O número de conflitos no campo bateu recorde no Brasil em 2023. Segundo o relatório Conflitos no Campo Brasil, lançado nesta semana pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), o país registrou 2203 conflitos no ano passado, o maior número da série histórica, que começou em 1985. O número superou o de 2022, com 2050 conflitos registrados, e bateu o recorde de 2020, que era de 2130. Foram 1724 conflitos por terra, 251 ocorrências de trabalho escravo rural e 225 conflitos por água no ano passado, segundo a publicação. O número de assassinatos, por outro lado, caiu de 47 em 2022 para 31 em 2023.
No total, os conflitos envolveram mais de 950 mil pessoas e quase 60 milhões de hectares de terras em todo o país. O número de pessoas envolvidas cresceu em relação ao ano anterior, quando o relatório apontou 923.556 envolvidos, mas a área em disputa diminuiu – eram 81,2 milhões de hectares em 2022. A região Norte foi a que mais registrou conflitos (810), com destaque para o Pará, estado com maior número de registros (249). O Nordeste vem logo atrás, com 665 conflitos, seguido do Centro-Oeste (353), Sudeste (207) e Sul (168).
“É sempre válido enfatizar que os dados não são apenas números, é preciso humanizá-los. Os registros da CPT evidenciam a intensidade e os tipos de violência a que estão submetidos os povos do campo, das águas e das florestas. Por trás dos números dos conflitos está o martírio de famílias, povos e comunidades que vivem uma rotina de ataques contra suas vidas e suas terras e territórios. Povos que sofrem com ameaças, expulsão, destruição de suas casas, pertences e roçados, despejos e outras diversas violências”, destacou o relatório.
Violência contra a pessoa
Do total de ocorrências, 554 foram de violência direta contra indivíduos, afetando 1467 pessoas em todo o país. Segundo os dados da CPT, o número de casos diminuiu – foram 561 em 2022 –, mas o número de vítimas aumentou em mais de 1/3, saltando dos 1075 registrados no ano anterior.
Os assassinatos ligados a conflitos no campo caíram 34% de 2022 para 2023, de 47 para 31 casos. Segundo o relatório, 2022 foi o ápice de uma “escalada dessa violência fatal observada nos dois últimos anos do governo Bolsonaro, momento em que a extrema direita no país e seus agentes, temendo a derrota nas eleições, se utilizaram de todos os artifícios arbitrários e brutais para impor, à força, seus interesses”. Embora essa categoria tenha registrado queda, os demais tipos de violência catalogados pela CPT registraram crescimento em 2023.
O tipo de violência com mais vítimas foi a contaminação por agrotóxicos – 21 ocorrências e 336 pessoas afetadas, 74% a mais do que em 2022. Em seguida veio a ameaça de morte, com 218 vítimas registradas e um aumento de 4,3% nos casos; a intimidação (194 vítimas, 41,6% de aumento), a criminalização (160 vítimas, 66,7% de aumento), a detenção (135 vítimas, 744% de aumento), a agressão (115 vítimas, 167,4% de aumento), a prisão (90 vítimas, 18,4% de aumento) e o cárcere privado (72 vítimas, 1370% de aumento).
O relatório destaca o caso da escola rural contaminada por agrotóxicos pulverizados pelo fazendeiro Renato Zambra, de Belterra (PA), em dois episódios registrados em janeiro e fevereiro de 2023. Em cada um dos episódios, cerca de 30 pessoas precisaram de atendimento médico em postos de saúde e hospitais da cidade, segundo o Ibama. O órgão multou o fazendeiro em R$ 1 milhão. A publicação da CPT aponta a ligação direta desse caso com crescimento de 81,7% no número de pequenos proprietários vítimas de violência.
As maiores vítimas das violências foram os indígenas, com 25,5% do total – uma tendência que se mantém desde 2019 –, enquanto os principais causadores foram fazendeiros – responsáveis por 51,2% dos casos. Outras vítimas foram os pequenos proprietários, com 20,3% dos casos, os sem terra (20,1%), posseiros (13,5%), quilombolas (3,9%) e seringueiros (3,75%). Essa última categoria teve uma explosão no número de vítimas, que passou de 1 em 2022 para 55 em 2023, um aumento de 5400%.
Já os maiores causadores de violência, depois dos fazendeiros, foram os empresários responsáveis por 13% das vítimas, grileiros (9,3%), garimpeiros (7,3%) e governos estaduais (5,4%). O relatório destaca o crescimento de 471,4% nos casos de violência contra a pessoa por parte dos estados. “Isso demonstra como as ações de violência privadas, fortalecidas pelas ações estatais, atuam para inibir as ações de resistência daqueles e daquelas que lutam por suas vidas e seus territórios”, diz a CPT.
“Os governos estaduais têm agido com repressão policial intensa contra acampamentos e assentamentos, comunidades quilombolas e terras indígenas, com destaque para Goiás, Bahia, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Maranhão e Rondônia”, destaca a Comissão. “O mesmo se pode dizer em relação ao poder legislativo federal e estaduais, com o avanço da bancada ruralista, promovendo mudanças em legislações como o Marco Temporal, o Pacote do Veneno, e as leis de terras e liberações para pulverização aérea de agrotóxicos nos estados”, apontou.
Conflitos por terra
O país registrou 1724 ocorrências de conflitos por terra em 2023, mais de 3/4 do total (78,2%). 187.307 famílias foram impactadas por esses conflitos. 1588 desses conflitos, ou 92,1% do total, foram classificados pela CPT como “Violências contra a Ocupação e a Posse e/ou contra a Pessoa”. O restante dos conflitos foram por ocupações de terras (94 casos), retomadas (25, sendo 22 por indígenas e 3 por quilombolas) e acampamentos (17, todos de sem terras e posseiros).
A discrepância entre o número de ações violentas e as de resistência é destacada no relatório. “Esse quadro é resultado da escalada da extrema direita, com a reconfiguração das forças políticas e econômicas após o Golpe/Impeachment, somada ao trágico e criminoso governo Bolsonaro, que promoveu uma verdadeira política de ódio contra os povos e comunidades do campo, das águas e das florestas, os tornando ainda mais vulnerabilizados, como expresso nos dados dos últimos anos”, analisou a CPT.
“Este contexto sócio-político não apenas permitiu, como preparou o terreno para que o agronegócio avançasse inescrupulosamente contra as comunidades do campo, que enfrentam cotidianamente invasões de suas terras e territórios, pistolagem, incêndios criminosos, contaminação por agrotóxicos, grilagem e desmatamento, entre tantos impactos sofridos pelos povos em defesa de seus modos de vida, dos direitos humanos e da natureza”, prosseguiu a Comissão.
O tipo de violência contra a ocupação e a posse mais comum em 2023 foi a invasão, com 359 casos que afetaram 74.858 famílias. Outro destaque foi o número de expulsões, com 37, sendo que a maior parte (59,4%) desses casos contou com o apoio da polícia, “sem que houvesse a mediação do Poder Judiciário”, diz o relatório.
O documento destaca ainda a retomada no número de despejos judiciais, que passaram de 17 em 2022 para 50 em 2023. Segundo a CPT, isso foi causado pelo fim da suspensão de despejos coletivos determinada pelo STF em 2020 e 2022, no contexto da pandemia. “Passado esse período, percebe-se que a atuação de fazendeiros e empresários do campo segue respaldada pelo Poder Judiciário, voltando fortalecida em 2023”, analisa o texto.
Foram registrados ainda 152 casos de grilagem, sendo 38 em terras indígenas e 40 em terras de famílias posseiras. Foram destacados ainda 264 casos de pistolagem (aumento de 45%), sendo 113 com “algum apoio das forças policiais”. Sem terra foram as principais vítimas dessas ações, com 130 ocorrências. Em seguida vieram os posseiros (49), indígenas (47) e os quilombolas (19).
Quase metade dos casos de violência (700, 40,6% do total) aconteceram na região Norte, seguida pelo Nordeste (530 casos e 30,7% do total), Centro-Oeste (300 casos e 17,4% do total), Sudeste (106 casos e 6,1% do total) e Sul (88 casos e 5,1% do total). Os três estados com mais ocorrências foram Bahia (202), Pará (183) e Maranhão (171).
Assim como no eixo de violência contra a pessoa, fazendeiros (31,17%) e empresários (19,71%) foram os maiores responsáveis pelos conflitos por terra. Mas à frente dos governos estaduais (8,31%) no ranking, desta vez, aparece o Governo Federal, responsável por 11,02% dos casos. O relatório aponta, porém, uma diminuição nesse número em relação a 2022, com 165 casos de “omissão/conivência”, contra 240 no ano anterior. Isso pode ser explicado pela “abertura de canais de diálogos com movimentos e organizações de luta no campo, como a criação do Ministério dos Povos Indígenas e do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA)”, diz a CPT.
Já a participação dos governos estaduais nos episódios de violência, por outro lado, aumentou. De 63 ocorrências registradas em 2022, o número cresceu para 132 em 2023, um aumento de 109,5%. Foram 103 ocorrências de “ações policiais de intimidação armada e ameaças variadas” e 58 de omissão/conivência – algumas dessas ocorrências estão sobrepostas. Goiás e Bahia são os estados com mais casos desses tipos, segundo o relatório.
As maiores vítimas, novamente, são os indígenas, que lideram essa estatística desde 2019 – 470 (29,6%) casos dos casos de violência registrados em 2023 foram contra eles. Em seguida vem os posseiros (18,7%), sem terras (17,5%), quilombolas (15,1%) e assentados (6,7%).
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