Reportagens

A saúde que vem dos loucos

Entregue à Fiocruz, um terreno de 500 hectares em Jacarepaguá onde funcionou a Colônia Juliano Moreira dá ao Rio de Janeiro um modelo de sanidade ambiental.

Marcos Sá Corrêa ·
23 de novembro de 2004 · 20 anos atrás


O campus tem cinco milhões de metros quadrados. Deles, quatro milhões estão cobertos por matas milagrosamente bem conservadas, no centro geográfico do município do Rio de Janeiro. É “um lugar lindo”, diz o economista Sérgio Góes. O terreno se enterra como uma grande cunha no Parque Estadual da Pedra Branca. Fica nos fundos do Autódromo de Jacarepaguá, do Riocentro e do Projac, a constelação de estúdios da TV Globo. E dá vista para os condomínios caros da Barra da Tijuca. Em outras palavras, tinha todas as condições para sumir do mapa.

Mas, como diz Sérgio Góes, que planejou o campus, “a má fama da Colônia salvou o mato”. Em julho de 2003, ele pisou lá dentro pela primeira vez, para conhecer “o problema de 500 hectares” que na virada do milênio o Ministério da Saúde entregara à Fiocruz. Um ano e quatro meses depois, como coordenador do programa, carrega na pasta e na ponta da língua um projeto generoso, quase pródigo, que destina 75% do terreno “à preservação, proteção e recupertação florestal”. Deixa 44 hectares para “a efetiva expansão das atividades hoje realizadas em Manguinhos”. Ou seja, o campus propriamente dito.

É um trabalho extenso e minucioso. Mesmo porque, segundo o texto de apresentação das propostas, “não se protege o que não se ama e não se ama o que não se conhece”. Planeja “implantar o Campus Jacarepaguá 1 de forma sustentável, atendendo às demandas estratégicas da Fiocruz”. Dá prioridade ao “conhecimento da Mata Atlântica”. Cria “centros de pesquisa de ervas medicinais e de fitoterápicos”. Promete formar uma “rede de instituições envolvidas na produção e distribuição” dos remédios tirados da natureza. E quer fazer tudo isso de portas abertas para a cidade, fazendo um convite explícito à “apropriação pública” tanto de seu “ambiente natural” quanto de seu “patrimônio cultural”. Numa cidade cada vez mais privatizada por ricos e pobres, é o tipo da notícia que o carioca não recebe todo dia.


Mas o lombo da Pedra Branca que pertence à Fiocruz é quase filé sem osso. Conserva, nos fundos do antigo hospício, uma vertente com “mata atlântica preservada” e colinas com “matas em regeneração” voltadas para a Baixada de Jacarepaguá. As reservas legais cobrem 54% do terreno. Nelas se encontram árvores com até 30 metros de altura. Os pesquisadores do programa registraram na região a existência de 200 espécies de aves, 80 de mamíferos, 38 de répteis e 12 de anfíbios. E ouviram falar de jaguatiricas, um animal que há muito tempo parecia extinto no Rio de Janeiro.

No começo do século passado, aquilo era o fim do mundo. Foi por isso que o governo Hermes da Fonseca mandou os doentes mentais para lá, no tempo em que a medicina receitava para os loucos a maior distância possível da cidade e das famílias. Instalou-nos num engenho histórico, que pertenceu ao Barão da Taquara, filho de um camareiro de Pedro II. Nos 7,8 milhões de metros quadrados a colônia tratava os doentes com doses cavalares de isolamento e pequenas aplicações de trabalho agrícola.

O resultado é que a Juliano Moreira nunca esteve tão habitada quanto agora, depois que doidos a desertaram. Tem cerca de 20 mil moradores. Com a cidade apertando o cerco sobre a baixada de Jacarepaguá e “invasões brutais de pedreiras” a seu redor, a Fiocruz até que deu sorte. Ganhou a maior e a melhor parte do latifúndio urbano que sobrou do engenho dos Fonseca Teles. “Temos uma situação ímpar”, diz Sérgio Góes. Pela Linha Amarela, o futuro campus fica a 40 minutos dos laboratórios da fundação em Manguinhos, na Avenida Brasil. E lá, embora também haja invasões, a mata continua avançando sobre os espaços baldios, “como se a natureza estivesse empurrando para fora dali as pessoas”.

Como, nessas disputas, é sempre mais provável que as pessoa empurre para fora a natureza, o projeto do campus foi disparado pelo alarme sobre a “enorme pressão imobiliária” que, através de “ocupações e loteamentos clandestinos”, ameaçava ao mesmo tempo o “patrimônio público”, a “reserva de mata atlântica” e os próprios invasores, alguns deles encontrados “em condições desumanas e de risco”. São, exatamente, 822 moradores em 219 casas. “Exatamente” porque a Fiocruz os conhece, um por um. Sabe de onde vieram, como vivem e por que estão lá. Foram meticulosamente recenseados antes que a fundação decidisse o que fazer com eles.

Há seis núcleos residenciais espalhados pelo terreno da Fiocru, inclusive um povoado quase rural, que parece perdido nos sertões do Rio de Janeiro, o Fincão. O Caminho da Cachoeira, sob o nome bucólico, marca o avanço das construções irregulares sobre as ruínas de um aqueduto do século XVIII, que é monumento tombado. Em Viana do Castelo e Sampaio Correia, onde 74,9% dos moradores ganham mais de cinco salários por mês, há casas com asfalto na porta e mais de um carro na garagem. O núcleo de Nossa Senhora dos Remédios, fruto da liberalidade de um ex-diretor da colônia, que deixava os funcionários se aboletarem num pavilhão desativado, agora amontoa famílias pobres num prédio sem água encanada e condenado pela Defesa Civil, por risco de desabamento.

O relatório do ISER é o marco zero da retomada do terreno pela Fiocruz e deveria servir de modelo para todas as intervenções da prefeitura nas favelas da cidade, que geralmente crescem mais depressa depois que a urbanização as valoriza. Cadastrados, os moradores passaram a ser um problema que a fundação incorporou ao projeto. Agora, quem está no campus não precisa sair. Em compensação, quem está fora não entra mais. Ali há famílias que fincaram o pé na colônia há mais de 40 anos. São quase sempre antigos funcionários do hospício. Sua proliferação daria, sozinha, para encher o terreno todo, se continuasse a gerar novas casas indefinidamente.

Nada menos de 78% dos moradores têm parentes no terreno. Cinqüenta e três por cento têm irmãos na vizinhança. Trinta e seis por cento têm filhos. Passaram pela Juliano Moreira funcionários prolíficos, como José Henrique Dimas, o Zé Macaco, cujos “ descendentes diretos ocupam 20 casas” e têm “quatro ocupadas por parentes indiretos”. Outro pioneiro, o José Marujo, espalhou sua linhagem por três casas. “A residência original”, diz o relatório, “tem um amplo terreno onde era utilizada a mão de obra de pacientes – ‘em troca de um cafezinho ou do dinheiro para o cigarro’ – no cultivo da terra. As plantações eram acompanhadas pela esposa do funcionário e seu pai até o ano de 1974”. Hoje, o “núcleo dos Marujo”, fundado pelo funcionário do hospício que subempreitava doidos, “totaliza cinco casas com terrenos relativamente amplos”.

Os laços familiares que traçam a genealogia das invasões se cruzam em várias direções, formando labirintos hereditários. Luciano Carneiro da Fonseca, por exemplo, trouxe um irmão para morar perto dele ao pé do aqueduto. “Sua esposa, também falecida, era funcionária da colônia. O casal teve oito filhos, dentre eles, Antonio Vasconcelos da Fonseca (Sr.Toninho). Sua família (irmão, filhos, netos e sobrinhos) possui dez casas na área, sendo que duas delas estão situadas bem no alto da encosta da Floresta da Pedra Branca. Uma das filhas de Lúcio (Maria) é esposa de José Marujo Filho, articulando assim as duas redes de parentesco e vizinhança”.

Com esses dados nas mãos, Sérgio Góes, que é assessor da Vice-Presidência de Desenvolvimento Institucional da Fiocruz, quer dar agora a largada na implantação de um campus exemplar, onde os prédios ocuparão exclusivamente as clareiras já existentes, no meio de um Parque Botânico. As construções se ligarão umas às outras por caminhos entre árvores – ou “corredores ecológicos”, criados para garantir o livre trânsito da fauna local entre os fragmentos de mata. Serão alamedas formadas “não apenas por elementos da floresta atlântica do Rio de Janeiro, mas por espécies de outras regiões do Brasil, mantendo-se assim, bancos de germoplasma”. Elas amortecerão “os efeitos maléficos da fragmentação no sistema florestal”, por criarem as condições “para que áreas próximas tenham uma recuperação natural mais acelerada”, além de evitar “o isolamento de espécies em populações pequenas” e manter “um tamponamento fisionômico e ecológico” do Parque da Pedra Branca. Os rios e córregos terão no terreno “uma Faixa Marginal de Proteção mínima de 30m de largura para cada lado”.

“Tudo ali tem que ser pedagógico”, diz Sérgio Góes, cujos projetos pessoais para o campus não se contentam com as propostas que estão no papel. Ele imagina que o parque funcionará como um museu aberto de ecologia, com trilhas educativas e cursos de imersão na mata atlântica para alunos das escolas secundárias. Acha que pode ser um laboratório vivo de energia alternativa. “Meu sonho é ver a roda d’água do engenho rodando de novo”, afirma. Pode ter canteiros de plantas medicinais e de especiarias, mostrando como a colonização mudou através da história os cenários naturais do Brasil.

No terreno já existe, desde 1999, o laboratório de Produção e Beneficiamento de Matéria-Prima Vegetal de Fármacos de Manguinhos, numa ala abandonada do pavilhão agrícola. Góes espera que ele se desdobre em convênios com prefeituras do interior, para formar jardineiros habilitados a cultivar farmácias verdes nos hortos municipais. Lá está também o acervo do artista plástico Antônio Bispo do Rosário, interno cuja obra correu mundo. Assim como os arquivos sobre os oitenta da Colônia Juliano Moreira, os documentos do serviço nacional de controle da lepra e a história do combate à tuberculose no Brasil. “Isso é boa parte da memória da medicina brasileira”, segundo o coordenador. E o campus vai abri-la aos pesquisadores. “Quer dizer, vamos integrar toda uma nova área à cidade”, ele conclui.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

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