Voltar de férias sempre foi, para mim, um tanto traumático. Os vilões sempre foram os mesmos: a escola, a faculdade ou o trabalho. Dessa vez, contudo, voltando para o Rio depois de uns dias em Paris, além do retorno ao batente e ao seu mais desumano efeito colateral, que é o uso do terno no verão carioca, uma outra coisa começou a me irritar profundamente: a volta aos ônibus do Rio.
É aquela velha história do bode fedorento na sala. Ele é incômodo, mas você se acostuma com a sua presença, com o desconforto. No entanto, se algum dia você tira férias do bode, ou se o bode tira férias da sala, e você percebe como é bom viver sem ele por perto, quando você — ou ele — voltar das férias, o desconforto inicial volta junto.
Os ônibus do Rio são agressivos demais, numerosos demais, barulhentos e poluentes demais. Tudo bem que não dá para comparar. Enquanto em Paris o metrô representa quase sempre a melhor alternativa para se locomover entre dois pontos da cidade, transportando, consequentemente, um grande percentual das pessoas que se utilizam do transporte público, no Rio os ônibus têm que fazer esse papel praticamente sozinhos, já que o arremedo de ferrorama que nos serve de metrô só tem duas linhas bastante limitadas e que crescem a passo de cágado. Mas isso só explica o grande número deles nas ruas. O barulho e a fumaceira, não.
A idade da frota também não me parece ser a razão disso. Mesmo os ônibus evidentemente novos em sua grande maioria só apresentam sinais de modernização (estética) no desenho da carroceria e do interior. O barulho, seja para quem está dentro ou fora dele praticamente não diminui. Nem nas acelerações, nem nas freadas. Mesmo quem não anda de ônibus no Rio sabe bem do que eu estou falando. Não sei se se trata de falta de isolamento acústico do cofre do motor ou de trocar os motores por outros mais modernos e de abolir os ruidosos freios a ar, mas é evidente que os cariocas têm sido obrigados a conviver com níveis de poluição desnecessariamente altos.
E antes que alguém diga que esta coluna nada mais é do que uma crise de bestice que vai passar logo, saibam que não é a primeira vez que esse problema me afeta. Há cerca de um ano, quando eu aluguei o apartamento onde vivo e saí da casa dos meus pais, eu passei as duas primeiras noites inteiramente em claro. E não foi nenhuma crise de saudade da mamãe. O problema foi o ponto de ônibus que fica a cerca de 50 metros do meu prédio e os ônibus que nele param e arrancam a noite inteira, em intervalos de menos de cinco minutos. Acostumado a dormir em uma rua tranqüila, aquilo me parecia uma versão moderna daquela tortura chinesa da torneira que pinga sem parar. Toda vez que eu estava quase pegando no sono vinha aquele barulho de freada, seguido de uma aceleração vagarosa, barulhenta e irritante.
Esse verdadeiro tormento auditivo é reconhecido e tratado na Lei Estadual 4.324, de 12.5.04, que “estabelece diretrizes visando a garantia da saúde auditiva da população do estado do Rio de Janeiro”.
Depois de definir o que seria poluição sonora (ruído capaz de causar insônia é uma das definições legais), e de afirmar que ela deve ser combatida “de todas as maneiras e com o emprego de todos os recursos disponíveis”, a lei, em seu art. 3º, identifica como sendo “as mais importantes fontes de poluição sonora urbana: I – Os transportes urbanos tais como carros, caminhões, ônibus, vans, kombis, entre outros veículos automotivos.”
As resoluções do Conama que tratam do tema estabelecem limites para a emissão tanto de gases poluentes quanto de ruídos pelos ônibus. A Resolução Conama 272/00, por exemplo, que hoje regulamenta o assunto, estabelece os limites máximos de emissão de ruídos para esses veículos entre 78 e 80 decibéis, o que deve ser verificado quando do licenciamento anual veicular.
Nesse caso, me parece que, de duas, uma: ou 80 decibéis é muito barulho, ou ninguém está cumprindo a lei. Se for o segundo caso, o problema é o mesmo de sempre: a absoluta falta de competência e preparo dos nosso órgãos fiscalizadores e a conivência das autoridades responsáveis por fazer cumprir a lei. Se for o primeiro, no entanto, já passou da hora do Conama editar uma nova Resolução, baixando esses limites. Se construir aqui um metrô como o de Paris (ou até mesmo como o de São Paulo) pode levar mais dois mil anos, renovar a frota de ônibus com veículos menos poluentes pode ser uma solução mais simples e de médio prazo.
E que as últimas férias me mostraram que é perfeitamente possível viver sem esse bode na sala.
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