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Espécie de jararaca descoberta na Caatinga revela história evolutiva até então desconhecida

A descoberta da espécie B. jabrensis trouxe também uma revelação surpreendente: uma nova linhagem evolutiva, até então desconhecida pela ciência, dentro do gênero jararacas

Duda Menegassi ·
20 de janeiro de 2022 · 2 anos atrás

O Pico do Jabre é um lugar singular no interior da Paraíba. Além do superlativo que carrega, por ser o ponto mais alto do estado, com 1.197 metros, o pico é um mosaico de vegetação que acompanha as variações do relevo e da altitude. Coberto por uma floresta montanhosa sazonal, carinhosamente chamada de “floresta de Caatinga”, o pico é um pequeno e isolado fragmento de mata úmida em meio aos domínios do sertão. Neste lugar singular, os pesquisadores descobriram uma nova espécie de cobra, do gênero das jararacas, igualmente única. Batizada de Bothrops jabrensis, uma referência ao local da sua descoberta – e até então o seu único habitat conhecido –, a jararaca pode já estar em risco crítico de extinção, alertam os cientistas. 

Com a pele colorida em tons cinzas e marrons, um comprimento de cerca de 72 centímetros e um movimento esguio por entre as árvores, a B. jabrensis trouxe junto com ela uma outra descoberta, esta invisível a olho nu: uma linhagem de jararacas até então desconhecida pela ciência.

A espécie foi descrita a partir de apenas três indivíduos, todos encontrados no Pico do Jabre. Em termos físicos, a B. jabrensis se distingue de outras jararacas por características únicas de coloração e números de escamas. Além disso, entretanto, a análise filogenética molecular feita pelos pesquisadores indicou que a nova espécie representa uma linhagem singular e altamente divergente dentro do gênero Bothrops, ao qual pertencem as jararacas. Na prática, sugerem os pesquisadores, isso levanta a hipótese de uma linhagem evolutiva anteriormente desconhecida que vem evoluindo como uma unidade independente há mais de 8 milhões de anos. 

A nova jararaca foi descrita em artigo publicado nesta quarta-feira (19), no periódico científico Canadian Journal of Zoology, e é assinado por seis pesquisadores de diferentes instituições e universidades. 

“Foi realmente surpreendente. Não conhecíamos a questão evolutiva dessa linhagem que evoluiu isolada nesta região de serras do nordeste. Significa que ainda temos muito que pesquisar”, conta a ((o))eco um dos autores do estudo, Gentil Filho, do Laboratório de Ecologia Animal da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). O gênero das jararacas abrange 46 espécies conhecidas atualmente, distribuídas pela América Central e do Sul.

Para solucionar algumas das incógnitas por trás dessa nova linhagem, os pesquisadores  irão começar um projeto de ecologia e história natural da Bothrops jabrensis, liderado por outro autor do estudo, Marcelo Kokobum, do Laboratório de Herpetologia da Universidade Federal de Campina Grande, na Paraíba.

O Pico do Jabre faz parte de conjunto de serras no interior da Paraíba com enclaves de floresta úmida, ambiente restrito nos domínios da Caatinga. Foto: Gentil Filho

Outra iniciativa prevista pelos cientistas, para tentar garantir a conservação da B. jabrensis, é a conscientização dos moradores dos arredores, para explicar a importância da nova espécie. A educação ambiental é fundamental para combater a prática comum em comunidades rurais de matar cobras, principalmente quando se tratam de jararacas, por serem venenosas.

O Pico do Jabre, único habitat conhecido da nova jararaca, em teoria está protegido dentro de um parque estadual, criado em 1992. Isso deveria ser um alívio, mas na prática não é bem assim, ressalta Gentil Filho. “Lá é um parque de papel. A situação de desapropriação das terras nunca foi resolvida, desde a criação do parque. As terras lá ainda pertencem aos donos particulares, pois não houve indenização”, lamenta Gentil.

O parque estadual está localizado entre os municípios paraibanos de Maturéia e Mãe D’água, e abrange uma área de 852 hectares.

Fogo, desmatamento, uso indevido da área, caça e extração ilegal de madeira são as principais ameaças que pressionam o Pico do Jabre, descrevem os pesquisadores. “Não tem fiscalização nenhuma por parte do governo do Estado da Paraíba”, acrescenta Gentil. Por ser nativa de um ambiente naturalmente restrito – os enclaves de floresta úmida da Caatinga – e com um habitat pressionado e degradado, a B. jabrensis pode ser considerada criticamente ameaçada de extinção, sugerem os pesquisadores no artigo, “e provavelmente está se aproximando da extinção como uma população na natureza”, alertam.

A situação é ainda mais preocupante porque, até o momento, a jararaca foi registrada apenas na área mais alta do Pico do Jabre, ainda mais restrita. “A gente só encontrou essa cobra na parte mais alta. Na parte baixa e na altura intermediária, ela não foi encontrada. Talvez este bicho esteja associado à parte alta devido a essa parte ser a que mais tem um porte de floresta. É floresta de caatinga, que a gente chama. E a gente sabe que jabrensis usa árvores, já encontramos exemplares empoleirados a 3 metros do chão”, explica Gentil Filho. O pesquisador reforça, entretanto, que essas são apenas hipóteses e que mais estudos sobre a área de distribuição da B. jabrensis ainda precisam ser feitos.

Além dos riscos já bem conhecidos do território, os pesquisadores temem que, com a descoberta, venha uma nova ameaça: o tráfico de animais silvestres. “É muito possível que comecem a visitar o local para pegarem a B. jabrensis para criadores ilegais no Brasil e no exterior”, alerta Gentil. O pesquisador explica que, infelizmente, há uma grande demanda no mercado clandestino por cobras venenosas, ainda mais quando são espécies raras, como a jabrensis.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 1

  1. Jaison diz:

    O Brasil continua décadas atrasado na questão de preservação de espécies ameaçadas. Bastaria facilitar a criação em cativeiro para comercialização, assim, os animais silvestres não seriam tão perseguidos. Isso nem precisa de estudo pra afirmar. É aquela velha máxima: porque a baleia corre risco de extensão e a vaca não?