No domingo dia 7 de março de 2010, o turista israelense Itay Ben David, de 31 anos, foi encontrado pelo Corpo de Bombeiros do Rio de janeiro depois de três dias perdido na floresta do Parque Estadual da Ilha Grande. David subiu sozinho a trilha do Pico do Papagaio. Alcançou seu objetivo, desfrutou a vista deslumbrante, e desceu. Na volta, confundiu-se em alguma bifurcação e passou quase 36 horas imerso na Mata Atlântica.
Caminhar desacompanhado nunca é boa idéia em lugar algum. Trilha é um exercício que deve ser feito em grupos de dois, idealmente três. Assim, minimiza-se o risco de acidentes. Por outro lado, não é difícil entender David, pois em seu país, uma trilha curta assim e localizada em uma área de tanta importância turística estaria sem dúvida sinalizada, tornando improváveis os riscos de extravio. Mas para azar de David, o Brasil não é Israel.
Israel é um país pequenino. Tem apenas 22.072 km2. Correspondem a pouco mais que a metade da área do Estado do Rio de Janeiro que se espraia por 43.305 km2 e bem menos que os 38.821 km² do Parque Nacional de Tumucumaque. Pois é, esse David territorial não tem dificuldades em nocautear o Golias brasileiro quando o assunto é manejo e sinalização de trilhas.
Ao que tudo indica, as seguidas expulsões e peregrinações relatadas no Velho Testamento ensinaram o povo judeu a tomar gosto pelas caminhadas. Israel tem hoje mais de 12 mil quilômetros de trilhas bem sinalizadas, que cortam o país de norte a sul, desde a Galiléia até o Mar Vermelho, e de leste a oeste, desde o Mar Morto até o Mediterrâneo. Há percursos para todos os gostos e níveis: trilhas para cadeirantes e deficientes visuais, trilhas para mountain bikes, trilhas fáceis para a família inteira e trilhas complicadas, recomendáveis apenas aos mais experientes.
Entre todas elas, contudo, uma sobressai, a Trilha Israel. Concebida em 1985 por Avraham Tamir, após ter palmilhado a totalidade da Trilha Apalache, nos Estados Unidos, a idéia ganhou logo o apoio de montanhistas locais bem como de funcionários do Serviço de Parques Nacionais e Áreas Naturais de Israel. O trabalho de identificar o melhor (não necessariamente o mais curto) traçado no terreno demorou alguns anos. Ao fim e ao cabo, o percurso escolhido ficou com 1.034 quilômetros, passando pelas principais unidades de conservação e ecossistemas de Israel e dando ao montanhista a oportunidade de conhecer as paisagens mais bonitas do país, assim como as principais ruínas e locais bíblicos ou históricos.
Se o trajeto definitivo deixou de incorporar uns poucos locais de grande interesse como Masada e o Mar Morto, houve o cuidado de ligar a Trilha Israel a esses atrativos por trilhas secundárias que permitem ao caminhante visitá-los sem deixar de transitar em meio à natureza, usando apenas os próprios pés. Nesse sentido, também é louvável a preocupação dos planejadores da Trilha em dividí-la em 51 pequenos módulos de raramente mais de 25 km cada, caminháveis em só um dia, ao fim do qual é possível encontrar um ponto de apoio onde dormir, adquirir suprimentos e reabastecer o cantil. Ao início de cada módulo existe uma grande placa de sinalização com um mapa detalhado da rota, telefones úteis e de emergência e dados elucidativos sobre a história, fauna, flora e geologia da região.
Entre os contatos providos nas placas estão os de táxis ou de pessoas que fazem o serviço de levar reabastecimento de provisões a locais da trilha onde é necessário caminhar mais de 25 km, sem passar por um ponto de apoio. Outro aspecto positivo da Trilha Israel é que ela foi planejada buscando proporcionar uma experiência interessante também para aqueles que só podem percorrê-la ao longo de muitos meses, caminhando pequenos trechos de cada vez. Para essas pessoas, raramente é necessário ir e voltar ao ponto de partida pelo mesmo caminho. Em várias encruzilhadas a Trilha Israel encontra uma trilha secundária que a liga de volta ao início de cada módulo por trajetos alternativos e diferentes, facilitando aos caminhantes o retorno aos lugares de onde desembarcaram dos ônibus ou estacionaram seus carros. Vai-se algumas horas pela Trilha Israel e volta-se por outra trilha também sinalizada. As duas formam uma rota circular e, dessa forma, não é preciso repetir o caminho.
O início da Trilha Israel é politicamente correto. Evita as Colinas de Golã, ocupadas pelo Estado Judeu, mas juridicamente pertencentes à Síria. Muito embora seja possível iniciar a caminhada no Castelo de Nimrod, próximo aos 2.800 metros de altitude dos picos nevados do Monte Hermon, o começo e a sinalização oficiais da Trilha só aparecem cerca de 15 km depois junto ao kibutz de Dan e após a Reserva Natural de Tel Dan, já em território internacionalmente reconhecido como israelense.
A partir daí a Trilha oferece um cardápio capaz de satisfazer os mais variados paladares. Desce em direção ao sul por 118 quilômetros verdejantes até alcançar o Mar da Galiléia, atravessando diversas unidades de conservação com rios, cachoeiras e pântanos, bem como ruínas de cidades milenares e vilas druzas.
Após a Galiléia, a Trilha inflete para oeste até Haifa, passando próximo aos jardins dos Templos Baha`ii, classificados como Patrimônio Mundial da Humanidade pela UNESCO. Segue então pelo litoral cruzando a cidade milenar de Cesarea e batendo ponto em diferentes ruínas otomanas, gregas, fenícias, assírias bizantinas e cristãs, essas últimas, sobretudo do período das cruzadas.
Muitas vezes a Trilha Israel corre por cima de leitos de estradas antigas como a Estrada de Cesar, construída nas montanhas da Judéia em 133 D.C. e a Rota do Incenso que ligava o Oriente aos portos de Gaza e era controlada pelos nabateus, desde sua capital Petra, localizada na atual Jordânia.
Durante 383 quilômetros a Trilha perambula entre ruínas e templos milenares, atravessa os parques de Tel Aviv, os subúrbios de Jerusalém e visita incontáveis locais sagrados para os cristãos, muçulmanos e judeus. Por fim, após Tel Arad, onde um pequeno desvio até Masada e o Mar Morto são vivamente recomendados, a Trilha penetra o deserto do Negev, onde serpenteia por mais centenas de quilômetros, até desembocar no Mar Vermelho, em Eilat.
O caminho é bem sinalizado com as cores branca, roxa e vermelha que são a marca registrada da Trilha Israel. Por mais intimidante que o deserto possa parecer, um montanhista com alguma experiência é capaz de atravessá-lo sem grandes dificuldades. O traçado da trilha é muito bem pensado. Abre panoramas belíssimos, educa por meio de ruínas de grande valor histórico, oferece refresco nos diversos oásis existentes na região e dá comida, cama e roupa lavada ao fim de quase todos os módulos nos kibutz instalados no Negev.
E não pense o brasileiro acostumado às luxuriantes florestas tropicais que o deserto é somente o que a palavra sugere. Não é desprovido de vida nem de beleza! A água é pouca, mas existe, há flores, também há fauna: gazelas e ibex (cabras selvagens) não são incomuns, raposas são figurinhas fáceis durante o crepúsculo e as paisagens são indescritíveis. Somente no deserto é possível entender quantas tonalidades o branco pode assumir!
Tanta beleza, contudo, acaba cansando. Por isso mesmo o epílogo é bem vindo. A alegria da vista do alto dos 278 metros de altitude do Monte Zehafot, na Reserva Natural das Montanhas de Eilat, é difícil de exprimir em palavras. Quando se chega ali, depois de 400 quilômetros de deserto, falta apenas uma hora para se atingir o fim da Trilha Israel, na beira do Mar Vermelho, em um ponto colado à fronteira egípcia. De seu cume é possível divisar o azul do Golfo de Aqaba. Não é um azul qualquer, mas um azul turqueza, cuja tonalidade somente os corais do Mar Vermelho são capazes de conferir. Os últimos três quilômetros são então percorridos em ansiosa carreira. O gran finale é inevitavelmente um merecido mergulho nas águas transparentes e piscosas da Reserva Natural da Praia de Coral.
Na Ilha Grande já se pensou em fazer algo semelhante. Em 2000 e 2001 a prefeitura local implementou um projeto muito bem pensado de sinalização de suas trilhas, que entre outras coisas permitiria circunavegar a Ilha pernoitando nas pousadas existentes pelo caminho. Quando visitei o local a convite da Secretaria de Turismo fiquei muito bem impressionado. A sinalização era bem pensada e estava bem executada. Entre outros percursos, subi sozinho o Pico do Papagaio e achei que seu trajeto estava muito bem balizado.
O problema- geral no Brasil aliás – é a falta de continuidade e manutenção do que já foi feito. Após dez anos de sua implementação o projeto de sinalização das trilhas da Ilha Grande encontra-se em estado letárgico. Poucas semanas antes de David a turista australiana Andrea Humpherys já havia se perdido na mesma trilha. Ou seja, o que poderia ser episódio começa a adquirir um padrão.
Pena: não é muito difícil fazer a manutenção da sinalização. Uma lata de tinta e duas pessoas minimamente capacitadas poderiam dar conta de manter os caminhos da Ilha impecavelmente sinalizados. É necessário, contudo, vontade política e isso, em nosso país, é mercadoria rara.
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