Sérgio,
Lá vão suas fotos da onça, prontas para publicar em O Eco. Dão vontade de pôr a legenda: Lembrança do Pantanal. O que talvez queira dizer, daqui a pouco, lembrança do Brasil que ainda tinha onça. Considere-se aprovado como fotógrafo de natureza. Em fim de tarde, com a luz caindo, num encontro inesperado com um bicho raro, balançando no bote apertado, tendo como equipamento uma Nikon Coolpix de sei lá quantos pixels, que pode dar para o gasto de qualquer turista mas, francamente, não é o que a ocasião merecia – enfim, levando em conta tudo isso, garanto que nunca um cientista político, em qualquer coisa igual, com qualquer diploma, fez coisa igual.
O problema é que, depois da onça, quero saber como você fará ao voltar para sua fauna de costume – os políticos brasileiros nossos de cada dia, que povoam todos os jornais, embora estejam cada vez mais distantes de todas as conversas. Eu, pelo menos, depois que descobri o lado de lá, onde se escondem no quase anonimato personagens muito mais interessantes, cuidando de matas, animais, água e outros assuntos de interesse público com projetos de lastro privado, confesso que tomei um certo enjôo da eterna conversa que ocupa tanto o lado de cá – as velhas histórias sobre partidos, reformas, pactos e todos esses temas que nunca andam para a frente, mas também não saem da nossa frente. Elas me parecem cada vez a versão civil das preocupações nacionais que, no regime militar, levavam todo repórter – eu, por exemplo – a ler atentamente o Almanaque do Exército, para discutir promoções, quadro de acesso, três estrelas, quatro estrelas, medalhas, como se o futuro dependesse daquilo. Pura bobagem. O que dependia dessas coisas era só o passado, nosso passado. Chegará o dia em que acharemos graça do tempo em que tentávamos decorar os 35 ministros do governo Lula?
Em outras palavras, parabéns pela onça. Mas cuidado com ela. Isso pega.
Abraços.
Marcos
Marcos,
Pode ser, como cientista político talvez não seja um fracasso como fotógrafo. De qualquer forma, não sei se a foto da encarada da onça ficou tremida porque o barco se movia muito nervosamente e a câmara baixou automaticamente a velocidade, porque ela estava na sombra, ou se era eu que estava tremendo de emoção. Foi uma emoção genuína, que me fez lembrar momentos da infância, povoadas de onças, que comiam o gado da fazenda de meu avô e o dia que avistei uma, de longe, fugindo cerrado afora, do tropel dos cavalos. Até hoje não era capaz de dizer se havia realmente avistado uma onça, ou era pura sugestão de menino encantado com sertões e veredas. Vou escrever sobre isto na minha coluna desta semana. Ia, mesmo contar que, quando avistamos a onça – e este eu tenho certeza de que não foi sugestão, nem fantasia, nem delírio – minha câmera boa já estava inoperante, porque caiu na água e eu me virava com a Coolpix, que até é das melhores, mas tem o grave defeito de não permitir que a controlemos manualmente, de forma eficiente.
Mas, não tem desculpa. Estou a quilômetros de distância da qualidade fotográfica presente naquela sua onça da capa e da outra, n’água também, ilustrando a sua coluna. E não tem escapatória, esse vírus ecológico já me pegou. Não sou ultra-determinístico genético, embora não concorde que se deva desprezar a força dos genes. Eu certamente sempre tive um gene que me tornava vulnerável às tentações da mata. Por outro lado, você está coberto de razão, na ecologia, a maioria dos políticos pertence à espécie dos predadores, igualzinho ao que ocorre na política, onde também são predadores do interesse coletivo, da ética e da incoerência. Como entender esse namoro do Lula com o ACM ou o Maluf elogiando Lula e apoiando seu governo?
A doença me pegou e não faço outra coisa senão planejar a próxima matéria que farei longe das capitais e dos capitais. O pior dessa malaise, no momento, é que ainda vivo da observação dos políticos, o que transforma meu caso com a ecologia, quase diletante. Só tem uma cura, na minha opinião, investir mais na ecologia, para poder viver dela e largar os políticos de vez. Como objeto de estudo, porque aí mesmo é que não pretendo largar o pé deles. Recentemente escrevi que essa geração que está aí desde a ditadura, está de saída, a maioria por idade, pouquíssimos por merecimento. Registrei a idade dos principais políticos brasileiros, em 2010. Dos 50 mais importantes, 70% estará se aposentando, o mais tardar, até 2015. Só não dá para saber quem vai ocupar o lugar deles. Eu ando atrás dos políticos genéricos, que representam o interesse mais geral, e não corporações, tribos, interesses organizados. Cometi uma injustiça, deixei de nomear um jovem político que destoa do padrão (baixo) geral, o atual governador do Espírito Santo, Paulo Hartung. Só não sei qual a eco-atitude dele. O que me impressionou é que 90% dos e-mails que recebi eram de goianos, reclamando que eu havia errado a idade do Perillo em 2010. Copiei de uma web-biografia, que estava errada. Moral da história, prefiro escrever sobre ecologia.
Obrigado pelas onças.
Abraços, Sérgio.
PS. Quer dizer que, a despeito do sentimento estético de nossos leitores, estou autorizado pela cúpula dirigente d’O Eco a ilustrar minha coluna com minhas fotos da onça?
Sérgio,
Autorizado não é bem o termo. Está obrigado. Sua onça caiu no papo de O Eco, agora não tem saída. Aliás, eu tinha me esquecido de seus antecedentes rurais, com direito a avô que foi amigo e personagem do Guimarães Rosa. As onças que me rondaram na infância não tinham esse pedigree todo. Vinham, no Rio, pelo Monteiro Lobato, os livros do Francisco de Barros Júnior e, veja só, as histórias de um tio materno que uma vez por ano caçava nos sertões quase intatos do Espírito Santo. Isso mesmo, você leu o nome certo: Espírito Santo. Isso lá pelo fim da década de 50. Mas havia naquele tempo uma diferença, talvez embalada numa certa inocência que até poucos anos atrás se confundia com direito adquirido: todo brasileiro naquela época, que não está tão longe assim, crescia com a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por ver uma onça em estado selvagem, livre, no mato. E não é mais assim. Queimamos muita coisa dos anos 50 para cá. E, como disse aqui no site o biólogo Fernando Fernandez, hoje até os pesquisadores de vida selvagem freqüentam matas “defaunadas”. Por isso é que, para mim, a onça que você fotografou no Pantanal é uma espécie de condecoração.
Abraços.
Marcos
Sergio
Você já notou como o Kiko anda quieto nesse caso? Será despeito?
Marcos.
Marcos,
Acho que é porque ele nunca viu uma onça, em situação confessável, quanto mais em uma da qual se possa se gabar.
Sergio.
Marcos e Sergio,
Pelo visto voces se divertem muito na minha ausência discutindo questões marginais ao meio ambiente, como quem tem a melhor câmera ou quem faz a melhor foto. Essa disputa foi resolvida há muito tempo. A melhor foto ou a melhor câmera será sempre a do Sá Corrêa, porque se algum dia dissermos algo em contrário, ele ficará arrasado. Ao contrário do que o Sérgio imagina – provavelmente o Marcos também – não tenho qualquer despeito em relação ao fato de vocês terem visto e fotografado uma onça. Eu vi três. Uma parda, que vocês nunca viram, e duas pintadas. É bem verdade que uma delas acabou em situação que eu talvez não chamasse de inconfessável, mas certamente pouco ecológica: morta com um tiro entre os olhos. Não fui eu quem atirou. E confesso que o espetáculo de retirada da pele foi para lá de repugnante. Mas testemunhei algo que imagino deve ter se tornado tão raro como as onças no Pantanal. Uma comitiva de caça, com zagaieiro e tudo.
Voltando à avistagem das onças, apesar de ter visto uma ser caçada, continuo em melhor situação ambiental que vocês dois. Se a tese do Marcos está correta – não é brasileiro quem não viu uma onça – sou brasileiro de ótima cepa. E há bem mais tempo que vocês. Não custa repetir que já vi três delas, de duas espécies diferentes, em idade que o Sergio nem em onça pensava e o Marcos só tomava conhecimento delas através de livros. Claro que vocês tem que morrer de inveja. Quando as vi, na década de 70, Sérgio provavelmente estava atento à carreira dos Sarneys e ACMs da vida e o Marcos era obrigado a ler o Almanaque do Exército. Despeito, no fundo, quem tem são vocês.
E não me venham com essa conversa sobre a emoção da avistagem e as fotos tremidas porque o barco tremeu.
Se eu me lembro direito da primeira vez que eu vi uma onça, também estava fotografando. Boa parte das fotos que fiz ficaram um horror. A maioria saiu tremida, fora de foco ou escura. Não foi porque o barco mexeu ou porque me emocionei. Foi porque estava morrendo de medo. Quem tremia eram as minhas pernas. E eu bufava tanto com a máquina colada no rosto que acabei embaçando o visor. Era impossível focar. Emoção, nas três vezes que eu vi onça, só fui sentir depois. Mas devo admitir que se não tenho despeito em relação aos dois, morro de inveja das fotos que vocês tiraram. São realmente lindas. Estou enciumadíssimo com os elogios que o Marcos fez às imagens do Sergio. Mas vocês vão ver. Um dia, farei imagens muito melhores.
O pior efeito da tardia experiência de brasilidade que vocês tiveram no Pantanal foi ter aguçado as saudades que vira e mexe eu sinto das minhas. Não pude matá-las. Admito, tenho uma certa ponta de despeito por isso. Mas também uma ponta de orgulho, porque o episódio me lembra que nunca tive saudades da primeira vez que vi o Sarney. Nem consigo me lembrar de onde foi.
Tudo bem, captei, a coisa toda se resume à inveja das fotos. Agora, não dava para ter medo, porque quem estava assustada era ela. Claro, ninguém foi para a margem, atrás dela. O pior momento do episódio foi o barqueiro acossando a onça no rio, porque os pescadores gostam de “sacanear a bicha”. Não tinha percebido que nós éramos a turma do contra, contra caçador, contra pescador, contra prostituição. Só éramos a favor mesmo, era da onça. Agora, tem uma coisas aí que você diz, sobre as quais me calarei para sempre, prometo.
Sérgio,
Saudade da onça. Safári fotográfico. Essa sensação tão bem descrita por você, sempre tive. Muitos vão se identificar quando lerem seu “delírio” febril. O segundo tiro, desfocado, foi mais intenso. Dá para ver pela foto a emergência daquele segundo. A foto valeu. Valeu pelo conceito, da raridade, que se aproveita o material que se tem. E ache bom. Estamos em 2004, e ainda pode-se fotografar uma onça selvagem tão de perto. O valor do animal nesse estado é imensurável. Vi um lobo lá na Chapada. Era Guará. Parecia um potro, míope que sou, mas por dedução sabia o que estava na minha frente. Não tinha nenhuma bala, a máquina estava sem bateria. Vinha em nossa direção, já calculando a hora de desaparecer sem ser tocado. Deixou que olhássemos. Deu tempo de reparar em tudo: as meias, a cara comprida e a mandíbula de grande envergadura. E só. Animal sábio. Em um movimento de cinema, ele parou, olhou para trás pela direita, depois pela esquerda. Nos olhou de novo logo em frente. Era lusco-fusco, nem dia nem noite. Entrou pela mata com total controle da situação. Era um estado puro, sem temor. Foi como se aquilo não tivesse acontecido, e por um instante tive de confirmar com o Vla. Era mesmo um lobo selvagem, um grande macho, ainda que meus olhos teimassem, ainda que estivéssemos em 2004.
Também fui contaminada.
Carol.
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