Se para alguns este ensaio é mais um dejá vu, já que a temática é novamente os cantos e encantos amazônicos, para outros – e me incluo nesta, é um passeio lírico pela arte fotográfica. Num mundo digital regado a câmeras tão sofisticadas, em que é preciso muita leitura de manual e paciência para conhecer todos seus recursos, onde não se tem mais certeza sobre a veracidade da informação contida na imagem, já que se tornou comum o uso de programas de manipulação e falseamento sobre a realidade fotografada, é uma benção aos olhos quando vemos imagens de purismo e delicadeza impecáveis. Como este ensaio de Maria di Andrea Hagge.
Eu sou do tempo – e que não faz tanto tempo assim, dos cromos coloridos e dos velhos negativos PB Tri-X 400; sempre viajei com duas ou mais câmeras, cada qual munida de um tipo de filme. E neste universo de cliques manuais, cálculo intuitivo de luz e fotografias pensadas, firmava uma linguagem fotográfica, construía um conceito de acordo com meu olhar, acertando, errando e descobrindo, e na mesa de luz ou no laboratório manual tentando entender o porquê daquele resultado – sempre tardiamente é claro, já que aquela cena fotografada estava há milhares de distância. Mas o mundo digital veio pra valer, com suas facilidades e linguagens informatizadas. Contudo, trouxe também aqueles que firmaram ainda mais sua opção fotográfica e proposta profissional. Como a fotografia artesanal de Maria di Andrea Hagge.
“As imagens da Amazônia não fazem parte de um ensaio específico, e sim da saudade, do redescobrimento da região onde nasci”, conta esta jovem italiana, que começou a estudar fotografia em meados dos anos 90, depois de largar o curso de Direito no oitavo período. Sua relação com a Amazônia vem de criança, ao se embrenhar com o pai e avô que iam pescar nas águas escuras e igapós escondidos entre as matas. “Eles me proporcionaram pela primeira vez enxergar a natureza amazônica e até sentir medo dela, de tanto silêncio que emergia das águas e de suas imensas catedrais verdes.”
Já como fotógrafa, Maria trabalhou no Rio de Janeiro e Nova York, no Jornal do Brasil, O Globo, Istoé e Ken Mackenna Studio, entre outros. Quando surgiu uma oportunidade, voltou para Amazônia para uma temporada de três meses entre os índios tucanos e tuyucas, no alto Rio Negro. Saiu de lá casada com um índio, protegida pelas rezas do pajé e com centenas de imagens de seu dia-a-dia tribal.
Maria conta ainda que desde a descoberta do médio formato – a maioria das fotos deste ensaio foi clicada com câmera Hasselblad, que usa filmes 120 mm, ela nunca mais “foi a mesma” nas câmeras 35 mm.
Apesar das inúmeras possibilidades que a era digital proporciona, de pronto o formato quadrado já é um diferencial para nossos olhos. Mas neste ensaio existe a emoção pura da fotógrafa, algo como uma harmoniosa dança entre o intuitivo e o elaborado; a lentidão da câmera médio formato permitiu que Maria penetrasse de cabeça na nostalgia das cenas, na luz quente que adentra nas ocas indígenas, no olhar zangado de olhares amistosos, no purismo de uma vida atrelada ao passado, com os dedos tentando alcançar o futuro.
Como se não bastasse este retorno às origens, seja em sua busca pessoal quanto profissional, Maria carregou consigo uma câmera Pinhole, a essência da fotografia artesanal. Quem conhece um pouco dos princípios físicos onde se baseia a fotografia, sabe que basta um ambiente escuro com um pequenino buraco e luz exterior, para que a imagem existente fora deste ambiente escuro se projete no lado oposto ao buraco, lá dentro. Assim funciona uma Pinhole; uma “lata com um furo” e se tem uma imagem. Acrescente um filme emulsionado de sais de prata, tem-se a fotografia.
E neste universo ainda mais conceitual, Maria transitou por imagens desfocadas no preto-e-branco imerso num mar de tons acinzentados, capazes de serem entendidas pelos olhos coloridos dos puristas E como fantasmas brincalhões, crianças índias e sorrisos ingênuos vão construindo fotos que falam, se desfazem como névoa na rotina de uma vida ancestral.
Por fim, e como se não bastasse, Maria tem em seu novo projeto a construção do lambe-lambe da mata. Novamente pra quem não sabe, lambe-lambe era aquela câmera “caixote” encontrada em praças de cidade. Com um cenário de fundo, o fotografado se tornava parte daquele mundo fantasioso, frente ao fotógrafo que enfiava a cabeça por debaixo do pano preto, fazia um “chapa” por clique, e revelava ali mesmo, em um balde improvisado com químicos.
“Gostaria de brincar de ser lambe-lambe”, finaliza. “Que as pessoas lá do interior do Amazonas, que nunca tiveram chance de ir a Manaus, por exemplo, pudessem ter um retrato seu e da sua família, na frente do Teatro Amazonas. Uma criança que nunca teve chance de uma fotografia, poder sonhar em ser um astronauta, ou uma fada. Quero poder oferecer sensações, lembranças, memória, magia, tudo o que a fotografia significa pra mim”.
Na rapidez e volatilização da fotografia moderna, num momento em que todas as pessoas, independente de profissão ou idade, se consideram fotógrafas e clicam compulsivamente suas pequenas câmeras digitais, experimentar é um ato bom. Experienciar é divino. E nada é mais gratificante do que o prazer da descoberta. Pois a experiência da descoberta, independente se a intenção foi alcançada, é algo que apenas os que ousam, tem o prazer de sentir.
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