Ele está ali. Delimitado pela fronteira com o Tocantins ao norte, pelo Distrito Federal ao sul, pelos lagos das Usinas Hidroelétricas de Serra da Mesa e de Cana Brava a oeste e pelo vale do Rio Paranã a leste. É o último grande remanescente de vegetação nativa do estado de Goiás. Com quase dois milhões de hectares de remanescentes naturais, o norte Goiano é o que ainda resta de mais significativo do Estado central do Cerrado. Mas conservar esse patrimônio natural parece não estar nos planos do governo de Goiás.
O último naco de Goiás não está ali por acaso. É resultado do histórico desinteresse político pelo norte do Estado, formado principalmente por municípios pobres, isolados, com solos rochosos, pouco adequados à agropecuária. Esse desinteresse poupou essa região da rápida ocupação (e devastação) observada em outras regiões, especialmente a partir da década de 1960.
Os poucos espasmos econômicos do norte de Goiás foram geralmente associados à exploração mineral, notadamente do ciclo do ouro. Por conta do ouro, vilas surgiram e viraram cidades (como Cavalcante), enquanto outras surgiram e desapareceram sem deixar (quase) nenhum rastro (como São Félix). Um dos mais marcantes resultados desses espasmos minerários foi o estabelecimento dos Calungas, população formada por escravos libertos levados à região pelos aventureiros que buscavam enriquecimento com base no garimpo, na conquista de territórios e no aprisionamento de indígenas. Na confluência entre os rios Bagagem e Maranhão existiu um presídio de indígenas no século XIX, cujas ruínas hoje jazem sob as águas do ignóbil lago de Serra da Mesa.
Dos Crixás, Xerentes, Caiapós e Avás-Canoeiros que perambulavam os ermos vãos, matas, chapadas e serras dos vales dos rios Maranhão, Tocantins e Paranã, restam hoje apenas seis Avás-Canoeiros, sobreviventes ao último massacre na região, ocorrido em 1976. Para celebrar a paz, o último grupo de Avás-Canoeiros foi convidado para uma festa. Bebida e comida à vontade. Quando o grupo dormia em um barracão após o festim, fazendeiros abriram fogo e mataram a todos, com exceção de duas mulheres e duas crianças que fugiram. Os mais jovens dos seis remanescentes são filhos do casal de crianças (hoje adultos) que escaparam ao massacre. Parece que certas coisas, no Brasil, não mudam. Só pioram.
“Assim, Formosa dos Couros estava economicamente ligada à Veadeiros (hoje Alto Paraíso de Goiás) pelo comércio do couro de veados campeiros (Ozotocerus bezoarticus), obtidos pelos caçadores especializados na caça ao veado (os veadeiros) na Chapada dos Veadeiros”
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Mesmo os garimpos não desapareceram por completo. Ainda existem garimpos conhecidos como Rio Vermelho e Vila Veneno, encravados em vales profundos na região entre Cavalcante e Minaçu.
O Sertão de Goiás… Os grandes vazios localizados ao norte do Arraial de Formosa dos Couros até o atual estado do Pará. Embora a origem do nome do Arraial dos Couros seja controverso, diversos autores consideram plausível que o Arraial era um importante ponto de venda de couros de diversos animais, domésticos e silvestres. Assim, Formosa dos Couros estava economicamente ligada à Veadeiros (hoje Alto Paraíso de Goiás) pelo comércio do couro de veados campeiros (Ozotocerus bezoarticus), obtidos pelos caçadores especializados na caça ao veado (os veadeiros) na Chapada dos Veadeiros (parcialmente protegida hoje pelo Parque Nacional homônimo). Os animais eram escalpelados na região do rio dos Couros e os couros daí partiam em tropas de mulas, passando por localidades como Pedra de Amolar, Jatobalzinho, São João da Aliança, até alcançarem Formosa dos Couros (atual Formosa), localizada na antiga estrada que ligava o Rio de Janeiro a Salvador, e conectando localidades próximas, como Paracatu, Santa Luzia (atual Luziânia), Mestre D´Armas (atual Planaltina). O trajeto original desta estrada corresponde, em grande parte, ao traçado atual das rodovias BR 040 e 020.
Acabou o ouro de aluvião, acabaram os veados, sobraram as pessoas, muitas isoladas em pequenas propriedades ou em vilarejos, compostos em sua maioria por descendentes de escravos e pela população mestiça típica do fantástico caldo étnico-cultural brasileiro. Pessoas unidas pelos laços de parentesco e de amizade. Pelo cunhadismo e pela necessidade de sobreviverem. Uma destas vilas é a hoje bastante conhecida São Jorge, entrada principal para o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Onde São Jorge está localizada não há pastagens, não há lavoura importante… Antes dos anos 90, a vila dependia do comércio de quartzo (cristal de rocha). Embora nos anos 40 a procura por cristais tenha sido grande devido à demanda criada pela Segunda Guerra Mundial, pouco dinheiro era gerado e os garimpeiros cafuringavam os melhores cristais em poços profundos. Vida dura, perigosa e pobre. Muito pobre.
Por outro lado, a região sempre atraiu pesquisadores. Nos anos 20, um certo Sr. Blazer, médico prático que percorria a região, coletou exemplares de anfíbios que julgava interessantes e os enviou ao Museu Nacional, onde foram recebidos pelo célebre Zoólogo brasileiro Alípio de Miranda-Ribeiro. A partir deste material foram descritas diversas espécies endêmicas do Cerrado, como a perereca das cachoeiras (Bokermannohyla pseudopseudis), o interessante Proceratophrys goianus e uma espécie de anuro com desenvolvimento direto, ou seja, com ovos terrestres e sem a fase de girino, Barycholos ternetzi. Nos anos 60, o importante herpetólogo paulista Werner Bokermann, em visita a Veadeiros, descobriu o intrigante Allobates goianus, um dos anuros mais ameaçados do Cerrado. Diversas descobertas subsequentes foram realizadas na região, atestando a importância ecológica e evolutiva das terras altas da Chapada dos Veadeiros. Trata-se de uma região única.
As particularidades da região foram decisivas para que o então Presidente Juscelino Kubitschek assinasse o decreto criando o Parque Nacional do Tocantins, o qual, com mais de 700 mil hectares, protegia diversos ecossistemas fabulosos na região. No entanto, esse grande parque foi posteriormente mutilado nos governos subsequentes, até os parcos 65 mil hectares atuais, claramente insuficientes para proteger a biodiversidade da região.
Passados alguns anos, Goiás perdeu os vastos Cerrados do estado com a criação, em 1988, do estado do Tocantins. Por outro lado, aumentou a responsabilidade de Goiás em garantir a manutenção do seu patrimônio natural.
Quando ocorreu o asfaltamento da antiga estrada de terra que ligava Brasília à Alto Paraíso em fins da década de 1980, eu e um grupo de amigos encaramos a estrada para conhecer a sonhada Chapada dos Veadeiros. Um destes amigos havia adquirido um velho Jeep Willis em um leilão do Corpo de Bombeiros de Brasília, vermelho como uma saúva, e embarcamos na aventura com muita vontade e pouco juízo. Na época, era gritante o contraste entre a beleza da Chapada dos Veadeiros e a pobreza e precariedade de Alto Paraíso de Goiás e São Jorge.
“O fato dos turistas adorarem a Chapada dos Veadeiros transformou a região. O dinheiro injetado na economia pelo turismo mudou radicalmente a região e levou uma qualidade de vida nunca experimentada pelas comunidades locais.”
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Na sede do município só havia um hotel, na verdade uma pensão, com um único banheiro no fim do corredor, cuja porta, quebrada na metade de cima, criava um ambiente peculiar. Não havia restaurantes, drogarias e a rodoviária era o local de esperas intermináveis por ônibus caquéticos e, invariavelmente, atrasados.
Em São Jorge a vida era ainda mais simples. Todas as casas tinham paredes de barro, cobertas por folhas de palmeiras (raramente por telhas baratas de amianto) e as janelas eram tábuas presas por pregos. O chão das casas era de barro batido, enquanto o chão da vila era coberto por cacos de cristais removidos pela lapidação. Tais cacos refletiam a luz do luar, criando um cenário bucólico. O bar do Pelé já estava lá, exatamente no local onde o ônibus da viação Santo Antônio, que ligava Colinas do Sul a Planaltina de Goiás, parava uma vez por semana. O estado de conservação do ônibus refletia a qualidade da longa estrada de terra.
Nessa época, a região já abrigava e continuava recebendo muitos órfãos de Woodstock (e de outras naves espaciais), criando um dos mais famosos redutos hippies do Brasil. Com a fuga dos avançados para Alto Paraíso de Goiás e o sonho de uma nova era, começou o processo de apropriação da toponímia local pela nomenclatura lisérgica alienígena. O campo largo virou “Campo de Maytrea”, como se essa fosse uma deidade tradicional calunga, enquanto o Morro do Ferro de Engomar virou “morro da Baleia”, um animal sem vínculo com o Cerrado, mas muito famoso nos meios ambientalistas dos anos 70 e 80. Os turistas adoram e a região ganhou contornos místicos, além de uma interessante diversificação social, refletida hoje em ares, ideias e estilos de vida mais cosmopolitas na região.
O fato dos turistas adorarem a Chapada dos Veadeiros transformou a região. O dinheiro injetado na economia pelo turismo mudou radicalmente a região e levou uma qualidade de vida nunca experimentada pelas comunidades locais. Esses turistas, e o dinheiro do turismo, são atraídos pelas belezas naturais da região. Esses turistas querem natureza. Boi, pasto, barragem, tem em outros lugares. O que tem de especial na Chapada dos Veadeiros é aquilo que a torna especial, que é a sua natureza. Esse é o verdadeiro tesouro da região. A natureza é a galinha dos ovos da Chapada dos Veadeiros. O turismo de natureza cria emprego, cria diversificação de trabalho e de oportunidades, arrecada impostos, atrai mão de obra especializada, atrai a cultura, valoriza social e economicamente a região. A riqueza trazida pelo turismo de natureza é renovável e, se inteligentemente manejada, não tem prazo para acabar. E suspeito ainda que a fluidez do dinheiro do turismo permitiu, por exemplo, que pessoas de famílias simples, saídas da vila de São Jorge, tivessem oportunidade até na política municipal, algo improvável em localidades onde grandes proprietários de terra dominam a política.
O turismo de natureza é bem diferente, por exemplo, de um aproveitamento hidroelétrico. Embora uma hidroelétrica crie empregos momentaneamente e gere impostos, tem prazo para acabar. Hidroelétricas tem vida útil curta e não produzem — como diz o mito — energia limpa, porque são construídas à custa da biodiversidade. Após o inevitável assoreamento do reservatório, tais empreendimentos não produzem mais nada e não podem ser revertidos ao estado original. Além disso, atingem irreversivelmente o que é realmente valioso na Chapada dos Veadeiros: os seus rios, as suas águas, as suas cachoeiras, as suas paisagens naturais e a sua biodiversidade. É claramente um problema de miopia de valores. A Chapada dos Veadeiros não é local para isso. A Chapada dos Veadeiros não permite isso.
“Aparentemente não existe um planejamento sério de Goiás acerca do último grande naco de natureza do Estado. Parecem acreditar que migalhas de natureza são suficientes. Não são.”
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O momento é decisivo para a Chapada dos Veadeiros. Se, num determinado momento, ocorreu uma fuga dos avançados para a região, esse é agora o momento do avanço do atraso, transvestido de progresso (pogresso, como ouço dizerem). A triste adoção do agrobusiness como estilo (e filosofia) de vida, que arrasou as paisagens do lindo estado de Goiás e lotou a cidade de Goiânia com música de qualidade duvidosa, se expande rapidamente, como um tumor eficiente, que se reproduz em quantidade, mas que inevitavelmente irá matar o organismo (e a si mesmo) durante o processo.
Aparentemente não existe um planejamento sério de Goiás acerca do último grande naco de natureza do Estado. Parecem acreditar que migalhas de natureza são suficientes. Não são. Aparentemente, diversos interesses cresceram o olho para o pouco que resta do Estado. O que chamam de “oportunidades de crescimento” é apenas apropriação. O que chamam de “desenvolvimento” é apenas a mesma miopia que fez o fazendeiro da fábula de Esopo determinar sua eterna miséria trucidando a galinha do ovos de ouro. A ganância é inimiga da sensatez e ferir de morte a Chapada dos Veadeiros não irá gerar mais riqueza, nem maior qualidade de vida para os municípios da região.
Nessa semana, acontecerão as consultas públicas para a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, nos municípios de Nova Roma, Cavalcante e Alto Paraíso. Já participei de consultas públicas na região e me impressiona como diversas pessoas, que se dizem amantes da natureza, que dependem do turismo na região, que viram de perto o poder de transformação que a natureza é capaz de fazer, se colocam contra ações realmente efetivas de garantir a natureza da Chapada dos Veadeiros. São contra ações que corrigiriam erros históricos.
Quando a ganância, a cobiça e a ignorância superam a sensatez e a retidão, o que esperar do futuro? Por outro lado, os vícios superam as virtudes quando as pessoas de bem se calam…
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E a Serra da Traíra é realmente linda!
Ali ao lado, no Tocantins, a proposta para criar uma UC no triângulo formado pela Serra Traíra e pelos rios Paranã e Tocantins segue engavetada há 10 anos. Afinal, é o estado da progressista Kátia Abreu.
Fábio, foram realizados estudos e consulta pública para a criação de uma UC de proteção integral, no município de paranã-TO, mas o processo foi paralisado até a definição de 03 territórios quilombolas que existem nesta área. Mas com certeza o processo de criação de novas ucs no estado do TO, se arrastam a passos lentos, por motivos óbvios!
Excelente matéria Reuber!
Adorei conhecer este histórico, num olhar mais naturalista.
Que em breve uma nova reportagem faça-nos vibrar de alegria, celebrando esta ampliação.
Tomara Verônica!
Poderíamos colocar nosso "Goiás", como uma Costa Rica desse Brasil: exemplo e modelo de como a sustentabilidade traz recursos juntamente com bons frutos.
Exemplo para o mundo!
Muita força e energia a esta iniciativa, para o bem da vida.
Bela reportagem. Apenas uma importante ressalva, que pode ser aplicada a uma quantidade razoável de textos dO Eco. Conteúdo excelente e título sofrível… dizer que a ampliação do Parque Nacional Chapada dos Veadeiros se configura no ultimo naco (conservado) do Goiás é um grande desserviço à conservação, uma vez que sabemos que existem diversas áreas passíveis de serem criadas Unidades de Conservação no Estado, muitas com farto estudo disponível à SEMARH do Goiás, vejamos aqui os Parques Estaduais engavetados e aqui ignorados: "São Bartolomeu", "Rio São Félix", "Serra da Prata", "Campos Rupestres" e "Vão do Paranã". Faltou um pouco de interesse do Estado em criá-los, pois pertinência e importância estas áreas têm de sobra, e são também, assim como a área de ampliação dos Veadeiros, nacos de conservação no Goiás.
Renato, concordo. É que o "jornalismo-ambientalista" não consegue abrir mão do sensacionalismo…e nem precisava.
Olá Renato,
A responsabilidade do título é minha (de editor), não do autor, e lamento se ele ficou impreciso. Não temos objetivos sensacionalistas. Em geral, procuramos títulos com um verbo, típicos de jornal, e que tenham impacto, mas não sensacionalistas. Agradeço a opinião, e tentarei ser mais preciso. Abraços, Eduardo (editor)
Quase todas as propostas de criação de UCs pelo órgão ambiental do estado de Goiás foram retiradas do "Naco" a que se refere o Autor. A única que não abrange áreas dos estudos para ampliação de Veadeiros, também fica no Nordeste do estado.
É um "Naco" grande, mas é sim o último.
Bela retrospectiva da história de um de nossos mais belos Parques, que protege, além de tudo, uma das nascentes do Araguaia (sim, do Araguaia, como qualquer geógrafo explicaria). Queria muito poder ir a essa audiência pública. Tomara que haja dinheiro para fazer essa expansão como se deve, indenizando os proprietários.