É evidente que não existem, na Europa Ocidental, os grandes espaços essencialmente naturais como os que podem exibir os países amazônicos. Não há lá parques nacionais como o Manu ou o Alto Purus, do Peru, nem como o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, do Brasil, com seus milhões de hectares de florestas quase intocadas contendo milhares de espécies ainda esperando seus descobridores. Mas, muito errado está quem acredite que a natureza não existe mais na Europa. E mais, lá se dá uma comovente harmonia entre a natureza, a atividade agropecuária e a arquitetura criada durante milênios, brindando paisagens de grande beleza. Um exemplo disto se mostra nas próximas linhas e fotografias.
A Provence é a região sul da França que se estende entre a margem esquerda do rio Ródano (Rhone) até a fronteira italiana e que, ao sul, chega à costa do Mediterrâneo. Suas cidades mais importantes são Marselha e Aix em Provence ao oeste e Nice ao sudeste. Também inclui locais tão famosos como Saint Tropez, Antibes e Cannes, além de Mônaco, que é um principado soberano. A parte conhecida como Haute Provence, ao nordeste, ocupa um território pré alpino com altitudes que alcançam uns 2.500 metros. É a sua parte mais natural.
Essa região, de clima agradável, foi densamente habitada por milênios e cenário de inúmeros acontecimentos históricos que semearam indelevelmente o espaço. Por todo canto se observam aquedutos, coliseus, anfiteatros ou torres romanas, castelos, igrejas monumentais, palácios, mosteiros entre tantos outros vestígios de um passado tão rico como tormentoso. A região, além de ter sido habitada por lígures e celtas, assim como por gregos, foi província romana e a isso se deve seu nome atual. Nela moraram os papas franceses (Avignon) e, durante o conturbado medievo, proliferaram fortalezas, aldeias fortificadas e até os mosteiros tinham muralhas e torreões. A monarquia e a Revolução Francesa tiveram capítulos importantes nessa parte do país. A história flui em cada pedra e é evidente na língua, nos costumes, nos vinhos, no azeite de oliva, nos perfumes e na espetacular gastronomia. E é óbvia na agricultura dominada pelo cultivo de parra, oliva e lavanda, mas complementada por uma extraordinária variedade de cultivos em pequena escala que geram uma ainda mais inacreditável diversidade de guloseimas, que se exibem nas feiras semanais que percorrem todas as cidades e vilas.
Por isso chama poderosamente a atenção que, apesar desse onipresente passado e da modernidade atual, essa região mantenha tanta natureza, tão bela que grandes pintores do mundo não resistiram em representá-la. Ela, a natureza, está em todas as partes, dentro das fortalezas e dos mosteiros e ao redor deles, na beira dos rios cuja mata ciliar está bem cuidada, nas florestas nacionais (domaniales) e nas florestas comunais, nos parques nacionais e nos parques naturais, nas reservas naturais nacionais e regionais, dentre outras das categorias de manejo de áreas naturais que existem na França. E, o mais interessante, é que a natureza está em todas as partes, nas ruas, nas casas e em especial nos campos de cultivo e ao redor deles.
Em nossos recorridos nas áreas naturais da Provence vimos muitos visitantes e acampamentos, alguns javalis e outros animais. Apenas inaugurada a estação de caça escutamos tiros e vimos caçadores e um grande número de pescadores. Só numa oportunidade vimos a viatura de um guarda florestal. Nas florestas e nas matas ciliares, como em outros locais, inclusive na beira das estradas, não se encontra lixo nem resíduos. Dá a impressão de que cada cidadão usuário da natureza conhece e respeita as regras que permitem que se mantenha linda e limpa. O contraste com a realidade das áreas naturais protegidas do Brasil ou do Peru, por não mencionar as beiras das estradas, é gritante e reflete, obviamente, o gap cultural que ainda prevalece entre esses povos.
Evidentemente nada é perfeito. As paisagens da Provence e da França já perderam muitas espécies de plantas e animais ao longo da história e praticamente todas as florestas que lá se observam foram exploradas e restauradas e estão atualmente com alguma forma de manejo para produzir madeira. Outras são secundárias ou reflorestadas. Os campos também têm sofrido queimadas intencionais e casuais e também há pastoreio abusivo e os rios e lagos foram represados ou envenenados e muitos continuam contaminados. A verdade é que a França tem poucos lugares onde possa se estabelecer parques nacionais verdadeiros, desses estritamente protegidos, simplesmente porque não tem mais os ecossistemas realmente naturais que justificam essa categoria. Suas categorias atuais incluem muitas terras privadas e na sua grande maioria está submetida a alguma modalidade de exploração.
Paulo Nogueira Neto, por própria confissão, se inspirou nessa realidade para propor suas “áreas de proteção ambiental” nos lugares onde a natureza já não podia ser integralmente conversada devido a direitos adquiridos das populações locais ou de outros interesses privados. O sucesso desse tipo de áreas protegidas na Europa se fundamenta em três condições prévias: (i) a maior parte da sociedade afetada gosta realmente da natureza e participa voluntária e ativamente da proposta de protegê-la melhor; (ii) o Estado, seja nacional, regional ou municipal, dispõe dos meios para transformar o propósito em realidade e; (iii) o mais importante é que após aprovada a decisão, a lei ou a ordenança, estas são respeitadas, goste ou não, pela imensa maioria. Os poucos que as infringem são tratados como delinquentes. A aplicação do conceito no Brasil confrontou o fato de que nenhuma dessas condições prévias existe na prática. Por isso grande parte das áreas de proteção ambiental, que ademais proliferaram sem necessidade apenas para dar uma impressão de proteger a natureza, se converteu num elefante branco.
Como dito, o que mais impressiona nas paisagens rurais da Provence é a harmonia entre a natureza e a obra humana, especialmente na questão agropecuária. É praticamente impossível se observar uma área dedicada à agricultura sem ver ao mesmo tempo uma floresta ou pelo menos um grupo de árvores. Não há nessa região milhares de hectares completamente desnudado de árvores, como predomina em grande parte do Brasil, onde se cultiva soja, milho ou algodão. Lá, cada vivenda rural, cada igreja ou cada vila está rodeada de árvores e de flores. Cada caminho rural e até as rodovias estão bordeadas de árvores, frequentemente frutíferas. Por isso a paisagem é tão variada e grata à vista.
A Provence tem outro lado, bem diferente do descrito. Não há dúvida que a famosa Costa Azul seja naturalmente muito bela, embora a densidade da sua ocupação é francamente abusiva. Cidades como Cannes, Mônaco e Saint Tropez são impressionantes pelo desborde de riqueza que ostentam e, contrariamente ao que se vê no interior do país, elas são monumentos à vaidade humana, com o seu acúmulo de iates enormes e de residências. Lá, os ricos e famosos e, seguramente muitos corruptos de lá e daqui, perdem todo pudor ou vergonha na cara. E, por certo, o comportamento deles é um insulto à necessidade de preservar o ambiente e de frear as emissões de gases de efeito estufa. Afortunadamente, parece que existe uma nova onda de iates supereconômicos em termos de combustível.
Os países da América Latina possuem áreas protegidas muito maiores, mais naturais, mais imponentes e biologicamente muito mais ricas que as de Europa. Nada temos que invejar a Europa no aspecto. Apenas devemos investir muito mais em cuidar deste patrimônio e evitar os retrocessos que a estupidez humana e a cobiça criam sem trégua. Porém, temos um caminho muito longo a percorrer antes de poder transformar as nossas paisagens rurais em algo equivalente ao que existe no velho continente. Ainda é um sonho conseguir que cada cidadão se sinta responsável pessoal e diretamente por embelezar seu próprio entorno e o dos demais, plantando árvores e flores e limpando, sem esperar que o governo o faça. Oxalá chegue em breve o dia em que as nossas paisagens antropizadas, como as da França, possam ser tão bem balanceadas, restauradas e diversas.
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Grande Marc ,meus parabéns pelo maravilhoso artigo como sempre ! Estou aqui em Chapell Hill ,North Carolina e posso afirmar que os americanos praticam aqui o que franceses e alemães fazem na Europa ! Nunca vi tantos gansos canadenses ,veados ,coelhos ,raposa e esquilos juntos e em volta da casa do meu filho , que é cercada por matas lindas ! Um grande amplexo do admirador e fã !
Marc, parabéns pela escolha do tema abordado! Entre outras patetices do “FEBEAPÁ” ambiental brasileiro, sempre se lê/ouve a bravata “Eles destruíram tudo no país deles, enquanto nós ainda temos natureza exuberante e intocada”! Bem, se de fato ainda existe uma “wilderness” brasileira, com florestas primárias, espécies desconhecidas e índios isolados, isso se deve mais a um “fuso histórico” na ocupação territorial do que um mérito nosso ou demérito “deles”! Então, descontando as porções ainda selvagens da Amazônia, se compararmos os nossos mosaicos de área rurais-urbanas-naturais com boa parte da Europa ou América do Norte, é fácil verificar quem melhor soube equacionar (nem tudo é perfeito, óbvio!) os variados interesses que disputam a paisagem, abrangendo o gradiente entre os extremos “desenvolvimentista” x “preservacionista”, e ainda respeitando sítios de valor histórico-arqueológico. Esse equilíbrio é justamente o que almeja a Biologia da Conservação bem feita. Importante registrar ainda que, como citado no texto para o caso francês, em todo o chamado “primeiro mundo” a caça manejada/esportiva é uma ferramenta adicional para conservação, empregada pragmaticamente, sem tabu. Basta pesquisar no site do U.S. Fish and Wildlife Service para, por exemplo, verificar os inúmeros benefícios pra conservação decorrentes do programa de Duck Stamps. Destaco a última frase da entrevista de um gestor de UC americana: “You might not necessarily agree with it (hunting), but with the amount of money it brings in and the conservation it supports, it’s the best thing we have going right now.” (https://www.fws.gov/cno/newsroom/highlights/2017/hunt_series_1/)
Mais um excelente artigo do meu querido Marc. Um pena não ter estado junto na viagem que gerou as observações agora partilhadas neste artigo, como aconteceu em outras oportunidades da África, no Peru e aqui no Brasil em diversos biomas e estados – algumas delas relatadas aqui no Eco por ele, ou por mim. Um professor de qualidade sempre disposto a nos ensinar! Daqueles que, como Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas, nos ensina que “… a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total.” Está aí, neste artigo um ensinamento para a gente ampliar a forma de ver p que há para ser visto. Obrigado meu amigo.
O interessante é ver que na França espécies antes extintas, como lobos, ursos e abutres, estão recolonizando o país por conta própria ou graças a programas de reintrodução. Êxodo rural, abandono de áreas marginais e mais educação fazem milagres, apesar de sempre existirem os toscos incivilizados.
Belo texto. Precisos e oportunos comentários sobre nossas APAs, Parabéns.
É sempre um prazer ler os escritos de Marc Dourojeanni.
Pena que nos presenteie tão pouco e tão esparsamente.
Parabéns ao O ECO e a ele.
Marc, no ano de 2010, estive em UM CURSO DE FILMAGEM/FOTOGRAFIA DIGITAL na universidade católica nesta região, Monpellier UMA CIDADE MEDIEVAL (preservada) e tive a oportunidade de conhecer partes desta região no mediterrâneo, COM CERTEZA, É TUDO MUITO BEM ORDENADO existe em todos os lugares 'UM MANEJO TERRITORIAL",onde os agricultores sabem da RESPONSABILIDADE NA PRESERVAÇÃO DA TERRA, DA ÁGUA, ÁREAS NATURAIS,…para sua própria subsistência.