a melhor saída. Um Termo de Ajustamento de Conduta, impedindo a expansão das construções já existentes e obrigando-as a ter uma eficiente rede de esgotos – o que certamente elas não têm, poluindo o rio perto do qual foram construídas – poderia ser uma boa idéia. Afinal, esse processo já rola há mais de quatro anos e, enquanto tramita, as casas crescem sem nenhuma forma de controle. Proibir novas construções e obrigá-las a recompor, na medida do possível a mata ciliar, também seria uma boa idéia. No caso, faltou razoabilidade e flexibilidade a ambas as partes. O meio ambiente e todos nós, portanto, saímos perdendo.

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