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Carta – Em defesa do quilombo de Santo Antônio do Guaporé

De Pe. Josep Iborra Plans, zezinho Missionário Claretiano. Pastoral Fluvial da Diocese de Guajará Mirim. Membro da Coordenação Colegiada da...

Redação ((o))eco ·
16 de julho de 2007 · 17 anos atrás

De Pe. Josep Iborra Plans, zezinho

Missionário Claretiano. Pastoral Fluvial da Diocese de Guajará Mirim. Membro da Coordenação Colegiada da CPT-RO.

Lamentável a publicação dos artigos no site de O Eco de Andréia Fanzeres: “Quilombo até embaixo d´água”, e de Marcos Sá Corrêa: “Nem a escravidão fez tanto quilombolo”. vindo a juntar-se a outros ataques orquestrados no país contra a demarcação de territórios quilombolas, e contra o louvável esforço de parte do governo para fazer cumprir o direito constitucional desta minoria

Especialmente estou muito sentido e dolorido pelo ataque de forma injusta ao pequeno grupo de famílias de Santo Antônio do Guaporé, que atendo pelo serviço pastoral da Diocese de Guajará Mirim, durante anos perseguido e injustiçado pela criação da Reserva Biológica (Rebio) do Guaporé dentro do seu território tradicional.

Se o Sr. Marcos Sá Corrêa é historiador, ele deveria se informar melhor das raízes, documentadas historicamente, da ocupação quilombola do Vale do Guaporé, começando pelas minas de Vila Bela da Santíssima Trindade, no Mato Grosso, pela construção do Forte Príncipe da Beira, passando pelo Quilombo do Piolho, atacado diversas vezes pelos portugueses, e pelo posterior abandono da região pelo homem branco. Tudo isso faz dos indígenas e quilombolas do Vale do Guaporé os mais antigos e legítimos moradores da região.

Está claro que todo auto-reconhecimento étnico deve ser fundamentado em fatos históricos e antropológicos. Assim acontece com os remanescentes de quilombo de Santo Antônio, e nada mais fácil de provar do que a verdade. O qual não nega a importância do auto-reconhecimento, pois o único que pode dizer respeito a minha identidade e ao povo do qual eu me sinto identificado e formando parte, sou eu mesmo.

É uma falácia pensar que uma comunidade não pode morar num lugar porque ele alaga todo ano. A realidade desmente esta afirmação. Tradicionalmente, os moradores de Santo Antônio na época da seca se deslocavam para os barracos das colocações, na beira do Rio São Miguel, para recolher a seringa, e quando as águas subiam, iam até as terras altas para fazer os seus roçados. O território tradicional de Santo Antônio do Guaporé engloba áreas de terra firme e áreas alagadas, de ocupação sazonal. Alguns destes barracos das ocupações de seringa foram queimados (e alguns deles eram recém construídos) criminalmente cinco o seis anos atrás. Os seus vizinhos, os indígenas miquelenos e puroborás que moram no Porto Murtinho, pleiteiam com o Ibama o retorno à Vila do Limeorio, de onde foram expulsos, e a autorização para que o seu gado possa continuar atravessando o rio São Miguel, como sempre fez, para pastar no campo natural situado enfrente da comunidade, e que na época da cheia fica totalmente alagado.

Está documentado que os moradores de Santo Antônio formaram uma comunidade que mantinha relações comerciais, de amizade e intercambio com os indígenas miquelenos, do Rio São Miguel, pelo menos desde o ano 1909. Hoje, injustiçadas as duas comunidades, renovaram os acordos para continuar sendo aliados na luta, na causa do reconhecimento dos seus direitos históricos e territoriais sobre a parte do território deles da Reserva Biológica do Guaporé. Sugerir, como o faz o Sr. Marcos Sá Corrêa, que a comunidade de Santo Antônio foi inventada, é faltar à verdade e desconhecer totalmente a realidade do que está escrevendo.

Enquanto que Andréia Fanzeres sugere que: “O assentamento de comunidades pode ser uma tragédia para o meio ambiente” A realidade histórica também desmente esta afirmação. Até porque não se trata de assentar ninguém, mais de manter quem já está aí, garantindo os seus direitos e devolvendo o território que foi roubado. Como à comunidade vai reconhecer para um servidor do Ibama que eles iam caçar e pescar dentro da Rebio, se até de criar galinhas, de fazer roça, e inclusive de participar de atividades de preservação de quelônios em seu local eram proibidos?

O retorno dos indígenas miquelenos ao Limoeiro e a manutenção da comunidade de Santo Antônio não vai acabar com a riqueza ambiental e natural do Vale do Guaporé. Até porque eles sempre foram comunidades sustentáveis. Porém eles foram injustiçados com a criação da Rebio do Guaporé num lugar onde tinha moradores. O Ibama deveria seguir o exemplo dos seus pares bolivianos, que hoje estão escutando as reivindicações da comunidade indígena itonama de Versalles, a poucas horas de Santo Antônio. Eles também se viram incluídos dentro do Parque Natural del Iténez, porém esta figura de preservação ambiental também contempla uma zona de utilização humana sustentável e tradicional (ANMI) pelas comunidades do entorno. Os limites entre a zona de utilização sustentável e do parque de preservação integral estão sendo revisados, respeitando os castanhais e zonas de utilização tradicional da comunidade.

Ao final, é muito romântica a idéia de unidades de conservação natural sem nenhuma presença humana. Responde a uma visão pessimista e negativista da atividade humana respeito a natureza, como depredador e destruidor. Se muitas vezes assim acontece, sabemos que os povos indígenas e quilombolas continuam nos dando lições de sustentabilidade: de como viver e trabalhar sem destruir. Com a presença deles no entorno duma área de preservação, mantendo o seu território de forma sustentável, eles se convertem nos melhores aliados do Ibama e do meio ambiente. No mundo inteiro existem muitos exemplos disso. O próprio Chico Mendes foi o primeiro deles.

Foi no ano de 2002, se mal não lembro, que por intervenção da Sexta Câmara do Ministério Público Federal, foi evitado o último intento de despejo dos moradores de Santo Antônio. O reconhecimento como comunidade quilombola da Fundação Palmares foi um ato de justiça e o primeiro passo para o reconhecimento do direito constitucional deles. Tal vez é verdade que houve precipitação e inexperiência na primeira propostas de demarcação do território quilombola de Santo Antônio. Eu fui o primeiro a criticar alguns elementos da proposta de demarcação. Parte dos seringais e colocações tradicionais da comunidade está tomada por uma fazenda, e por motivos que desconheço, a maioria da comunidade não as quer reivindicar. Também em Pedras Negras denunciei a redução de 2/3 partes do território da Resex para a demarcação do território quilombola, deixando fora a parte do Campo dos Amigos, local que também alaga, e que uma fazenda vizinha tem invadido.

Sempre afirmei que sinto a falta da realização do estúdio antropológico, contemplado pela lei de demarcação das áreas quilombolas, que possa basear em afirmações comprováveis, as informações históricas de ocupação da comunidade. Este estudo, pelo que eu sei, ainda não foi realizado pelo historiador da UNIR de Porto Velho, contratado pelo INCRA com esse objetivo. Ele deveria ser o principal instrumento para definir a qual parte do território a comunidade tem direitos históricos ou não.Os critérios estão bem definidos por lei. Para mim, a falta deste estudo antropológico é atualmente o principal entrave a um acordo entre os organismos ambientais e fundiários do governo, para o reconhecimento e demarcação do território de Santo Antônio do Guaporé. Não existe um território “cobiçado” pela comunidade, como a Sra. Andréia afirma, mas o pedido do reconhecimento legal do território que sempre foi dela.

Eu acho que a posição de O ECO seria muito menos parcial e mais respeitosa com o povo atingido vindo conhecer de perto a realidade, escutando os atingidos diretamente por este problema, vendo o seu trabalho ambiental e sustentável, e não atendendo somente os argumentos de um lado. A Rebio do Guaporé nasceu com um pecado original: A falta de respeito para com as comunidades tradicionais do lugar: os indígenas miquelenos do Limoeiro, os quilombolas de Santo Antônio do Guaporé, os indígenas tupari da aldeia do Palhal, no Rio Branco, e o povo indígena arredio da Área Indígena Massako. Mais sorte teve a fazenda estadual de Pau d’Olho, que foi excluída da unidade a pesar de ter as mesmas características ambientais. Aqui o Ibama poderia compensar a perdida de territorial da reserva integral e acabar com o principal problema da Rebio do Guaporé: a invasão de búfalos selvagens, que representa um problema muito mais complexo do que as atividades das comunidades tradicionais.

Não é a toa que uma das principais reivindicações das comunidades tradicionais do Brasil ao governo Lula é que não sejam criadas mais áreas de preservação dentro dos seus territórios. O próprio coordenador de regularização fundiária do Ibama, Sr. Alexander Boris César, reconhece que problemas semelhantes existem em 10 áreas do país. Ele não pode pretender que o povo quilombola faça acordos família por família, para solucionar o impasse diante dum problema generalizado. A questão fundiária é um problema coletivo, sim. E isto está reconhecido pela própria constituição brasileira e pelos acordos internacionais de respeito às minorias étnicas assinados pelo Brasil.

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