Na sua edição de setembro passado, a revista norte-americana Outside dedicou sua matéria de capa a uma análise da situação das expedições guiadas ao teto do mundo, 10 anos após a trágica temporada que deu origem ao clássico (ao menos no meio “montanhístico”) No Ar Rarefeito, de Jon Krakauer. Desde o lançamento do livro, o circo em que se transformou a montanha deixou de ser segredo para o mundo e, por isso, nesse aspecto, a reportagem é mais uma espécie de “recordar é viver” do que a última novidade sobre o assunto (o que não diminui, em nada, a sua qualidade enquanto leitura). Um ponto, contudo, chama a atenção, especialmente de quem, como eu, gosta de esportes “de aventura” e até quem não acha o direito algo insuportável. Trata-se da história do primeiro caso judicial que discute a responsabilidade de uma operadora de turismo pela morte de um cliente, que pagou para ser guiado aos 8.848 metros do topo do Everest.
O caso Matthews
Michael Matthews tornou-se, em 13 de maio de 1999, com 22 anos de idade, o inglês mais jovem a pôr os pés no cume do Everest, poucas horas antes de desaparecer, para sempre, em uma tempestade na descida (onde a maioria dos acidentes acontece). Ele havia pago cerca de US$ 40.000 a uma operadora de turismo que lhe forneceria toda a infra-estrutura, os guias e os equipamentos necessários, para possibilitar e facilitar, ao máximo, a sua subida. O caso não é nada incomum. Os anos em que pelo menos um cliente de expedições comerciais não morre no Everest têm se tornado coisa rara, o que não tem feito diminuir, em nada, a procura por esse tipo de serviço.
O que diferencia o caso de Matthews dos demais, portanto, é apenas o fato de que o seu pai entrou na justiça com dois processos — um cível e um criminal —, para buscar uma indenização e a punição dos “responsáveis” pela morte do seu filho. Na esfera cível, foi feito um acordo, cujos termos são desconhecidos, mas em que a operadora pagou uma indenização. No processo criminal, contudo, os sócios da empresa são acusados de homicídio culposo.
Segundo o pai de Michael, a operadora de turismo foi negligente e forneceu ao seu filho equipamentos (cilindros de oxigênio) adaptados e reaproveitados, cujo mal funcionamento teria contribuído — ou até mesmo causado — a morte de Michael, alegação que se baseia em queixas feitas por outro cliente da empresa. A operadora se defende, alegando que os equipamentos foram testados e que funcionavam perfeitamente bem e que a morte de Michael foi uma fatalidade. Essa discussão, levada para a Corte da Coroa de Southwark, na Inglaterra, colocou na berlinda uma atividade que movimenta muitos milhões de dólares por ano e que é, de longe, a maior fonte de renda do Nepal. Se pouco se ouviu falar dela é porque uma medida liminar impede que as partes envolvidas no processo falem com a imprensa sobre o caso.
No que diz respeito ao processo, a reportagem da Outside pára por aí. Mas há mais. Na página do The Times e do Sunday Times tem uma matéria falando sobre a decisão proferida pelo juiz de Southwark. Segundo ele, “a lei criminal não tem como propósito reprimir o espírito de aventura ou inibir ambições pessoais” e que a morte de Matthews foi “mais um dos muitos acidentes trágicos pelos quais o Monte Everest …… tem se tornado merecidamente famoso”.
O Precedente
A matéria do The Times lembra que a decisão estabelece um importante precedente, contrariando a jurisprudência até então existente em casos semelhantes. Em 1997, no caso Woodroffe-Hedley vs. Cuthbertson este, um renomado guia de montanha aceitou guiar Gerry Hedley em uma escalada no Mont Blanc por £ 500. Com medo de que as condições do gelo na via piorassem com o calor do dia, Cuthbertson decidiu alterar a rota da escalada para um ponto na sombra. Na pressa de fazer a transição, ao invés de proteger seu ponto de parada colocando dois parafusos de gelo — como mandam os costumes da escalada — ele colocou apenas um. Nesse momento, por uma infelicidade, uma grande placa de gelo se desprendeu, matando o seu cliente. Nesse caso, a justiça inglesa considerou Cuthbertson culpado pela morte de Hedley “porque sua conduta foi abaixo do padrão esperado de um guia alpino razoavelmente competente e cuidadoso.”
A questão permanece em aberto, portanto, no que diz respeito a até que ponto os guias e instrutores são responsáveis pelas vidas de seus clientes durante a prática de esportes “de risco”. Se, por um lado, qualquer pessoa que se meta a escalar uma montanha, ou a saltar de pára-quedas, ou a surfar, enfim, a praticar tais esportes, sabe que é justamente o risco que torna tais atividades interessantes, por outro lado, ao contratar uma empresa com profissionais da atividade, essa mesma pessoa tem o direito de esperar que todas as medidas de precaução cabíveis sejam tomadas. É aí que a linha se torna tênue. Até que ponto um guia pode ser responsável por seus clientes a mais de 8 mil metros de altitude, em meio a uma tempestade e com o cérebro há dias sem receber oxigenação adequada? Até que ponto o professor de escalada ou de surf pode ser responsabilizado pela queda de uma pedra, pela falha de uma proteção ou por uma onda maior que pega o seu aluno desprevenido?
Essas são questões que têm se tornado cada vez mais acalorada em diversas partes do mundo, inclusive aqui no Brasil, e que ainda estão longe de chegar a um fim. Por aqui, elas ainda não chegaram ao Judiciário, mas isso não deve demorar. É inegável que entre o cliente e o guia, ou entre o aluno e o professor, há uma relação de consumo, mas trata-se de uma relação que envolve tantas variáveis, tantas particularidades, que o nosso Código de Defesa do Consumidor, por si só, não chega nem perto de solucionar os problemas decorrentes desses casos. A lei e os costumes — especialmente aqueles inerentes a cada uma dessas atividades — terão que sofrer extensas interpretações até darem conta dessa nova realidade, que veio para ficar.
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