É costume, na América Latina, pretender resolver os maiores problemas nacionais apenas fazendo leis. Pouco importa se, sob o mais indulgente dos exames, estas leis são inviáveis ou até contraproducentes. A fabricação de leis parcial ou totalmente absurdas não é exclusiva da questão ambiental, mas parece questão mais numerosas possivelmente porque o tema é sexy e porque os legisladores federais, estaduais e municipais pensa que nesse tema se pode trafegar sem grandes obstáculos e sem se arriscar muito. Ademais, nunca faltam os leigos e, em especial, os fanáticos que os incentiva a fazer burradas.
Neste caso, nem se falará das muitas leis que diariamente são criticadas neste jornal e em outros por prejudicar o meio ambiente e comprometer o futuro. Essas leis são tão numerosas que fazer um registro delas implicaria em um esforço enorme. Mais difícil ainda seria compilá-las se, além disso, se levar em conta as leis que prejudicam o ambiente de modo indireto, sem sequer mencionar a palavra ambiente. São leis ruins para a maior parte da sociedade, mas pelo menos não são estúpidas. Lamentavelmente, essas, em geral, são muito bem feitas para alcançar seus objetivos nefastos.
Os legisladores, ou os que os alimentam com projetos absurdos, parecem acreditar firmemente que o que está escrito nas leis será cumprido e, para eles, o problema está assim definitivamente resolvido. O mesmo pensou, por exemplo, o parlamentar que fez e os que aprovaram a lei que obriga o registro de motosserras no intuito de frear o desmatamento e o corte ilegal de árvores, ou a lei do Distrito Federal que obriga o registro de compradores de tinta spray com o objetivo de deter as pichações (ver Legislar não é brincadeira, 2006). Basta olhar para fora para confirmar o que era e segue sendo óbvio: Estas leis não servem para absolutamente nada. O desmatamento e as pichações só aumentaram desde que as leis foram aprovadas. Estas leis apenas estorvam. Perdão, no caso das motosserras servem para arrecadar algum dinheirinho, embora possivelmente menos que o custo de cobrá-lo efetivamente. São exemplos que continuam proliferando e hoje, em nível nacional, são centenas.
Que outra coisa pode se pensar do projeto de lei, felizmente vetado pelo governador de São Paulo, que proíbe a venda e o fornecimento de carne às segundas-feiras em restaurantes, bares, lanchonetes e refeitórios localizados dentro de órgãos públicos do Estado? Ou da lei que proibiu no município de São Paulo a venda de foie gras e que, esta sim, foi aprovada pelo prefeito, e depois suspensa pela Justiça? Estas propostas supostamente servem para “melhorar” o ambiente, proteger a natureza ou defender os direitos dos animais. Mas, umas mais que outras — poucos comem o caríssimo foie gras — atentam contra os direitos mais elementares dos cidadãos e, em termos ambientais, são inócuas. O fato de que exista um número significativo de pessoas que acreditam que o consumo de carne é nocivo para o ambiente e para a saúde não muda o quadro de que ainda é uma minoria absoluta da população do Brasil e, claro, do Estado de São Paulo. O fato é que as grandes maiorias nem sabem o que se flagra nas antessalas dos despachos dos seus “representantes”. A cidadania só é informada quando já é tarde.
Já em Minas Gerais foi aprovado um refinamento da lei federal de crimes ambientais que proíbe o sacrifício de cães e gatos sadios pelos órgãos de controle de zoonoses e canis para fins de controle populacional. Ainda há outra lei que inclui multas por promover distúrbio psicológico e comportamental nos animais… Falta ver como a polícia e os juízes vão decidir o que é isso. Verdade é que esta lei também tem alguns aspetos positivos. O que a lei não prevê é o custo de albergar, cuidar e alimentar até o dia de suas mortes naturais — falta ver o custo do funeral — todos os bichos domésticos sem dono que proliferam nas cidades e no campo, ainda mais considerando que o Estado está quebrado e que não paga em dia nem seus funcionários, além da existência de humanos nas prisões que sobrevivem em condições infra-humanas e quase sem comida. É o tipo de prioridade ética que é difícil de compreender e menos ainda de aceitar. É claro que esse tipo de tratamento aos animais domésticos sem dono seria realista, e até desejável, em países nos quais a educação e o bem-estar econômico geral o permitem e onde, por isso mesmo, tem poucos animais domésticos soltos nas ruas. Anders Behring Breivik, autor confesso dos atentados que em 2011 mataram 77 pessoas e feriram outras 51 na Noruega, cumpre a sua pena numa “cela” que é melhor que o apartamento de grande parte da classe média do Brasil, onde dispõe até de playstation proporcionado pelo Estado. Mas, na América Latina, sempre se busca fazer as leis mais progressistas do mundo. Não importa se, no contexto da realidade nacional, elas não são aplicáveis.
Outro projeto estapafúrdio está sendo processado em Minas Gerais. Este pretende alterar a lei de pesca, pedindo a proibição do transporte de peixes capturados por pescadores amadores durante um período de cinco anos, permitindo apenas o seu consumo pelos participantes no local da pesca, estipulando-se cota zero para deslocamento. Na teoria o pedido visa coibir a pesca predatória evitando que pescadores saquem “grandes quantidades de peixes”, preservando assim os estoques. Isso significa que todo pescador esportivo deverá se converter em cozinheiro, carregar fogão, panelas e pratos, ou aprender a fazer cebiche (pescado cozido no limão ao estilo peruano). E o que passa com o pescador que não gosta de comer peixes? E, sendo uma lei estadual, o que acontece com os que pescam em outro estado? Em qualquer outra parte do mundo se evita o abuso outorgando cotas de pesca que são cumpridas e supervisadas mediante licenças-número e tamanho por espécie — e multas severas –, além do controle aleatório nas estradas e locais de pesca. Isso de obrigar os pescadores a consumir in situ o que pescam é uma primíssima para o Guiness Record. A proposta também requer controle se há a menor pretensão de que seja útil. Dito de outro modo, o custo da sua aplicação seria o mesmo que o de fazer as coisas bem.
Falando de bichos, há mais leis absurdas. Por exemplo, outra vez em Minas Gerais, onde as autoridades do Instituto Estadual de Florestas e da Polícia Militar Florestal são bastante ativas no campo da fauna silvestre, resgatam semanalmente muitos animais silvestres feridos ou que estavam sendo ilegalmente retidos. O Estado não tem meios para manter esses animais até que possam ser liberados novamente e, muitos, simplesmente já não podem ser soltos no mato porque não saberiam nele sobreviver. A solução tem sido entregá-los em custódia a instituições, empresas ou a pessoas privadas que atuam como seus fiéis depositários e são estreitamente supervisados pelas autoridades competentes. E isso tem funcionado muito bem. Mas, alguém teve a brilhante ideia de cobrar deles uma taxa exorbitante, o que é um desincentivo para continuar fazendo esse serviço pelo qual, em realidade, deveriam cobrar ao invés de pagar mais.
São apenas exemplos. A aplicação radical da lei da biopirataria tem produzido um tremendo desincentivo à pesquisa científica e, também, à formação de profissionais nas áreas da zoologia e da botânica que agora, para qualquer coleta, devem se submeter a trâmites complexos. Antigamente, os estudantes de agronomia, biologia ou os engenheiros florestais aprovavam seus cursos de taxonomia apresentando, ademais de um herbário, uma coleção de insetos que, em geral, reuniam espécies daninhas, ou seja, pragas. Agora isso é proibido sem permissão. Mas, não se precisa de autorização especial para fumigar centenas de milhares de hectares com venenos que matam tudo, tanto a fauna nociva como a benéfica. Do mesmo modo não se permite a coleta e venda de uma orquídea na beira da estrada, porém se tolera o desmatamento e queima de milhões de hectares com centenas de milhares de orquídeas por hectare. As leis mal feitas, sem equilíbrio nem realismo, são muito prejudiciais e não evitam o que se busca evitar nem resolvem o que se deve resolver.
Das boas intenções que povoam o inferno
Outra lei curiosa, para dizer o mínimo, é aquela aprovada no Rio de Janeiro e que também existem em outros estados como Minas Gerais com referência às “armas brancas”. Essas leis proíbem o porte de objetos cortantes como facas, canivetes e estiletes com lâmina maior que dez centímetros. É razoável suspeitar de indivíduos que portam armas brancas em centros urbanos e que evidentemente servem para agredir, e isso não exclui muitas facas de cozinha. Mas, a suspeita deve estar referida primeiramente ao comportamento do indivíduo. A posse de uma faca pode confirmá-la. Por exemplo, não há dúvida que facas de qualquer tamanho em poder de membros de torcidas fanáticas são suspeitas. Dito de outro modo é absurdo um texto legal que, simplesmente, permita considerar crime ou infração o mero fato de portar um instrumento cortante ou perfurante de mais de dez centímetros. Quem compra facas de cozinha ou para churrasco em um mercado ou um gaúcho que anda por ai carregando seu facão tradicional podem ser enquadrados nessas leis. Para quem é agricultor, florestal, geólogo, caboclo ou índio é simplesmente impensável lhes proibir andar com facões, que quase sempre tem mais de meio metro, ou seja, que são verdadeiros sabres. E isso fica, muitas vezes, nos porta-malas dos automóveis de quem tem chácara ou sítio, mas mora na cidade. Esses facões são ferramentas indispensáveis na área rural do Brasil todo. E, diga-se de passagem, qualquer carpinteiro ou mecânico carregando uma chave de fenda grande poderia ser enquadrado na lei. De outra parte, não sei quem decidiu que não se pode degolar alguém com instrumentos cortantes de menos de dez centímetros — o suficiente é que estejam bem afiados. Dito de outro modo, essas leis embora tenham boa intenção, estão simplesmente mal feitas, mal pensadas, e por isso são de difícil aplicação e permitem toda classe de abusos de autoridade.
Poderia mencionar muitas outras leis, como as que obrigam tramitações complexas para podar uma árvore velha e perigosa nas ruas e parques das cidades; para limitar a presença de pombas nas praças públicas e monumentos ou para controlar espécies invasoras dentro das unidades de conservação; para obter licenciamento ambiental para obras minúsculas e evidentemente inofensivas, etecetera, etecetera. São essas as disposições legais que fomentam e justificam a noção do “ecochatismo” que tanto prejudica a solução dos verdadeiros problemas ambientais. Esses assuntos menores, na realidade, deveriam ser resolvidos pelo senso comum e não por regulamentações rígidas, que nunca conseguem atender todos os casos.
Os exemplos citados são essencialmente uns poucos e pertencem aos estados desenvolvidos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Mas, lembrando que além do Senado Federal e da Câmara de Deputados, existem 26 assembleias estaduais e quase 6 mil câmaras municipais, todas com capacidade de legislar, pode-se imaginar a confusão que essas peças legais mal feitas ocasionam. E, tampouco cabe esquecer que o Executivo também legisla sobre outros nomes — se bem que em geral suas decisões são menos estapafúrdias. Não cabe discutir o mecanismo democrático adotado já que é sabido que nenhuma alternativa é muito melhor. Mas, sem sequer entrar no tema da corrupção, os eleitores e os partidos políticos deveriam selecionar melhor seus representantes.
O mínimo que se espera dos representantes do povo é que quando preparam leis ou são solicitados para apresentá-las o façam na base de uma consulta séria com os que conhecem o tema. O país não avança se os conhecimentos científicos e técnicos, assim como a experiência, não são aproveitados para se fazer as novas normas que regem a sociedade. De outra parte nunca deve se esquecer de que uma qualidade imprescindível da lei é estar bem adaptada à realidade econômica e social na qual se aplicará. Outra, que é óbvia, porém muito esquecida, é que deve servir realmente ao propósito final para o que se faz.
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Ótimo artigo. Basta ver os incríveis resultados de nossa bizantina legislação para comprovar que quantidade e boas intenções não equivalem a resultados
Parabéns Dr. Marc! Um dos mais lúcidos e coerentes colunistas deste espaço!
Se puderes, visite: PINTO, Gustavo Romeiro Mainardes. A revalorização como forma de garantir a perpetuação do pinheiro brasileiro (Araucaria angustifolia) e da floresta de araucárias. Anais do VII Congresso Brasileiro de Sistemas Agroflorestais. 22 a 26 de junho de 2009. Luziânia (GO). Disponível em: http://www.sct.embrapa.br/cdagro/tema05/05tema04….. Este trabalho embasou o texto original do Projeto de Lei n° 306/2009, transformado na Lei Estadual de Santa Catarina n° 15.167, de 11/05/2010.
6) PINTO, Gustavo Romeiro Mainardes. Desregulamentação do manejo, uso e transporte da bracatinga (Mimosa scabrella). Anais do VII Congresso Brasileiro de Sistemas Agroflorestais. 22 a 26 de junho de 2009. Luziânia (GO). Disponível em: http://www.sct.embrapa.br/cdagro/tema05/05tema05….. Este trabalho contribuiu para a inclusão do Artigo 254-A à Lei Estadual nº 14.675/2009 (Novo Código Ambiental Catarinense), pela Lei Estadual nº 16.589/2015; fundamentais para garantir a viabilidade do plantio e uso da bracatinga (Mimosa scabrella).
"A fabricação de leis parcial ou totalmente absurdas não é exclusiva da questão ambiental, mas parece questão mais numerosas possivelmente porque o tema é sexy e porque os legisladores federais, estaduais e municipais pensa que nesse tema se pode trafegar sem grandes obstáculos e sem se arriscar muito. Ademais, nunca faltam os leigos e, em especial, os fanáticos que os incentiva a fazer burradas." Exatamente!! É como dizem, de futebol e meio ambiente, todo mundo "entende", todo mundos se sente "empoderado" para dar palpite, ou, conforme o enfoque do texto, legislar sobre a Mamãe Natureza, com base apenas em supostas boas intenções e com claque garantida pelos fanáticos dessa ou daquela causa!
Parece até que foi escrito pelo Blairo maggi
Ou seja , sem problema algum.
Excelente artigo. É uma pena que o Dr. M. D. não frequente mais assiduamente estas paginas.
Verdade.