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Alan Rabinowitz: uma voz dedicada aos animais

O biólogo e ativista famoso por seus estudos com grandes felinos superou a gagueira para se tornar um contador de histórias emocionantes

8 de agosto de 2018 · 6 anos atrás
  • Fernando Fernandez

    Biólogo, PhD em Ecologia pela Durham University (UK). Professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, trabalha com Biologia da Conservação.

Alan Rabinowitz durante palestra que ocorreu em Maine/EUA. Foto: Kris Krug/Flickr

Há alguns anos, recebi a recomendação de um podcast com um biólogo chamado Alan Rabinowitz, conhecido por seus estudos com grandes felinos. Confesso que não percebi na hora o valor do que tinha nas mãos. Comecei a ouvir meio distraído, fazendo outras coisas. Logo, porém, me vi preso, hipnotizado, ouvindo com imensa atenção. Dezenove minutos depois, eu já tinha chorado duas vezes, sozinho diante do computador, ouvindo aquela voz estranha. Percebi que tinha diante de mim uma história maravilhosa.

Que eu saiba, ninguém tinha contado ainda em português essa história. Então, aqui vai. A gravação é uma entrevista de Rabinowitz para um programa de auditório norte-americano chamado “The moth”, que se chamou originalmente “A voice for the animals” (“Uma voz para os animais”). Os trechos que mostro estão em tradução livre, um pouco “enxugada”, para maior agilidade.

A história começa com dolorosas lembranças de infância: “Aos cinco anos de idade eu estava no Zoológico do Bronx, olhando para uma velha onça fêmea. Me lembro de olhar para as paredes nuas, o teto nu, e pensar o que aquele animal tinha feito para ter vindo parar ali. Me inclinei um pouco em direção à gaiola e comecei a sussurrar algo para a onça. Meu pai veio rápido e perguntou, ‘o que você está fazendo?’ Me virei para tentar explicar, mas minha boca travou, como eu sabia que ia acontecer. Tudo na minha infância aquela altura era caracterizado pela minha incapacidade de falar. Desde a primeira vez que tentei falar, eu sofria de uma severa, severa gagueira. Não um tipo normal de ba-ba-ba repetitivo que muitos gagos tem, e muita gente tem quando criança. Era o completo bloqueio do fluxo de ar; se eu tentasse puxar o ar minha cabeça tinha espasmos, meu corpo tinha espasmos.”

“Isolado do mundo das pessoas com quem não conseguia se comunicar, o garoto acabou descobrindo um outro mundo só dele.”

Aos poucos, a deficiência e a incapacidade dos outros de lidar com ela – numa época em que o problema não era bem entendido pelos médicos – foram gerando em Rabinowitz falta de comunicação e um isolamento cada vez maior. “Ninguém sabia o que fazer comigo. A reação do sistema público de ensino de Nova Iorque foi me colocar numa classe de crianças com distúrbios. Me lembro dos meus pais protestando, mas os professores disseram, ‘nós sentimos muito, mas sempre que ele tenta falar ele incomoda todo mundo.’ Então eu passei minha infância me perguntando por que os adultos não podiam ver dentro de mim, por que não podiam ver que eu era normal, e todas as palavras estavam dentro de mim, mas elas só não… não saiam.”

Isolado do mundo das pessoas com quem não conseguia se comunicar, o garoto acabou descobrindo um outro mundo só dele. Ou será que não era só dele? “Todos os dias eu vinha para casa da classe de alunos especiais – os outros garotos chamavam de classe dos retardados – e ia direto para o meu quarto. Daí eu ia para um closet no meu quarto onde eu tinha um pequeno canto escuro. Eu ia para o closet, fechava a porta e trazia os meus bichos de estimação. Hamster, gerbil, tartaruga verde, um camaleão, uma cobra de jardim numa gaiola… e eu falava para eles. Eu falava fluentemente para eles. Eu falava para eles minhas esperanças e meus sonhos… E os animais prestavam atenção, eles sentiam isso. E logo percebi que eles sentiam isso porque eles eram como eu. Mas eles não tinham uma voz humana. Os animais, eles tinham sentimentos também. Eles também estavam tentando transmitir algo. Mas eles não tinham uma voz humana. Então as pessoas os ignoravam… ou não os entendiam… ou os machucavam… ou algumas vezes os matavam. Eu jurei para os animais quando eu era pequeno que se algum dia eu conseguisse encontrar a minha voz, eu seria a voz deles.”

“Rabinowitz conheceu um monstro sagrado chamado George Schaller, o pioneiro do estudo de grandes carnívoros no campo. Este encontro mudou a vida de Rabinowitz.”Diego Rodrigues, ICMBio

Mas encontrar a voz de Rabinowitz não parecia um sonho possível. Pais, médicos, todos estavam perdidos. “Meus pais não sabiam o que fazer, eles tentaram de tudo. Eles tentaram medicamentos, eles me mandaram para muitos psicólogos, mas nada, nada funcionou.”

A dor do isolamento, e aquela tentativa obsessiva de ser o melhor em tudo para compensar a frustração social, são ambas familiares para qualquer um de nós que, assim como eu mesmo, foi uma criança tímida: “Eu fiz a escola básica, o ensino médio e até a faculdade, usando truques que eu estava aprendendo, aprendendo quando não falar, aprendendo a evitar situações, aprendendo a evitar as pessoas. Nas disciplinas eu era excelente, ficava com A em tudo. Nos esportes eu fiz parte dos times de luta e boxe da minha escola e da faculdade. Todos diziam que eu era um atleta talentoso, mas não era, eu nem sequer gostava daquilo. Eu era apenas um jovem muito muito frustrado que tinha que encontrar uma saída para a sua raiva. Quando eu já era um veterano na faculdade eu nunca… nunca tinha saído com uma garota. Eu nunca tinha beijado nenhuma mulher. E eu nunca tinha falado uma só frase completamente fluente para outro ser humano.”

Quando já ninguém mais esperava, a dolorosa barreira finalmente caiu: “Lá pelo meio do meu último ano de faculdade, meus pais ouviram falar de um novo programa experimental numa cidade do interior do estado. Era muito intenso, eu tinha que viver lá trancado por dois meses (…) Essa clínica mudou minha vida (…). Eles me ensinaram, a coisa mais importante, era que se eu fizesse o que eles estavam me ensinando (…), as ferramentas, a mecânica, para controlar mecanicamente minha boca, o fluxo de ar… se… se trabalhasse duro, eu poderia ser um gago completamente fluente. Eu trabalhei duro. E… foi inacreditável. Pela primeira vez em vinte anos eu podia falar! Dava um monte de trabalho, porque enquanto falava eu tinha que ficar pensando sobre conexões, fluxo de ar, isso e aquilo. Mas não importava, nada disso importava. Eu era um falador fluente agora.”

Alan Rabinowitz. Foto: Phantera.Org/Twitter.

Não completamente fluente na verdade, porque em muitos momentos na gravação (que mantive nesse artigo) os vestígios da gagueira ainda aparecem. Mas a mudança foi quase total. Aliviado, ele conclui: “A vida seria diferente.”

E foi – mas não da forma esperada. Quase no final do curso de Medicina, Rabinowitz mudou radicalmente o rumo da sua vida: “Eu percebi que não podia ficar fazendo isso, eu odeio laboratórios, e pior que isso, eu odiava, eu era torturado por sentir a frustração e a dor dos animais de laboratório naquelas pequenas gaiolas, girando naquelas pequenas rodas. Então tentei pós-graduação na Universidade do Tennessee, em Biologia da Vida Silvestre e Zoologia, e fui aceito.”

Nesta época, Rabinowitz conheceu um monstro sagrado chamado George Schaller, o pioneiro do estudo de grandes carnívoros no campo. Este encontro mudou a sua vida: “Nós passamos um dia seguindo ursos e no final do dia George me disse: ‘você gostaria de ir para Belize para estudar onças?’ O primeiro pensamento que passou pela minha cabeça (…) foi: ‘onde diabos é Belize?’ mas as primeiras palavras que saíram da minha boca foram: ‘É claro que eu iria…é claro.’”

Depois de descobrir onde era Belize, lá ele se tornou um dos grandes especialistas em onças, depois de anos de estudos. O sonho de Rabinowitz viver estudando a natureza que tanto amava tinha enfim se tornado realidade. Mas apesar disso, algo não estava bem: “Eu sabia que podia ficar aqui para sempre, e ser feliz, e me sentir confortável. Mas na verdade não podia. Porque eu também percebia que enquanto estava pegando onças, e obtendo informação sobre elas, elas estavam sendo mortas na minha frente. Minhas onças estavam sendo mortas, as onças fora da minha área de estudo estavam sendo mortas… Elas estavam sendo exterminadas. Sim, eu podia ficar sentado na mata sem fazer nada, mas então eu não estaria sendo fiel a mim mesmo, e mais importante, eu não estaria sendo fiel à promessa que tinha feito aos animais naquele closet, de que eu iria ser a voz deles. Eu tinha uma voz agora, se quisesse usá-la”.

Mas era um passo gigantesco para aquele garoto que mal conseguia falar com as pessoas: “Ironicamente, eu percebi que para salvar aquelas onças, eu não apenas tinha que entrar de novo no mundo das pessoas, mas precisava ir direto para os níveis mais altos do governo. Eu tinha que falar com o Primeiro Ministro.”

Seria um passo grande demais? “Em seis meses, eu estava na capital, na porta do escritório do Primeiro Ministro. Ele tinha me concedido uma entrevista, com a presença dos ministros. Eles tinham me dado quinze minutos. Eu não tinha a menor ideia do que ia falar para eles, sinceramente, tinha certeza de que eles tinham me concedido a entrevista só porque queriam conhecer aquele gringo maluco que estava na mata pegando onças. Eu tinha quinze minutos… e não podia gaguejar. Eu não podia gaguejar. Eu não podia distraí-los do ponto de tentar salvas as onças. Tinha que usar tudo o que tinha aprendido, ser um falador completamente fluente e convencer um dos países mais pobres da América Central, nenhuma área protegida no país na… na… na época, um lugar onde turismo não era valorizado, a salvar as onças…”

Daria certo? “Uma hora e meia depois, saí da sala. O Primeiro Ministro e o gabinete tinham prometido criar a primeira reserva do mundo dedicada à preservação das onças. E prometi a eles que iria fazê-la funcionar, e que poderia gerar benefício econômico.”

A história, porém, não termina aí.

“Um mês mais tarde estava na mata seguindo minhas onças. Eu conhecia todas as onças na minha área pelos seus rastros. Mas naquele dia, eu encontrei um rastro completamente novo. Era o maior macho que eu já tinha visto na  vida, as maiores pegadas. Eu sabia que tinha que seguí-lo, na esperança de vê-lo, ou pelo menos de descobrir o que ele estava fazendo lá, se vinha de fora, se estava apenas de passagem… eu o segui por horas, colado naquelas pegadas. Até que percebi que estava ficando tarde, e não queria ficar na mata à noite sem uma lanterna. Aí me virei para voltar ao acampamento… e lá estava ele! Menos de cinco metros atrás de mim… Ele tinha dado a volta em mim e estava me seguindo enquanto eu o estava seguindo [risos]. Ele podia ter me matado a qualquer momento. Eu não tinha nem o ouvido.”

“Eu sabia que devia estar com medo, mas não estava. Instintivamente, eu só me abaixei, e a onça se sentou. E eu olhei nos olhos daquela onça, e me lembrei tão claramente daquele garoto olhando nos olhos daquela velha fêmea triste no Zoológico do Bronx. Mas esse animal não estava triste. Nos olhos dele havia força, poder, e segurança. E eu percebi que o que estava vendo nos olhos dele era um reflexo do que eu mesmo estava sentindo. Aquele pequeno garoto abatido e aquela velha onça abatida agora eram isso. Ha… de repente eu senti medo. Eu sabia que devia sentir medo. Me levantei e dei um passo para trás. E a onça se levantou também, se virou, e começou a andar para a mata. Depois de uns três metros parou, e se virou para me olhar. Eu olhei para a onça e me inclinei um pouco na direção dela, do jeito que tinha feito no Bronx tantos anos antes. E eu sussurrei para ele, ‘está tudo bem agora, tudo vai ficar bem.’ E a onça se virou, e se foi.”

Como qualquer grande história, o valor da saga de Rabinowitz vem do que ela tem de universal. Muitos de nós que gostamos de animais já sentimos aquelas coisas iguaizinhas, e sempre pensamos, “será que eu é que sou estranho por sentir algo assim, se tantas pessoas não entendem isso?” E aí, de repente, a gente descobre que não está sozinho, que há mais pessoas lá fora que sentem do mesmíssimo jeito, coisas que são tão especiais para nós.

Alan Rabinowitz faleceu anteontem, 5 de agosto de 2018, de câncer. Nunca o conheci pessoalmente. É uma pena: a gente ia ter muito para conversar.

PS: Agradeço a Patrícia Mendonça por ter me mostrado o podcast, e a Everton Miranda por ter me dado a ideia de enviar este texto para O Eco.

 

Saiba mais

Podcast (em inglês), “O homem e a fera”, que inspirou essa coluna

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Comentários 2

  1. Marcus diz:

    Essa linda história está contada num magistral filme (de 11 min), chamado MAN AND BEAST. Foi patrocinado pela Canon. Pesquise no Youtube por MAN BEAST CANON, aparece entre os 1os resultados. Sempre me emociono quando o assisto.


  2. Malu diz:

    Obrigada FERNANDO por essa linda história sobre o Alan! Obrigada Alan por defender as onças! que os que sentem amor pelos animais possam ser exemplo para muitos mais.