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O caminho zen de afagar tubarões

Mergulhar com tubarões não é apenas sobre aventura, contato com a natureza e uso não destrutivo de recursos naturais. É uma experiência zen

19 de maio de 2021 · 4 anos atrás
  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

“Ele era um enorme tubarão Mako feito para nadar tão rápido quanto os peixes mais rápidos no mar e tudo nele era belo exceto suas mandíbulas. Suas costas eram tão azuis quanto as do peixe-espada e seu ventre era prata e sua pele era macia e bela”. Ernest Hemingway “O Velho e o Mar”

Meu primeiro contato com um Mako (também chamado de Anequim ou Isurus oxyrinchus) foi a bordo de um barco de pesca comercial e terminou com o tubarão morto e eu deprimido pela carnificina. Ver um Mako vivo em seu ambiente se tornou um desejo.

Makos são especiais. Encontrados em mares temperados e tropicais de todo o mundo, acho seu azul-prateado metálico impossível de ser reproduzido com fidelidade por uma câmera. E, como todos os tubarões e raias, chamá-los de peixes é inadequado. Evolutivamente, uma sardinha está mais próxima de você do que de um Mako.

Capazes de nadar a 70 km/h, podem capturar marlins, atuns e golfinhos. Parte do segredo é que Makos (como os Tubarões-brancos Carcharodon charcharias e o Tubarão-golfinho Lamna nasus) têm “sangue quente” (endotermia) e um metabolismo elevado. Como nós, mamíferos.

Também como nós os Makos dão à luz a bebês, mas os deles são capazes de cuidar de si mesmos. Sua vida radical começa no útero, onde os embriões que ali crescem são alimentados via oofagia ou “canibalismo intrauterino”.

Os pequenos Mako alimentam-se de ovos não fertilizados ricos em gema enviados regularmente aos úteros (tubarões têm dois) e, quando podem, dos irmãos menores que deem bobeira. O mesmo ocorre com outros tubarões como o Mangona (Carcharias taurus), muito simpático e popular em aquários.

O fim do primeiro Mako que vi… Foto: Fabio Olmos.

É um daqueles fatos que faz bugar a cabeça de quem usa a Natureza como algo de onde se pode extrair alguma regra moral e entender a cabeça de um Criador bacaninha. 

Após uma gestação de 1,5-2 anos, quatro a 30 bebês (depende do tamanho da mãe) com 70-80 cm ganham os mares com a expectativa de viver mais de 30 anos. As fêmeas são maiores que os machos e superam impressionantes 4 m e 500 kg, atingindo a maturidade sexual com mais de 2,7 m e 12-16 anos de idade (sobre a biologia do Mako, veja aqui).

O longo período de maturação e baixo recrutamento tornam Makos (e outros tubarões) vulneráveis à mortalidade de adultos, especialmente das grandes fêmeas. Isso, junto com o valor comercial de sua carne e barbatanas, resulta em um desastre.

Tubarões – como um grupo – são mortos às dezenas de milhões a cada ano pela pesca comercial que eu, você e todo contribuinte subsidiamos com nossos impostos. Esta é uma praga mundial mantida por políticos amigos de uma indústria predatória.

Parte do problema é que Makos e muitas espécies realizam migrações (veja aqui e aqui) que rotineiramente cobrem milhares de quilômetros em diferentes jurisdições e águas internacionais.

A pesca em águas internacionais é regulada apenas em teoria, especialmente na nossa parte do Atlântico, o que ajudou no declínio em 71% das populações mundiais de tubarões e raias oceânicos em relação a 1970, quando os mares já estavam longe de virgens.

Algumas espécies de tubarões podem ter sido exterminadas antes mesmo de serem reconhecidas pela Ciência e o mesmo fim ameaça 75% de todas as espécies

O Tubarão-martelo-liso (que você já vai conhecer) é considerado globalmente Vulnerável (a mesma categoria do Panda-gigante) enquanto o Mako está globalmente Em Perigo devido ao declínio de 47% na sua população mundial ao longo de três gerações (de tubarões). Algumas populações (o povo da pesca usa “estoque”), incluindo as do nosso Atlântico e do Mediterrâneo, podem ter diminuído em 90-99% desde o início da pesca comercial.

… foi o mesmo deste Martelo… Foto: Fabio Olmos.

A situação dos Makos justificou sua inclusão na CITES e há esforços para banir sua pesca no Atlântico (o Brasil acatará?) e incluí-los na lista de espécies ameaçadas do USA. Instrumento que lá é bem mais efetivo que cá.

Ao desastre causado pela pesca industrial se soma a pesca artesanal, também subsidiada e pouco ou nada monitorada

No Brasil o Cação-quati (Isogomphodon oxyrhynchus) e o Cação-azeiteiro (Carcharhinus porosus) foram exterminados pela pesca artesanal com redes de espera. As mesmas que afogam tartarugas, golfinhos e peixes-boi.

Parte do problema, o Brasil é o 11º produtor e o maior importador de carne de tubarão no mundo. Subsidiamos a pesca predatória quando deveríamos investir na revolução da aquacultura marinha

O que o indivíduo consciente pode fazer é deixar que cações (o nome comercial dos tubarões), mecas, garoupas, badejos, atuns e demais espécies pescadas de forma predatória (veja aqui) apodreçam nas prateleiras de supermercados e peixarias e deixem os cardápios dos restaurantes por falta de compradores.

E pressionar seus vereadores para que proíbam a venda de espécies ameaçadas nos Mercados Municipais da vida. Aqui em São Paulo é rotina encontrar garoupas e tubarões – incluídos nas nossas listas de espécies ameaçadas – no Mercadão Municipal e seus similares.

… e o destes Tubarões-seda. Outra espécie ameaçada devido à pesca predatória. Foto: Fabio Olmos.

A Conservação Marinha no Brasil deixa tanto a desejar quanto nosso desempenho na Pandemia, apesar dos esforços de governos estaduais (como o Rio Grande do Sul ao proibir a pesca de arrasto) e do momento de glória quando Temer criou 11 milhões de hectares de áreas protegidas marinhas. Nem produzir estatísticas pesqueiras conseguimos.

O sucesso do Brasil em exterminar seus tubarões faz com que turistas interessados viajem a outros países que os protegem e provam que tubarões vivos geram muito mais dinheiro que tubarões mortos. Assim, aproveitamos a oportunidade de um Carnaval para buscar tubarões no México e fugir da poluição sonora dos blocos de rua paulistanos.

O tour escolhido é organizado pela Big Fi Fish Expeditions e operado pela Cabo Shark Dive, baseada em Cabo San Lucas e fundada pelo biólogo marinho (com dois mestrados) Jacopo Brunetti, que trabalhou em diferentes partes do mundo com instituições de pesquisa com tubarões.

O link entre conhecimento científico (e experiência) e o turismo de observação (e interação) com a vida selvagem é recorrente na indústria, que depende da qualidade de seus recursos humanos.

Na extremidade sul da Baja Califórnia, região famosa pela megafauna marinha (infelizmente depauperada desde que Jacques Cousteau a chamou de “aquário do mundo”), Cabo San Lucas é a típica cidade turística cheia de hotéis, restaurantes e lojas para todos os bolsos e gostos. 

Um dos maiores Makos já registrados, D. Ross capturou esta fêmea de 453,5 kg em 1940 usando molinete. Nadar com um Mako deste tamanho não seria seguro mas hoje a maioria é morta bem antes de atingi-lo. Foto da foto original que fiz na Nova Zelândia a bordo do barco original.

A pesca esportiva é importante na área e bastante regulada, incluindo estímulos ao pesque e solte e a proibição de captura de diversas espécies. Junto com restrições à pesca comercial, o resultado é a presença dos tubarões que os turistas querem ver vivos.

No caminho para os pontos de atração de tubarões é comum ver Jubartes e Baleias-cinza que adicionam à experiência. Ao chegar começa o chumming, o lançamento de restos e sangue de peixe para atrair tubarões desejosos de um almoço grátis. O que também atrai aves pelágicas que nos mantém distraídos durante a espera. 

Quando um tubarão de tamanho e disposição adequados se aproxima, entretido pelo nosso shark handler, uma boia de segurança é lançada ao mar, os clientes rapidamente vestem suas roupas de neoprene e kit de snorkelling, ligam as câmeras e pulam na água acompanhados pelo guia, que lida com o tubarão.

Nosso primeiro encontro foi com uma bela Tubarão-martelo-liso (Sphyrna zygaena). O mar tranquilo, a água com ótima visibilidade, o sol forte e seu comportamento curioso e extrovertido criaram uma experiência agradabilíssima.

Filmes mostrando tubarões como monstros robóticos determinados a matar o que encontram pela frente, desde o tosco Jaws de Spielberg à hilária franquia Sharknado e o patético The Shallows são idiotices. Tubarões são notavelmente inteligentes e curiosos, além de mostrar personalidades e boa memória

Nossa Martelo, embora animada com o sangue na água e o peixe que Jacopo oferecia, se comportou comedidamente. Ela investigou cada um de nós várias vezes, conferiu as câmeras dos meus companheiros mais profissas e aceitou o almoço grátis sem morder a mão que o oferecia.

Várias vezes ela se aproximou, provavelmente intrigada pelas minhas nadadeiras brancas (truque para atrair tubas curiosos), nadava perto o suficiente para que eu esticasse a mão e a afagasse da cabeça à cauda, e seguia para investigar meus colegas. E o almoço oferecido.

A confiante tranquilidade e curiosidade de nossa Martelo foram o exato oposto daquilo que Hollywood, e o pessoal que mata tubarões para compensar aquilo que tem pequeno, gosta de vender.

Após voltas ao redor de nosso grupo com várias oportunidades para quem quisesse esticar a mão e tocá-la, ela seguiu seu caminho com estômago cheio e nós com sorrisos na cara e belas memórias na cabeça e nas câmeras.

O interesse pelas câmeras resulta de tubarões serem sensíveis a campos elétricos como os produzidos pelos músculos, neurônios e circuitos. E tubarões-martelos são especialistas nisso.

O formato de sua cabeça permite a localização precisa de presas como raias escondidas na areia detectando o campo elétrico gerado pela batida do coração. A eletro recepção também é compartilhada por nossos primos ornitorrincos e botos-cinza, mas com modelos diferentes de sensores que são belos exemplos de evolução convergente.

No dia seguinte o vento deixou o mar mais picado e uma corrente deixou a água mais turva. Situação menos confortável para cair na água, mas foi assim que tive o encontro mais memorável.

Depois de horas balançando e tentando diferentes lugares ouvimos o desejado grito de “Mako!”, seguido pelo lançamento de mais acepipes, da boia de segurança e nós mesmos na água.

Chegando à boia de segurança, observei o tubarão por um tempo e nadei na sua direção, rapidamente descobrindo duas coisas. A primeira foi a velocidade da corrente que me levava para longe do barco. E a segunda que minhas nadadeiras brancas funcionam mesmo.

Enquanto me esforçava para retornar para as proximidades do barco uma Mako muito interessada me acompanhou, primeiro “cheirando” minhas nadadeiras e em seguida nadando ao meu lado.

Olhos nos olhos – a visão parece ser o sentido primário dos Makos – enquanto nos entendíamos me fez clicar no estado de fluxo. A serenidade alerta onde o tempo dilata, tudo se move devagar e foco e percepção se tornam perfeitos. 

A Mako estava próxima o suficiente para que eu afagasse sua cabeça e dorso, sentindo sua pele aveludada (Hemingway estava certo) sobre puro músculo vibrante. 

Percepção traz compreensão e cumpri o protocolo. Por três vezes coloquei minha mão no seu dorso e dei um leve empurrão. E por três vezes ela se afastou para logo voltar ao meu lado. 

Makos são curiosos e muito inteligentes. Eles rapidamente percebem se mergulhadores oferecem risco ou alegria e a aproximação é parte do teste. O contato mostra que você não está intimidado e a interação é tranquila. 

Após me acompanhar enquanto a fotografava, ela nadou rumo a Jacopo que, com um belo peixe nas mãos, passou a entretê-la para que todos pudessem apreciá-la. De volta ao meu baseline, acertei a regulagem de minha câmera e me juntei ao grupo na boia de segurança para filmá-la.

Se desse para engarrafar e vender o que senti durante aqueles longos segundos eu me tornaria milionário. A memória até hoje me traz um sorriso besta na cara.

Experiências com a Natureza – e animais – podem ser bastante emotivas e muitos que leem este texto já passaram por isso. Indo além disso e do prazer das endorfinas, acredito que muitos também já experimentaram “estar no fluxo”,  seu ponto zen e similares quando escalavam, mergulhavam, caminhavam, surfavam, encontraram “aquele bicho”, etc. 

Não serei o primeiro a associar isso às epifanias, imanências e outros flips neuroquímicos alcançados via meditação e outras práticas. Nada místico, minha hipótese é que, como sonhar e o barato trazido pelas endorfinas, são algo que evoluímos para sentir regularmente e sua falta, numa vida sem Natureza, é fonte de muita infelicidade.   

Filmes, posts e livros contam como experiências com o mundo natural – de uma trilha de longa distância ao encontro com um pombo na janela – ajudam quem passa por momentos ruins ou está repensando sua vida. E como sentimento de deslumbramento pode te fazer uma pessoa melhor

Interações positivas com a Natureza e, especialmente, com animais ajudam crianças e adultos a cultivarem respeito à vida, curiosidade, empatia e autoconfiança, além de renderem momentos PQP que fazem a vida valer a pena. Minha esposa, que de vez em quando jogo aos tubarões, sabe como é.

E muito tem sido escrito sobre os impactos negativos da falta de contato com a Natureza no desenvolvimento das crianças e no bem-estar de adultos

Freud à parte, suspeito que a abundância de gente perturbada na nossa sociedade e no noticiário político tenha muito a ver com infâncias quando, se houve contato com a Natureza, este foi baseado em matar e torturar bichos.

Depois dizem que os tubarões são os monstros. Kāmohoaliʻi que nos perdoe.

Sol forte, água cristalina e Tubarão-martelo bronzeada. Foto: Fabio Olmos.
… e amistosa. Foto: Fabio Olmos.
Linda, rápida e inteligente. Foto: Fabio Olmos.
“Estas nadadeiras brancas parecem interessantes”. Foto: Fabio Olmos.
Hola, preciosa. Foto: Fabio Olmos.

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Comentários 3

  1. Paulo Dias diz:

    Fábio Olmos, a leitura de dois de seus inteligentes artigos (um sobre o cururuá de Ilhabela e outro sobre o mergulho com o tubarão mako) avivaram em mim a consciência de que conhecer, ver, vivenciar, e mesmo tocar nossos irmãos viventes amplia as fronteiras da nossa percepção do estar-na-natureza, do quanto o convívio humano não-violento com outras espécies se faz necessário… Talvez um gesto nobre que momentaneamente nos redima da agressão histórica especista do “sapiens”, nessa sociedade onde a vida selvagem tem cada vez menos lugar…
    Paulo Dias, músico e fotógrafo amador de natureza


  2. Philipp Stumpe diz:

    É… Uma vivência assim marca a vida da gente para todo o sempre, para o infinito e o além. Há as mais distintas formas e ‘causas’ para esse sentimento que, se engarrafável, tornaria-nos milionários. Os minutos que mais me marcaram, fizeram a endorfina passar dos 1000% foi o sobrevôo do Rio Pelotas para registrar a estupenda floresta com araucárias, imbuias e ninguém nunca ‘viu’ e nunca mais saberá quais bichos todos, que a hidrelétrica de Barra Grande, na divisa do RS e SC, acabou por inundar.
    Leia-se nas palavras do Marcos Sá Corrêa:
    https://www.oeco.org.br/colunas/16041-oeco-10366/

    Depois do sobrevôo, fiquei em estado de choque, pois sabia que valeria o ditado dos interesses financeiros. Os mesmos que ‘fraudaram’ o Estudo de Impacto ambiental, que simplesmente ‘não viu a floresta’.
    Para quem quiser saber mais, aqui a história em livro:
    https://tinyurl.com/BarraGlivro

    Na página 57 está a narrativa desse meu ‘momento Mako’.

    A Apremavi conta mais:
    https://apremavi.org.br/frutos/a-hidreletrica-que-nao-viu-a-floresta/


  3. Artigo sensacional, como tudo o que o Fabio Olmos faz.