Quando comecei a militar na causa da conservação, há cerca de 30 anos, o Brasil estava discutindo a Lei do SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação) e não tínhamos ainda as doze categorias de conservação que hoje compõem nosso Sistema. Nesse sentido, as RPPNs ainda não existiam e o conceito de conservação em terras privadas era incipiente. Menos ainda existia o conceito de manejo ecossistêmico e integrado.
Meu primeiro contato com a ideia de conservação privada foi logo depois de assumir a chefia do Parque Nacional da Tijuca em fins da década de 1990. Tinha recém-desenvolvido o projeto Rede Carioca de Trilhas, já então implementado em algumas unidades de conservação municipais, e queria levá-lo para a Floresta da Tijuca, com a criação de duas grandes trilhas circulares de longo curso, que serviriam também como coluna vertebral da Trilha Transcarioca.
O problema é que praticamente não existiam no Brasil, àquela altura, profissionais capacitados em implantação, sinalização e manejo de trilhas. Após muito pesquisar, em tempos que não havia google e a internet estava em sua primeira infância, descobri que a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza realizava algumas capacitações sobre o tema em uma reserva que mantinha na Mata Atlântica paranaense. Telefona aqui, pede aqui, articula acolá e consegui três vagas no curso “Planejamento Implantação e Manejo de Trilhas em Unidades de Conservação”, ministrado pelo ambientalista norte-americano Larry Lechner, um dos maiores especialistas no assunto em todo o mundo.
Ao fim e ao cabo, os problemas da administração do Parque da Tijuca me impediram de viajar ao Paraná, mas o Analista Ambiental Aluísio Macedo e o voluntário Ivan Amaral “Terra Limpa” foram e concluíram o curso do qual se tornaram multiplicadores. Ambos retornaram muito bem capacitados e maravilhados com a Reserva Salto Morato. Aluísio logo assumiu a coordenação da primeira equipe de trilhas estruturada em um Parque Nacional brasileiro. Sob sua liderança, as trilhas circulares da Tijuca foram implementadas e até hoje são referência de manejo e sinalização para toda a Rede Brasileira de Trilhas, da qual a Tijuca foi o primeiro embrião. Após sua morte, em homenagem ao trabalho realizado, uma das trilhas do PNT foi batizada com seu nome. Ivan Amaral não largou mais o tema. Tornou-se um dos fundadores da Trilha Transcarioca, da qual é coordenador de sinalização até hoje, e é um dos diretores pioneiros da Rede Brasileira de Trilhas.
No ano 2000, em Campo Grande, durante o II Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, também organizado pela Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, fui procurar seu então diretor-técnico, Miguel Milano, para agradecer as vagas no curso e parabenizar pela excelência de sua capacitação. Falamos sobre diversos assuntos mas, durante nossa conversa, o que mais me impressionou foi o brilho nos olhos de Milano cada vez que falava em Salto Morato.
Em novembro do ano seguinte, acompanhei com atenção uma Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar irregularidades cometidas por Organizações Não Governamentais, em que o Grupo Boticário era acusado de atividades espúrias em Salto Morato. Na ocasião, a Fundação se defendeu com argumentos sólidos, mostrou que geria e manejava Salto Morato como um Parque privado, capacitava profissionais do meio ambiente e, desde 1996 estava aberta à visitação pública, contribuindo também para o bem-estar da população do entorno. Fiquei impressionado com a força dos argumentos da defesa, mas o que me tocou a alma foi a paixão demonstrada pelos defensores da causa que Salto Morato representava. A Fundação saiu aplaudida da audiência no Senado.
Mais tarde, no contexto do Conselho deste jornal digital ((o))eco, do qual tenho a honra de ser fundador, passei a admirar cada vez mais a Fundação que, além de ter sido apoiadora raiz de ((o))eco desde os tempos da editoria-em-chefe de Marcos Sá Corrêa, sempre nos socorreu nos momentos mais difíceis. Também desenvolvi grande apreço por suas lideranças que, desde então, compõem o Conselho de O Eco, onde pude conhecê-las melhor e avaliar com detalhe seu comprometimento com a Conservação.
Anos mais tarde, quando fui presidente de ((o))eco, tivemos uma reunião em Curitiba, ocasião em que nosso então diretor-executivo, Eduardo Pegurier, e eu fomos convidados a visitar Salto Morato. Fiquei animadíssimo com o convite para visitar aquela unidade, agora já formalmente parte do SNUC, como Reserva do Patrimônio Particular da Natureza (RPPN) e, desde 1999, reconhecida pela Unesco como integrante do Sítio do Patrimônio Natural da Humanidade Reservas de Mata Atlântica do Sudeste Brasileiro.
A animação era justificada. Desde minha primeira conversa com Miguel Milano, e mesmo antes, a começar por Ivan e Aluísio, todos com quem falava sobre Salto Morato só tinham elogios à unidade. Os servidores da Fundação O Boticário, entretanto, sempre me impressionaram pelo brilho nos olhos, que exalava uma alegria e um orgulho que só se vê nos olhares das mães.
Naquele fim de semana, contudo, caiu um temporal, a estrada de Guaraqueçaba ficou intransitável e, para decepção de todos, pela segunda vez não consegui visitar Salto Morato.
Ao longo da década seguinte, o Itamaraty me levou a viver em diferentes lugares do mundo. Para cada canto que me mudei, levei comigo o amor inseparável que nutro pela conservação. Em cada país, procurei sempre aprender mais sobre preservação da natureza, gestão de órgãos de conservação e áreas protegidas. No período, visitei mais de 400 unidades de conservação, entre elas algumas dezenas de reservas particulares em vários países, como reservas na África do Sul, na Namíbia, no Quênia e no Zimbábue, na Nicarágua e no Caribe. Em Belize, mantive muito contato com a Belize Audubon Society, que administra 58.680 hectares, em sete unidades de conservação daquele país (Half Moon Caye Natural Monument, Cockscomb Basin Wildlife Sanctuary, Crooked Tree Wildlife Sanctuary, Guanacaste National Park, and St. Herman’s Blue Hole National Park) e, mais recentemente, tive o privilégio de conhecer com alguma profundidade as reservas privadas Chakana e Yunguilla, no Equador.
Assim é que quando, finalmente, no mês passado (finalmente), depois de três décadas, coloquei meus pés em Salto Morato, já tinha uma boa noção do que era, de como era gerida e manejada, bem como já tinha visitado diversas reservas privadas no Brasil e no mundo, capazes de me fornecer parâmetros de comparação.
Ainda assim, por mais que Salto Morato já estivesse fixado de maneira firme no meu imaginário como uma Unidade de Conservação modelar, nada havia me preparado para a alta qualidade de seu manejo: instalações bem construídas, bonitas e arquitetonicamente integradas à paisagem mas, sobretudo, adequadas à atividade-fim com centro de visitantes, oficinas bem equipadas com veículos e ferramentas relevantes para o manejo da unidade, além de auditório e salas para aulas, atividades de capacitação e reuniões, alojamentos e refeitório para instrutores e alunos. No que toca o uso público, Salto Morato conta com área para acampamento, casa de hóspedes, lanchonete, espaço para piqueniques e duas trilhas com manejo exemplar que inclui pontes, mirantes e caminhos estruturados para cadeirantes, levando à atração principal da RPPN, o imponente Salto Morato, cachoeira que despenha-se por mais de 100 metros em meio a exuberante Mata Atlântica.
Salto Morato foi adquirido em 1996 e ampliado em 1998. As duas parcelas que hoje compõem a RPPN somam 2.253 hectares A parte baixa da Reserva era uma fazenda de búfalos e, por ocasião de sua compra, estava muito degradada, tendo inclusive várias áreas de grama. Em uma breve caminhada nas trilhas da unidade, contudo, dá para entender claramente porque os olhos de seus gestores e funcionários brilham. Somente a visita apurada de quem trabalha há muito com a conservação consegue distinguir as áreas de mata mais antiga daquelas que um dia foram pasto e hoje já se encontram em estado bastante avançado de regeneração, como comprova estudo da Universidade do Paraná, cujos pesquisadores tive o privilégio de encontrar na mata. Embora ainda haja impacto de espécies exóticas introduzidas naquela época, como a braquiária, o capim-gordura e árvores frutíferas, a exemplo de goiabeiras e limoeiros, a flora de Salto Morato vai bem, obrigado: soma 646 espécies vasculares e não vasculares, pertencentes a 118 famílias botânicas. Em nosso passeio, minha esposa Paula e eu vimos diversas espécies de pássaros e um cachorro do mato. Não é para menos. Salto Morato abriga uma rica fauna que inclui 61 anfíbios, 55 peixes, 36 répteis e 93 mamíferos entre felinos, roedores e primatas. Na Reserva voam 325 espécies de aves o que torna Salto Morato destino de observadores de pássaros, que ao se hospedarem na região, ajudam a gerar emprego e renda no entorno.
Como se vê, Salto Morato é, efetivamente, uma Unidade de Conservação modelo. Mas o que me encantou foi que atingir esse nível de excelência não bastou para seus gestores. A Reserva é área núcleo da Área de Proteção Ambiental de Guaraqueçaba e, como citei anteriormente, está encravada em um Sítio do Natural do Patrimônio Histórico da Humanidade. Salto Morato chamou para si, em parceria com as RPPNs mantidas na vizinhança por outra dedicada e bem-sucedida ong conservacionista, a SPVS, a missão de levar o nível de excelência ali alcançado para todo o entorno em um belíssimo projeto de gestão ecossistêmica e integrada chamado Grande Reserva Mata Atlântica.
Trata-se de um desafio hercúleo. A Grande Reserva tem 2,2 milhões de hectares, praticamente mil vezes o tamanho da RPPN Salto Morato. A princípio, pareceria uma ambição descabida e um sonho irrealizável, mas quem estudou os resultados dos projetos da Fundação O Boticário, quem visitou Salto Morato e, sobretudo, quem viu cara a cara o brilho nos olhos dos seus servidores acredita. Salto Morato é uma grande referência em Unidade de Conservação; por tudo que vi e senti ao longo dos últimos 25 anos, acredito que a Grande Reserva também será uma grande referência em termos de política territorial em conservação e manejo ecossistêmico. Tenho certeza de que, em alguns anos, ((o))eco poderá publicar também essa bela história de sucesso.
As opiniões e informações publicadas nas sessões de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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