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Amazônia não se sustenta sem o protagonismo feminino

Capacitar mulheres da floresta é abrir caminhos para que seus conhecimentos e talentos se convertam em renda, escolhas e protagonismo

15 de setembro de 2025
  • Valcléia Lima

    Superintendente de Desenvolvimento Sustentável da Fundação Amazônia Sustentável (FAS).

Na Amazônia, quando uma mulher tem acesso à formação e à informação, não é só a vida dela que muda: toda a comunidade se fortalece. Homens e mulheres  compartilham responsabilidades no manejo da floresta, na pesca, na agricultura e na vida comunitária, mas as mulheres ainda acumulam tarefas invisíveis e desiguais. São elas que passam horas buscando água quando não há acesso, que conciliam o cuidado com os filhos com atividades de geração de renda, que preparam a alimentação e que, muitas vezes, permanecem à margem dos espaços de decisão. 

É nesse contexto que levar capacitações para as mulheres da floresta se torna um  instrumento decisivo. Capacitar mulheres da floresta é abrir caminhos para que seus conhecimentos e talentos se convertam em renda, escolhas e protagonismo. Quando uma mulher se capacita, toda a comunidade avança, seja no fortalecimento da economia local, na preservação das tradições ou na criação de novas formas de liderança. 

Em diversas comunidades ribeirinhas, formações em gastronomia têm aberto  caminhos para a geração de renda, para a gestão de negócios locais e para a liderança feminina. Hoje, muitas já estão à frente de pousadas, projetos de artesanato, associações comunitárias e iniciativas de turismo de base comunitária. Essas experiências mostram que fortalecer as mulheres é fortalecer toda a coletividade. 

Há também iniciativas mais recentes, como oficinas que ensinam mulheres a  consertar eletrodomésticos. Nelas, liquidificadores, batedeiras e máquinas de lavar  deixam de ser descartados e se transformam em fonte de aprendizado e renda. O valor desse tipo de formação está em ensinar que o conhecimento pode se transformar em sustento e futuro dentro da própria comunidade. O mesmo acontece na área da comunicação: jovens mulheres assumem a gestão de redes sociais e produzem entrevistas com visitantes, trazendo para a comunidade novas formas de diálogos com o mundo. Essa atuação mostra que a tecnologia pode ser também uma ferramenta de empoderamento. 

O direito de ter escolha, porém, ainda não é uma realidade para todas. Muitas  enfrentam baixa autoestima, insegurança e, em alguns casos, precisam de autorização dos maridos para participar de eventos fora da comunidade. Essa dependência revela como a cultura patriarcal ainda restringe a liberdade de muitas mulheres. Ao mesmo tempo, exemplos de liderança florescem: mulheres que comandam associações, ampliam negócios de artesanato, conduzem pousadas e inspiram outras a ocupar espaços que sempre lhes pertenceram. Nessas rodas de conversa, trajetórias individuais se transformam em referência coletiva, encorajando aquelas que ainda hesitam. 

Oficina de teçume de arumã na aldeia Yabi, do povo Baré, em São Gabriel da Cachoeira (distante 852 quilômetros de Manaus). Foto: Lucas Bonny

Os desafios não são poucos. O tempo escasso é um deles, já que muitas acumulam múltiplos papéis como mães, cuidadoras, trabalhadoras e líderes comunitárias. Algumas são mães solo e não têm com quem deixar os filhos para participar de capacitações. A falta de letramento digital também limita o acesso a formações que poderiam ser feitas pela internet. Plataformas existem, mas sem equipamentos adequados e sem domínio das ferramentas, as mulheres permanecem excluídas de oportunidades. 

Mesmo assim, as histórias de transformação se multiplicam. Uma delas é a de  Neurilene Cruz, do povo Kambeba, que começou com uma pequena cozinha para  atender trabalhadores de uma obra e criou o restaurante Sumimi, gerido apenas por  mulheres. Hoje, o restaurante é referência em gastronomia tradicional amazônica e já projetou Neurilene para espaços de destaque, onde ela apresenta sua trajetória como exemplo de liderança feminina. A trajetória dela vai além da culinária: fala de autonomia, de superação e de inspiração para outras mulheres. 

Valorizar os saberes tradicionais é parte essencial desse processo. O conhecimento de como transformar sementes em biojoias ou de como manejar a floresta de forma  sustentável é transmitido de geração em geração. Quando dialoga com inovações de design ou com novas tecnologias, esse saber ganha novas possibilidades sem perder a essência. É nesse equilíbrio entre ancestralidade e inovação que a bioeconomia amazônica se fortalece. 

Quem ainda não compreendeu a urgência de fortalecer mulheres da floresta está  perdendo uma grande oportunidade. Elas carregam a força de equilibrar múltiplas  tarefas, de cuidar e de liderar ao mesmo tempo. Como a própria natureza, têm o dom  de sustentar vidas e reinventar caminhos. A Amazônia só seguirá de pé se as mulheres  que a mantêm viva tiverem espaço para decidir seu futuro. 

Fortalecer as mulheres da floresta é garantir futuro para a Amazônia. Sem o protagonismo feminino, não há sustentabilidade possível.

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