Em 1970, conheci o cônsul dos EUA no Rio de Janeiro. Seu nome era William Belton e ele era um birdwatcher fanático. Eu havia começado a trabalhar no Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), herdeiro do Instituto Nacional do Pinho, órgão que só ajudou a exterminar as araucárias do Brasil, espécie cuja situação já estava beirando a extinção.
Este foi um dos motivos pelo qual Belton tanto se esforçou para advertir os engenheiros florestais, conservacionistas e ornitólogos brasileiros de que, se não cuidassem melhor das araucárias (Araucaria angustifolia), ocorreria uma hecatombe na população dos papagaios-charão (Amazona pretrei), que dependem delas e cujas maiores concentrações estão nos estados de Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Hoje, restam somente 150.000 hectares de mata de araucária, dos quais mais de 50% no estado de Santa Catarina.
Como parte da estratégia de Willian Belton para preservar o charão e outras aves, o cônsul conseguiu, já em 1970, que eu assistisse ao curso anual de administração e manejo de áreas protegidas, nos EUA, Canada e México. Da mesma forma, providenciou que o Dr. Paulo Zuquim Antas fosse fazer um treinamento especifico sobre anilhamento de aves migratórias. Não satisfeito, Belton fez ainda mais: obteve pessoalmente uma doação de anilhas, que praticamente não existiam nos órgãos governamentais do Brasil.
Outra etapa da proteção dos charões começou décadas atrás com as pesquisas meticulosas e constantes do Dr. Jaime Martinez e de sua esposa Nemora, apoiadas há 20 anos pela Fundação Grupo Boticário.
Sobre os assuntos aqui mencionados brevemente, há farto material bibliográfico para aqueles que queiram ou que precisem das pesquisas sobre charões. Porém, ((o))eco dá-me a oportunidade, através desta coluna, de repetir a advertência de Belton sobre o que vem acontecendo com as populações de araucárias, principalmente na cidade de Lages, em Santa Catarina, que detém a maior concentração de papagaios-charão do mundo: um espetáculo que há quase 50 anos atrás fez o cônsul chorar de emoção.
O potencial de ecoturismo em Lages
Lages é conhecida pela sua festa anual de pinhões. As sementes da Araucária são apreciadas não apenas pelos visitantes da festa de pinhões, mas também pela população de charões, sendo o principal motivo da maior concentração dos charões no município. Portanto, a araucária representa um recurso de grande potencial econômico e importância ecológica para os municípios da região serrana de Santa Catarina. Porém, não há ainda um aproveitamento de todo potencial turístico relacionado, direta ou indiretamente, à população de araucárias da região. Se por um lado a festa do pinhão consegue atrair muitos visitantes interessados em comer pinhão, por outro, a cultura turística local relacionada às visitas interessadas na observação e pesquisa dos papagaios ainda é incipiente. Desde autoridades locais, estaduais e, principalmente, o pessoal envolvido com serviços turísticos, ninguém sabe informar, quer seja nos melhores hotéis, restaurantes ou bares de Lages, onde ver os papagaios. A grande maioria responde indagando: “papagaio-charão, o que é isso? ”. Não obstante, mesmo com todo o potencial econômico do pinhão, ainda se tem poucos projetos, ações e políticas públicas com objetivo de preservar as araucárias no município, para que seu aproveitamento econômico seja sustentável e se conserve o recurso de maior interesse da população.
Como é possível explicar para aquela população que eles possuem em seu município e nos vizinhos, além do pinhão, a maior concentração do planeta de um animal tão barulhento e especial como o papagaio-charão?
Esses psitacídeos desapareceram da Estação Ecológica de Aracuri, no Rio Grande do Sul, que foi criada para protegê-los. Devido à destruição das araucárias nos arredores, dispersaram-se pelo Estado e agora migram para a Serra Catarinense atrás de sua fonte de alimento: o gostoso e disputado pinhão.
O que ((o))eco, a Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem (SPVS) e a Associação dos Amigos do Meio Ambiente (AMA) de Jaime e Nêmora, mais as Universidades da região já envolvidas podem fazer em um ano eleitoral para que Lages acorde para sua maior atração turística e pare de desmatar e queimar as últimas araucárias do país?
Estamos recebendo sugestões e ajuda do público interessado e de grandes ONGs. Mas sensibilizar as autoridades locais e o setor turístico de Lages vem sendo um desafio, mesmo com todo o empenho de ambientalistas e pesquisadores. Como chacoalhar Lages? Existem algumas áreas protegidas e RPPNs na região, mas, com honrosas exceções, quase sempre abandonadas à própria sorte.
Porém, é necessário capacitar mais e melhor os guias turísticos, agricultores e até os candidatos a prefeito do município para que realmente acreditem que o fenômeno pode trazer, para o município e para o estado, muito mais renda com o ecoturismo e com as demandas dos pesquisadores. A pequena cidade de Urupema vem dando bons exemplos, com a famosa hospitalidade do povo serrano de Santa Catarina, atrai turistas interessados nas belezas naturais e na atividade de observação de pássaros, investindo cada vez mais em infraestrutura turística, hotelaria, pousadas e na capacitação da população local.
Estivemos com cientistas na região serrana de Santa Catarina na semana passada e vimos ontem, em um canal de TV, um dos maiores ornitólogos do país, Dr. Fabio Olmos, em Urupema, na pousada ecológica Rios dos Touros. Seus proprietários, o Biólogo Fernando e sua simpática esposa Rose, não medem esforços a favor da conscientização da importância da preservação dos charões, além dos poucos papagaios-de-peito-roxo (Amazona vinacia), atualmente bem mais ameaçados do que os próprios charões.
Fabio Olmos, a AMA (Associação Amigos do Meio Ambiente), a Fundação Grupo Boticário e muitos outros merecem nosso respeito e agradecimento, mas apesar dos alertas e do esforço de Belton nos anos 1970, as araucárias continuam a desaparecer sob nossas barbas; queimadas, substituídas por plantios de pinus, gado ou permacultura.
Tentativas de salvar um pouco do que resta vêm sendo feitas por ONGs e por cientistas e amadores, mas a verdade é que os papagaios do Sul do Brasil continuam a diminuir.
Sob meu ponto de vista, além da fiscalização, que é dever dos órgãos ambientais, é preciso haver mais capacitação e treinamento nas áreas de ocorrência dos papagaios, mais pesquisa e turismo ecológico podem demonstrar, como feito em pequena escala no município de Urupema, que o pinhão e os charões podem competir em termos econômicos com outras atividades econômicas tradicionais do setor agrícola.
Se não houver esta chance, vamos ter que nos acostumar a não termos mais nem pinhões nem araucárias, nem festa e nem charões em Santa Catarina.
Leia também
Leia também
Projeto de vida
Há 14 anos, um casal de biólogos desvenda a ecologia da única espécie migratória de papagaios, o charão. Já sabem muito sobre ele. Mas ainda há o que descobrir. →
A visita anual dos papagaios
Todo ano, o estado de Santa Catarina recebe, sem as honras merecidas, um enorme exército de vociferantes soldados verdes e vermelhos, como as cores da bandeira do estado que invadem. →
O que é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN)
Saiba mais sobre esta categoria de unidade de conservação, que integra os interesses de conservação da sociedade civil e do poder público. →
Moro em Campinas-SP e todas as manhãs encanto-me com os papagaios parlando nas árvores altas das praças próximas de casa. Percebi a presença deles no final de 2010 e desde então acompanho-os, ora voando sozinhos, ora em casais ou trios ou até em grupo de seis indivíduos como vi no feriado de 15/11/2018. Todos são papagaios verdadeiros, porém em certa ocasião tive impressão de ter avistado um ou dois charões entre eles. Espetáculo maravilhoso nos proporcionam esses simpáticos vizinhos barulhentos.
Minha eterna presidente da FUNATURA , que saudades de você e do Marc ! Sempre mostrando a real situação do Meio Ambiente e dos animais no Brasil !
Todos muito amáveis
Sou da região dos Campos de CIma da Serra, no RS, e confesso minha admiraçao pelo reconhecimento de suas riquezas naturais por parte de pessoas como Maria Tereza Jorge Pádua. Defender os charões significa preservar não somente a especie, mas defender a mata de araucária que ainda nos resta. Já não como mais pinhão porque é a semente de novas árvores, e não entendo como se faz uma festa para consumir as sementes de uma espécie ameaçada. Coisas nossas, que não se justificam. Parabéns pela matéria.
Vi e ouvi, é fantástico.
Belo artigo. Estive no fim de semana passado em Urupema, onde aconteceu o 5 Festival do Papagaio Charrao, este sim um evento voltado para a proteção e ao turismo responsável . Urupema e o município vizinho Painel precisam de incentivo e apoio para que juntos criem mais unidades de conservação particulares. Assim acredito que protegeríamos com mais eficácia à fauna e flora, fomentando o turismo responsável, respeitando a cultura e valorizando as comunidades envolvidas. A região precisa de apoio para as iniciativas que já existem. O Festival do Papagaio Charrao e uma delas.
Belíssimo artigo Maria Tereza! É sempre um prazer ler suas crônicas claras e recheadas de conhecimento de causa! Realmente as florestas de araucária são espetaculares a oferta de pinhões é uma dádiva para uma fauna especial, incluindo aí o irriquieto charão. Sem dúvida, uma grande campanha nas escolas e nos operadores turísticos não só de Lages, mas também em outras localidades da região, seria uma excelente forma de mudar a percepção das pessoas sobre o mundo ao seu redor. Muitas pessoas se refestalam de pinhões, mas não pensam em tudo que um pinhão representa, desde sua formação nos estróbilos (pinhas) das araucárias, da fauna associada às araucárias, do banco de sementes, dos catadores e da conservação deste importante recurso ecológico e cultural. Porque não tornar os charões e os papagaios-do-peito-roxo também importantes do ponto de vista cultural? Será que existe alguém trabalhando com esse tema na região?
Excelente artigo, Maria Tereza. É difícil de imaginar que podemos chegar ao ponto de permitir que o charão, já classificado como vulnerável, chegue a ser criticamente ameaçado. Não seria o caso de tentar adoptar, em Lages, algo parecido com as campanhas a favor do soldadinho-do-araripe, em Barbalha e Crato, onde a população abraçou com orgulho a existência dessa bela ave em suas cidades. A criançada toda sabe e reconhece o soldadinho, tem pousadas, lojas, restaurantes, bares que usam o nome da ave. Nas ruas, tem imagens dela pintada em todos os cantos. Não seria um modelo a seguir?
Ainda não tive a oportunidade de ir à região serrana de SC para apreciar tal espetáculo e saborear uns bons pinhões com café no fim de tarde… Mas, depois de ler essa coluna, me deu uma vontade enorme!! Vou me programar para ir!!!