O mundo, como o conhecemos, está se transformando. A percepção das mudanças climáticas faz com que comunidades em todo o mundo enfrentem a constatação de perdas de elementos naturais ou alterações substanciais em nossos ambientes construídos.
É natural que haja um sentimento de perda, da regularidade do clima e de tempos mais amenos e equilibrados; da segurança climática, para a qual havia maior previsibilidade, quando eventos extremos eram raros e muitas pessoas passavam toda a sua existência sem ter que vivenciá-los.
Há ainda uma perda de qualidade de vida decorrente do estado de intranquilidade gerado pela informação: sequenciais eventos registrados e socializados pela mídia demonstram os novos fenômenos globais.
A mudança do clima acaba por atingir o bem-estar das pessoas, de forma sensível, em todo o planeta. Especialistas estão denominando esse novo feeling global de luto ecológico.
Três tipos de perda têm sido citados: a perda ecológica física diante do desaparecimento, degradação ou extinção de espécies, paisagens e ecossistemas. Por exemplo, como resposta a eventos climáticos extremos agudos, como um furacão; e mudanças ambientais graduais, como, por exemplo, mudanças nos padrões climáticos.
Em segundo lugar, a perda do conhecimento ambiental anterior, no que se refere à ruptura de identidades pessoais e culturais que são construídas em relação às características e ao conhecimento do ambiente físico. Em terceiro lugar, a perda futura antecipada relacionada a espécies, paisagens, ecossistemas, modos de vida ou meios de subsistência.
Há mais um elemento a considerar: a capacidade, ou sensibilidade, de percepção sobre essas perdas. É notório o fato de que a urbanização nos isolou, mental e emocionalmente, de grande parte dos danos que os humanos infligiram à Terra. Esse isolamento é considerado pela psicóloga climática Steffi Bednarek como resposta emocional amplamente atrofiada ao desastre ecológico em massa, à sociedade que construímos.
A ideia é que muitos de nós nos divorciamos da natureza pelas forças do modelo econômico, do capitalismo, da industrialização e da urbanização. E, como resultado, Bednarek argumenta que estamos muito distantes para sentir afinidade com a grande diversidade de vida na Terra, grande parte da qual tem sofrido silenciosamente os efeitos das mudanças climáticas há décadas. Essa lacuna também pode ser considerada não como falta de conhecimentos dos fatos, mas como incapacidade de empatia, ou incapacidade de compaixão.
Essa parece ser uma crítica acertada e justa da condição moderna. Deve-se considerar que nosso habitat artificial, nossas cidades, são ecossistemas construídos que abrigam seres vivos e também estão se fragmentando devido à instabilidade de um clima alterado, com inundações, deslizamentos de terra e picos de calor extremo, por exemplo.
Para a maioria dos moradores da cidade, a maneira como experimentamos as mudanças climáticas não vem do colapso das formações naturais, mas dos danos à infraestrutura feita pelo homem que compõe nossos espaços urbanos e nossas vidas diárias. Quando essa infraestrutura é prejudicada ou destruída, seja pelo vento, pelo fogo ou pela inundação, ela altera nossos habitats – e isso também provoca uma intensa sensação de perda emocional e instabilidade.
“As cidades são ambientes mais extremos do que as áreas rurais no contexto das mudanças climáticas”, diz Brian Stone Jr., professor de planejamento e design ambiental urbano no Instituto de Tecnologia da Geórgia.
De acordo com sua pesquisa, os moradores da cidade tendem a ficar cara a cara com as mudanças climáticas por meio de episódios cada vez mais comuns: chuvas fortes trazem inundações regulares para uma determinada esquina; o metrô leve sai de serviço porque as altas temperaturas sobrecarregam as linhas de energia; uma seca de verão que mata as árvores que sombreiam um playground local. Para aqueles que dependem de todos esses componentes cotidianos da vida na cidade, cada um desses episódios “é muito mais ativador da consciência climática e potencialmente do luto do que uma grande plataforma de gelo se desprendendo da Groenlândia”.
Embora tenhamos construído nossas cidades como fortalezas contra as forças da natureza que as cercam, estamos aprendendo da maneira mais difícil que o concreto é vulnerável à ira provocada por uma atmosfera em aquecimento, aumento do calor, luta para absorver o excesso de água, rachaduras e desmoronamentos.
“Na verdade, não entendemos fundamentalmente que as cidades que construímos também fazem parte da natureza”, afirma o arquiteto australiano Adrian McGregor: “Nós as operamos, nós as gerenciamos e elas dependem de nós para mantê-las vivas. Mas, também, elas são o nosso maior habitat em que existimos. Atualmente, cerca de 80% da população do mundo vive em áreas urbanas”.
McGregor promove a teoria do “biourbanismo“, que vê as cidades como uma forma de natureza por si só. Essa estrutura é influenciada pelos geógrafos Erle Ellis e Navin Ramankutty, que desenvolveram o conceito de “antromes”, ou biomas antropogênicos, que são ecossistemas moldados pelo homem. Mas é menos provável que você veja o termo luto ecológico aplicado a uma estação de metrô inundada da cidade de Nova York .
Os cientistas relataram sentir choque e perda a cada retorno consecutivo à Grande Barreira de Corais, à medida que novas extensões de corais branqueiam e secam. Em todo o país mineiro dos Apalaches Centrais dos Estados Unidos, onde as montanhas foram reduzidas pela metade e as florestas são derrubadas para extrair carvão, a dor aparece na forma de condições de saúde mental diagnosticáveis.
É importante registrarmos como as comunidades estão lidando com a dor da perda. Exemplos nos remetem simbologia relacionada com perdas humanas, por exemplo, com a realização de ritos de funerais, como o funeral da geleira Ok de 2019 na Islândia, realizado por uma centena de pessoas que caminhou até a geleira e conduziu uma cerimônia que incluiu leituras de poesia e discursos.
Como você pode lamentar a perda de uma geleira – um recurso inacessível para a maioria da humanidade? A perda da beleza das geleiras é poderoso motivador para as pessoas perceberem a perigosa perda de identidade de estruturas que servem como marcos culturais importantes, como a geleira Ok para o povo da Islândia.
Embora os olhos de outras pessoas registrem impressões, filmem e fotografem, fornecendo uma riqueza de fontes para ver e perceber as geleiras, essas imensas massas muitas vezes permanecem intangíveis e estão geograficamente distantes. E, no entanto, é por causa de sua beleza e magnitude que seus desaparecimentos são sentidos por muitos. O mesmo sentimento pode se aplicar à contínua perda da Floresta Amazônica, ou de extensas áreas do Pantanal, no Brasil.
Há ainda um elemento necessário para reflexão, na busca de equilíbrio emocional para os atingidos pela percepção mais aguda dos impactos climáticos. Freud escreveu em 1917 um pequeno estudo sobre luto e melancolia, considerando o luto a perda de objeto que pode ser superada com o tempo, porém destaca que a melancolia traz em si a perda do próprio eu, comprometimento do ego que nos leva a refletir sobre como lidar com este impacto climático, principalmente sobre os mais vulneráveis e susceptíveis.
Em 2017, a American Psychological Association publicou um relatório de setenta páginas sobre saúde mental e mudanças climáticas que delineou “impactos, implicações e orientações” para o sofrimento ecológico. Um ano depois, uma pesquisa nacional descobriu que quase 51% dos americanos se sentem “enojados” ou “desamparados” com o aquecimento global.
O filósofo Glenn Albrecht desenvolveu um vocabulário para descrever a experiência emocional de viver durante as mudanças climáticas: Solastalgia, que descreve como uma saudade nascida da observação da degradação ambiental crônica do seu ambiente; Tierratrauma refere-se à dor aguda de testemunhar ambientes em ruínas, como uma floresta desmatada ou um riacho cheio de lixo. A base do trabalho de Albrecht é que os humanos estão fundamentalmente conectados aos nossos ambientes naturais e sentimos dor quando eles são danificados.
Dessa forma, não é nenhum exagero dizer que viver nos dias das mudanças climáticas significa viver na era do luto ecológico e que este pode se transformar, ou potencializar aspectos patológicos e existenciais.
A perda ambiental extrema, por sua vez, leva a um aumento do custo emocional que inclui tristeza, ansiedade e novos fenômenos psicológicos, reconhecidos como “solastalgia”, o sentimento de saudade de um lugar que ainda habita e que agora se encontra, porém, drasticamente alterado. Uma saudade da condição anterior.
Solastalgia tornou-se um dos termos-chave usados para descrever o esmagador custo emocional da perda ambiental, que pode perfeitamente ser aplicada ao contexto do Furação Katrina em New Orleans ou ao desastre avassalador das chuvas que ocorreram no Rio Grande do Sul, em 2023 e 2024.
Em 2020, a BBC publicou um artigo sobre luto climático, destacando a necessidade de desenvolver um novo vocabulário para ecoansiedade, como “ansiedade da neve” ou “luto do inverno” em referência a emoções específicas do lugar. Uma rápida pesquisa no Google produzirá centenas de artigos sobre ecoluto de fontes de notícias em todo o mundo, incluindo jornais locais, institutos de pesquisa e plataformas de mídia nacionais.
O luto psicológico climático pode também ser considerado como aguda percepção do problema a ser enfrentado, portanto com potencial de elemento propulsor das pessoas para a ação.
A cobertura extensiva da mídia, juntamente com fotos de catástrofes – os tipos de fotos e manchetes que atraem cliques –, podem facilmente fazer as pessoas se sentirem paralisadas por uma sensação avassaladora de pavor. De outro lado potencializam ações propositivas que auxiliam na superação da dor do luto, como afirma Catherine Bruns, pesquisadora em Estudos de Comunicação da Universidade de Minnesota-Twin Cities, enfatizando a oportunidade valiosa para divulgar os elementos naturais que ainda sobrevivem, concretizar o que está em jogo e definir formas de proteger remanescentes, por meio de ações pragmáticas de exigência social transformadora.
“Se a cobertura da mídia sobre as vítimas climáticas direcionasse consistentemente os leitores a doar para organizações sem fins lucrativos de justiça climática, assinar petições para fortalecer a legislação ambiental ou participar de protestos políticos, não apenas faríamos progressos mais rápidos no combate às mudanças climáticas, mas também reduziríamos nossa própria ansiedade climática ao longo do caminho”, explica Bruns.
Janet Lewis, psiquiatra e membro fundador da Climate Psychiatry Alliance, comentou em entrevista ao GlacierHub que para que as pessoas lidem com informações relacionadas às mudanças climáticas, é importante entender que estão inseridas em contexto maior. O que nos ajuda a suportar os sentimentos difíceis para pensar com clareza e agir. “É importante ser capaz de afirmar as maneiras pelas quais continuamos a fazer parte de algo maior, mesmo quando estamos perdendo muitas coisas e as relações com essas coisas”, afirma.
À medida que o mundo continua a sofrer perdas ambientais inevitáveis, os rituais de luto ecológico podem se tornar uma rotina comum, proporcionando espaço para as pessoas lidarem com o novo fardo emocional de um mundo em rápida mudança. Torná-los públicos por meio da cobertura da mídia pode multiplicar ainda mais seu impacto, conscientizando populações em risco, que estão passando por perdas extremas no presente, promovendo uma resposta que une empatia e ação.
Organizações como a Solutions Journalism Network estão lidando com questões urgentes sobre como os jornalistas podem adotar uma abordagem baseada em soluções para a cobertura da imprensa. Uma placa erguida no funeral da geleira OK alerta os presentes sobre as consequências da inação: “Este monumento é para reconhecer que sabemos o que está acontecendo e o que precisa ser feito.” Os meios de comunicação foram rápidos em captar a mensagem da placa e as fotos logo se tornaram virais, garantindo que o público global entendesse o funeral não apenas como um ritual de luto, mas um terrível e contemporâneo apelo à ação.
Embora tais funerais representem realidade trágica, eles também têm um imenso potencial – uma oportunidade para as pessoas se unirem em um momento de luto antes de retornar à tarefa urgente: superar pela ação o sofrimento visando garantir que nosso relacionamento com o meio ambiente seja mais proativo e não se torne uma série de funerais que se repetem.
Para aqueles que sofrem de ansiedade climática, tornar a dor em ação regenerativa é altamente profilático e recomendável. Para tanto será preciso transmutar o sentimento de desamparo diante da fúria do clima em protagonismo regenerativo.
É preciso sair do imobilismo paralisante e quebrar as resistências econômicas nocivas. É preciso promover educação sobre mudanças climáticas visando capacitação e adoção de novas estratégias de enfrentamento, a utilização de meios de intervenção na realidade para superação do desgaste psicológico, seja por meio de terapias convencionais, específicas, de ampliação da consciência sobre a problemática real em busca das melhores soluções para o problema.
Alimentar essa transição deve obrigatoriamente fazer parte das ações governamentais para capacitar a sociedade e aumentar sua resiliência e a capacidade de exigência social transformadora, o que poderá resultar em um salto civilizatório para um mundo com empatia ecológica, com perspectivas de prioridades mitigadoras e adaptativas voltadas à sustentabilidade em seu sentido mais profundo: a sobrevivência.
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