No Egito, em meio a revolução denominada Primavera Árabe, um grupo rebelde, aproveitando-se do momento de protestos, se dirigiu ao Museu Arqueológico do Cairo a fim de roubar o ouro ali contido. Logo deparou-se com centenas de milhares de cidadãos comuns, que cercaram o prédio a fim de proteger seu importantíssimo patrimônio histórico e cultural. Os rebeldes foram contidos, mas mesmo assim, 29 objetos foram avariados. Os nove homens que causaram o dano sofreram justa punição – considerado um ato de terrorismo – com total apoio da população do Egito e da comunidade mundial.
Então me pergunto, por que essa mesma lógica não é aplicada a reservas naturais? Afinal, parques e reservas naturais são instituições equivalentes a museus nacionais: ambas são áreas públicas que constituem importantes repositórios do patrimônio de uma nação. Imagino o que aconteceria com um cidadão que tentasse sair do Louvre, por exemplo, carregando a Mona Lisa debaixo do braço. Ou saindo do MASP (Museu de Arte de São Paulo) desapercebidamente com uma obra de Portinari. Pego o cidadão, aposto que não sairia impune.
Mas áreas protegidas parecem não receber o mesmo nível de justiça, e sua riqueza vem sendo roubada, não apenas por cidadãos para os quais todo tipo de justificativa é dada, mas agora também pelos próprios governos responsáveis por cuidar do patrimônio. Aproveitando-se da crise gerada pela pandemia de COVID-19 e protestos políticos, governos de diversos países promovem a desregulamentação da legislação ambiental, na esperança de que suas ações passem desapercebidas.
Nos Estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental alterou as regras de emissões e uso de mercúrio; e enfraqueceu a proteção de mais de metade das áreas úmidas norte-americanas. O Departamento do Interior, cujas funções incluem definir o uso da terra, disponibilizou terras públicas para exploração de óleo e gás, diminuindo a áreas de parques e reservas, e o nível de proteção dado à vida silvestre.
Na Índia, pais até pouco tempo considerado exemplar no gerenciamento de vida silvestre, aproveita-se da pandemia de COVI-19 para aprovar a construção de represas, projetos de mineração, usinas de carvão e outros projetos controversos de grande impacto ambiental. No âmbito da vida silvestre, parques que incluem a proteção dos tigres – a maior fonte de recursos do ecoturismo na Índia – passaram a ter gestão centralizada, perdendo poder de decisão. O estarrecedor é que essas aprovações ocorreram de repente, via vídeo conferência, sem que autoridades e especialistas pudessem ler adequadamente os relatórios e estudar os mapas.
Aqui no Brasil, tramita a proposta de medidas que incentivam a depredação de nosso patrimônio natural, como a PL 191/2020, que trata da abertura de áreas protegidas para mineração e fins agropecuários, e diminui a proteção de espécies. Vimos estarrecidos nosso ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugerir ao presidente da República um desmanche da legislação feito às escondidas, “aproveitando o momento de tranquilidade em que a mídia se enfoca no COVID-19” para desregulamentar as leis ambientais, ou, conforme suas próprias palavras: “para passar a boiada”. Analisando-se a metáfora do ministro, logo pode-se ver de que lado estão seus interesses.
Os dados de satélite indicam que em 2020 o desmatamento da Amazônia já bate novo recorde. Aqui no Tocantins, onde trabalho na conservação da região do Cantão, um importante ecótono entre o Cerrado e a Amazônia, foram fechadas várias agências de fiscalização federais, e as estaduais foram amplamente reduzidas. Mal teve início a estação seca e já vemos invasões, caça, pesca e queimadas ilegais, com pouca ou nenhuma providência podendo ser tomada.
É certo que invasões e depredações sempre existiram, fruto da ganância de muitos. Mas sempre foram atividades à margem da legalidade. Agora vemos um grande movimento de oficialização do desmanche ambiental no Brasil e no mundo, o que é estarrecedor e, para dizer o mínimo, criminoso em um momento em que vivemos uma pandemia e devíamos estar revertendo os efeitos maléficos das mudanças climáticas.
O dano ao Museu Arqueológico do Cairo não foi maior por conta da ação popular em sua defesa. Os objetos foram restaurados e se encontram de volta a seus pedestais. Já a biodiversidade contida nas áreas protegidas, sem um forte clamor em sua defesa, quando destruída se perderá para sempre.
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Texto excelente. Um dos problemas é que aqui há quem venda a idéia de que parques são um conceito imperialista imposto pelos norte-americanos a ser combatido….
…e museus também?
Desculoe Fabio, respondi duas vezes sem querer. Foi erro de conexão na internet.
Muito bom texto.
Informe: O nome científico, listado abaixo da foto, confere. Ou , seria de outro gênero.
Oi Paulo, o DNA dos gatos encontrados no Antigo Egito se assemelha muito com os animais domésticos que criamos hoje. A origem dos felinos domésticos data de 10 mil anos atrás, vinda da subespécie Felis silvestris lybica. Na realidade, a imagem da múmia de gato da foto acima, data de 2 mil anos AC (ANTES DE CRISTO) ou seja, tem cerca de 4 mil anos. Já o jaguarundi passou por varias alteraçōes taxonomicas recentes, sendo a ultima de 2017 quando o gênero passou a ser Herpailurus. Não estou sabendo se já houve outra mudança.
Hoje é puma yaguaroundi.
Era genero Puma até 2017. Verifiquei e vi que em 2017 o Grupo de Especialistas em Felinos determinou que o genero é Herpailurus.
Texto primoroso escrito por alguém com formação, qualificação, reconhecimento e, fundamentalmente, muita pratica em conservação da natureza. Nosso maior patrimônio, sem o qual não haveria nenhuma outra forma de patrimônio social, historico ou cultural, vem sedndo perdido. Peças únicas da evolução biológica, peças únicas da manifestação da vida no planeta, sendo suprimida por ganância, ignorância, perversidade ou covardia, por vândalos miseráveis, alguns lamentavelmente usurpando posições onde a responsabilidade, conhecimento, lisura, coragem e noção de bem público deveriam contar como critério. Parabéns pelo excelente paralelo e sejamos mais cientes do valor do patrimônio em risco.