BICHOS, PLANTAS E HISTÓRIAS QUE NÃO CONTARAM PARA VOCÊ
Episódio 5 | Os Sem Floresta
Sinopse
Nesse episódio vamos abordar a história do zogue zogue de Mato Grosso, uma espécie que foi descoberta recentemente (menos de cinco anos) e que já é considerada uma das espécies de primatas mais ameaçadas do mundo. Isto porque a sua área de ocorrência, um trecho de floresta no norte do Mato Grosso, está sobreposta ao Arco do desmatamento. A perda de habitat, como revela outra matéria recente, tem impacto forte na sobrevivência dos primatas. Há espécies que já perderam praticamente um terço do seu habitat nas últimas três gerações e isso é uma das maiores ameaças à espécies tão dependentes das florestas.
Outro exemplo são os bugios, outro grupo de primatas listados entre as 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo por causa da febre amarela, principalmente. Considerados extintos já há algum tempo, bugios foram reintroduzidos em 2017 no Parque Nacional da Tijuca.
Ficha Técnica
Este podcast teve o apoio do programa Acelerando a Transformação Digital 2022, do Meta Journalism Project, em parceria com o Centro Internacional para Jornalistas (ICFJ) e a Associação de Jornalismo Digital (Ajor).
“Bichos, plantas e histórias que não contaram para você” tem produção da Todavós e ((o))eco.
Pesquisa, roteiro e apresentação: Duda Menegassi e do Rafael Ferreira.
Consultoria em roteiro e revisão final: de Geórgia Santos
Edição: Geórgia Santos e Douglas Weber.
Montagem, sonorização e finalização: Douglas Weber.
Música original: Gustavo Finkler.
Estratégia de distribuição: Milena Giacomini e da Gabriela Güllich
Identidade visual: Gabriela Güllich
Idealização, coordenação e execução financeira: Paulo André Vieira
Agradecemos a Mateus Travassos, Silvia Bahadian, Gustavo Canale, Anthony Rylands, “seu” Armando Antônio, à equipe de Reintrodução de Bugios-Ruivos na Floresta da Tijuca do Projeto Refauna, ao o Centro de Primatologia do Estado do Rio de Janeiro (CPRJ), Thiago Reis, Ale Potascheff, José Orenstein, Felipe Seibel, Rodrigo Alves, Mônica Aquino, Bruna Borjaille, Alison Grausam e Thayane Guimarães, do Centro Internacional para Jornalistas, Maia Fortes, todos os colegas da Ajor, e à toda a equipe de ((o))eco.
Material Extra
Reportagem “Os sem floresta: a perda de habitat que ameaça os macacos brasileiros“, por Duda Menegassi
Reportagem “Lar cada vez menor: um macaco encurralado pelo desmatamento“, por Duda Menegassi
Reportagem “Brasil tem quatro das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo“, por Duda Menegassi
Reportagem “Integração: palavra-chave para salvar o bugio-ruivo“, por Duda Menegassi
Conheça mais sobre o Refauna e a iniciativa de recuperar a fauna nativa nas florestas do Rio de Janeiro.
Reportagem “A história de uma floresta vazia que, aos poucos, volta à vida“, por Daniele Bragança e Duda Menegassi
Artigo “Habitat loss estimation for assessing terrestrial mammalian species extinction risk: an open data framework” (Estimativa de perda de habitat para avaliar o risco de extinção de espécies de mamíferos terrestres: uma estrutura de dados aberta), por Mariella Butti, Luciana Pacca, Paloma Santos, André C. Alonso, Gerson Buss, Gabriela Ludwig, Leandro Jerusalinsky, Amely B. Martins
Fotos e Making of
Transcrição
Bichos, Plantas e Histórias que não contaram para você
Episódio 05 | Os sem florestas
Rafael Ferreira: Calma, nenhum animal foi agredido para a realização desse episódio. É só um bugio empolgado. A Duda vai explicar daqui a pouco melhor porquê dessa gritaria toda, que parece sofrimento. Mas é só alguém avisando que chegou.
Duda Menegassi: Hoje eu estou aqui no Centro de Primatologia do Estado do Rio de Janeiro, mais conhecido como CPRJ, que fica no município de Guapimirim, e é um centro que trabalha com pesquisa e manejo de primatas em cativeiro. E apesar dos macacos estarem dentro de recintos, eles estão rodeados pela floresta, porque aqui a gente está também dentro do Parque Estadual de Três Picos. Então os recintos são todos rodeados pela floresta.
E eu vim aqui pra contar a história de um grupo que em breve vai justamente voltar para a floresta. Um grupo de sete bugios que está num desses recintos aqui no CPRJ, nos últimos preparativos, antes de voltar para a floresta. Mas não essa floresta aqui dos Três Picos, uma floresta que está a cerca de 100 quilômetros daqui, que é o Parque Nacional da Tijuca.
A iniciativa do projeto Refauna de trazer essas espécies que já desapareceram dessa grande floresta urbana que é o Parque Nacional da Tijuca, através da reintrodução – ou da refaunação, como eles chamam – que é você trazer de volta os bichos que estavam ali e sumiram por causa, enfim, de desmatamento, caça, tudo isso que a gente já narrou tão bem nos últimos episódios.
Rafael Ferreira: O bugio-ruivo é um macaco que ocorre na Mata Atlântica do Brasil, da Bahia até o Rio Grande do Sul e até o extremo norte da Argentina. Os bugios não são agressivos como o som que eles emitem faz parecer. No Rio Grande do Sul, por exemplo, ele é até cultuado. Tem um ritmo musical que se chama bugio! É uma dança bem específica, que imita os passos do animal.
O macaco é um pouco maior do que os outros primatas sul americanos. Pode medir mais de 70 centímetros da cabeça aos pés e mais 60 centímetros só de cauda. Ele pesa, em média, sete quilos. A pelagem e a cauda são longas, e a cor vai do marrom mais escuro ao tom mais acastanhado, que deu a ele esse nome de ruivo. Existem sete espécies de bugio no Brasil, cada uma com sua particularidade e diferenças de coloração, mas uma característica marcante em todos eles é o pêlo mais longo da face, como se ele tivesse uma barba.
Aliás, por isso, em alguns lugares eles também são chamados de barbados. Essa barba esconde um osso que ele tem na garganta, que se chama osso hióide. Todos os primatas têm esse osso, inclusive a gente. Mas o do bugio é maior, um verdadeiro gogó. Por isso ele consegue produzir esse som tão poderoso.
Duda Menegassi: Bom, eu estou aqui de frente para o recinto onde estão os sete bugios que vão ser reintroduzidos no Parque Nacional da Tijuca. Tem uma fêmea com um filhote macho nas costas, pequenininho, já olhando pra gente, perguntando quem é esse grupo aqui perto da minha casa… são fêmeas, filhotes, e tem um macho mais velho que é o ancião aí do grupo, o alfa. Os filhotes são bastante brincalhões, já ficaram pendurados de um lado para o outro.
E eu falei “casa”, mas essa é a casa por pouco tempo, né? Porque daqui a pouco eles vão estar indo para o Parque Nacional da Tijuca, onde eles vão fazer parte da segunda soltura do Projeto Refauna, para trazer, reforçar a população, né. Já teve uma primeira soltura, já tem alguns bugios no parque, e com essa segunda soltura eles vão praticamente dobrar a população que tem lá hoje no parque, de oito indivíduos.
A gente chegou no recinto, a fêmea já foi fazendo xixi, que é um comportamento… medo, estresse, é isso, né. Chegou aqui um grupo grande. Eu estou acompanhada do pessoal do Refauna, que veio fazer um estudo do comportamento – que se chama etograma – para avaliar como eles estão se comportando antes de serem transportados para o parque, onde eles ainda vão ficar um tempo dentro de um viveiro, um recinto construído já na floresta para irem se acostumando com as flores, as árvores, os cheiros, os possíveis predadores. Depois, aí sim, vão ser soltos na floresta.
Minha voz está meio abafada, porque a gente está usando máscaras, uma medida de prevenção para justamente proteger os bugios. A espécie foi super impactada pela febre amarela. Como são primatas, né, somos todos muito próximos, e é importante para prevenir também possíveis outras doenças. Até mesmo, quem sabe, covid, apesar de não ter nenhum caso confirmado.
Silvia Bahadian: O CPRJ é um centro, um criadouro científico de animais silvestres, na verdade focado em primatas brasileiros. Então a gente trabalha com espécies ameaçadas de extinção, tanto para fazer a reprodução em cativeiro das espécies ameaçadas, quanto para fazer pesquisa com esses animais.
Duda Menegassi: Essa que você está ouvindo é a veterinária Silvia Bahadian, do Centro de Primatologia do Estado do Rio de Janeiro, o CPRJ, de onde vieram os bugios que fazem parte da iniciativa para repovoar o Parque Nacional da Tijuca.
Silvia Bahadian: No caso do bugio, a gente tem hoje em dia, aqui no Sudeste, uma população de cativeiro muito pequena. Ainda não existe um programa de reprodução organizado – isso está sendo feito agora. Porém, o que o que a gente tem feito é tentar organizar melhor e sistematizar animais que estão em cativeiro e que podem ser soltos, fazendo esse manejo integrado ex situ/in situ.
A ideia é, no futuro, a gente conseguir reproduzir melhor esses animais, ter um plantel reprodutivo para soltura, para tentar repovoar as áreas que foram devastadas pela febre amarela, enfim, que perderam as populações, e contribuir também com esse tipo de projeto, como o Refauna.
Rafael Ferreira: Animais selvagens dependem de seus ambientes naturais para sobreviver, especialmente animais como os primatas, que passam boa parte de suas vidas em árvores. Aliás, todos os macacos brasileiros são arborícolas, então precisam das árvores para comer, se locomover, se abrigar. A vida deles é no dossel da floresta. Tudo isso é bem óbvio, mas é fundamental para a gente entender o que vamos discutir nesse episódio.
A perda de habitat, a perda do ambiente natural no qual evoluíram e aprenderam a sobreviver, é uma das maiores ameaças aos animais terrestres. No caso dos primatas brasileiros, essa é uma verdade incontestável. Com 139 espécies, o Brasil é o país com maior diversidade de macacos do mundo e graças a um conjunto de ameaças que inclui caça, febre amarela, hibridização, desmatamento e fragmentação de florestas, o Brasil também é o país onde quase um quinto das espécies de macacos está ameaçada de extinção.
Atualmente, dos 25 primatas mais ameaçados do mundo, de acordo com a Re:wild e com a União Internacional para Conservação da Natureza, quatro deles estão aqui, incluindo o bugio-ruivo que a gente ouviu ainda há pouquinho.
Você está ouvindo “Bichos, plantas e histórias que não contaram para você”, um podcast do site ((o))eco de jornalismo ambiental.
Nessa temporada, em seis episódios, a gente traz alguns dos principais temas da conservação da natureza aqui no Brasil.
Eu sou o Rafael Ferreira.
Duda Menegassi: Eu sou a Duda Menegassi. E no episódio de hoje a gente fala dos Sem Floresta.
Nos episódios passados a gente viu como o bioma da Mata Atlântica foi bastante reduzido ao longo da história. A urbanização e a ocupação de cafezais no século XIX, por exemplo, fez com que os bugios desaparecessem da área que viria a se tornar o Parque Nacional da Tijuca, aqui no Rio de Janeiro.
E se os primatas não vivem sem floresta, o inverso também é verdade. A reintrodução de bugios no parque é um esforço que começou em 2015 e faz parte de uma iniciativa maior para trazer de volta várias espécies que sumiram da floresta, que se tornou uma floresta vazia. Isso se chama “refaunação”. É uma iniciativa de conservação que busca restaurar os processos naturais em ecossistemas prejudicados pela extinção de espécies.
Afinal de contas, os animais provêem alimento, polinizam, dispersam sementes, controlam pragas e doenças e são atores importantes para a manutenção da floresta. Ou seja, a reintrodução dos bichos nos ambientes onde foram extintos beneficia não só a espécie, mas a própria floresta. O bugio, por exemplo, tem um papel importante de dispersar as sementes dos frutos que ele se alimenta.
Matheus Travassos: Os bugios eles comem muitas sementes que outros primatas não comem, e eles têm uma interação muito importante com os besouros rola-bosta. Eles defecam em grupo, os bugios, e os besouros rola-bosta pegam essas fezes e transportam pra outros lugares. O Refauna já fez vários estudos que observaram bem forte essa interação e com muitos besouros inclusive que enterram as fezes.
Então eles fazem esse transporte das sementes para outro lugar para que uma nova árvore possa nascer.
Rafael Ferreira: Esse é o Matheus Travassos, ele biólogo do Reauna e coordenador das reintroduções dos bugios-ruivos na Floresta da Tijuca.
Matheus Travassos: As técnicas de manejo que estão utilizando agora, o monitoramento e tal, podem servir como exemplo para introduções futuras em locais onde a população de bugio está muito baixa.
Lá na floresta é uma região tranquila pro bugio, porque tem muito espaço, tem muito recurso, em relação à quantidade de bugio que tem lá, que atualmente são oito só. E não tem predador, nenhum predador natural. A gente tem o problema dos cachorros, mas com os bugios tá tranquilo, os bugios ficam mais no dossel, como eu falei. Então é uma boa região pra gente ter esse laboratório, né? Essa questão de como lidar com o manejo de bugio é da introdução em si.
Silvia Bahadian: Hoje em dia as principais ameaças para sobrevivência dos bugios são a fragmentação excessiva, que a gente vivencia isso na Mata Atlântica aqui do Sudeste, principalmente. Então, a perda de conexão florestal e fragmentos muito pequenos, que sobram, isolados. Então, por conta dessa fragmentação, os animais muitas vezes eles têm que andar pelo chão para poder chegar a uma outra área de mata.
Isso torna eles vulneráveis a ataques de cães, a atropelamento, à captura. Às vezes eles têm que passar pela fiação elétrica ou então também morrem eletrocutados. Então, a fragmentação em si coloca eles em uma situação de muita vulnerabilidade.
Rafael Ferreira: Você lembra da veterinária, Silvia Bahadian.
Silvia Bahadian: E além disso, a gente tem aqui no estado do Rio, por exemplo, algumas matas, pequenos fragmentos onde tinha bugios, e a febre amarela, que foi uma doença que teve um surto em 2016, 2017 aqui pelo estado, foi um efeito avassalador em cima dessas pequenas populações. Então a gente tem vários fragmentos que foram dizimados assim que acabou a população de bugios e não vai ter recolonização.
Rafael Ferreira: Como os dados de contagem de indivíduos e censo populacional não estão disponíveis para todas as espécies de primatas, a melhor estratégia para avaliar a situação de uma população desses animais, se houve redução ou se houve aumento, é justamente olhar para o habitat, a partir de imagens de satélite. Lembrando, nossos primatas dependem de florestas. Sem elas, não há primatas.
Sabendo disso, o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros e o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros, ambos do ICMBio, analisaram a perda de habitat para espécies de mamíferos terrestres no país.
Na Mata Atlântica eles descobriram que a perda de habitat não foi tão grande nos últimos anos, entre 1 e 2%. Mas se considerarmos que ao longo de cinco séculos o bioma foi reduzido a menos de um quinto da sua cobertura original, esse 1 ou 2% podem apresentar uma redução crítica para espécies já pressionadas historicamente pelo desmatamento e a fragmentação, como é o caso dos bugios.
Nos demais biomas, as maiores perdas de habitat concentram-se na Amazônia e no Cerrado, onde a fronteira do desmatamento tem avançado em ritmo acelerado nas últimas décadas.
Duda Menegassi: E é na Amazônia que a história do bugio pode se repetir.
É lá que está o recém-descrito zogue-zogue de Mato Grosso. Uma espécie que, tão logo foi descoberta, já entrou para a lista das mais ameaçadas do mundo.
Pela janela do avião que sobrevoa o norte mato-grossense, é possível ver ilhas de floresta recortadas em diferentes formatos e tamanhos, isoladas, em meio a vastas plantações e pastos.
Dependendo da época do ano, a paisagem onde predomina a soja, o milho, o algodão e o gado ganha uma turbidez, graças a outro elemento marcante da região: a fumaça. Durante a temporada de seca, o fogo é frequente na maior floresta tropical do mundo. E a gente sabe que não é fogo natural. É nessa região, em meio às queimadas criminosas e à progressiva destruição da natureza, em pleno arco do desmatamento, que vive o zogue-zogue, chamado pela ciência de Plecturocebus grovesi.
Gustavo Canale: Grovesi é uma espécie muito emblemática porque ela só ocorre em Mato Grosso.
Duda Menegassi: Esse que você ouviu, eu e o professor Gustavo Canale, da Universidade Federal de Mato Grosso. Ele é um dos 20 autores do artigo que apresentou o zogue-zogue para o mundo científico.
Gustavo Canale: Esses primatas se caracterizam por serem monogâmicos. Então eles só fazem ali o casal, e geralmente você tem um filhote da fase reprodutiva anterior, do período reprodutivo anterior e, às vezes, um filhote daquele ano. Então geralmente você encontra três, quatro, no máximo cinco indivíduos juntos. Então são grupos muito pequenos.
Duda Menegassi: O problema é que o zogue-zogue está em um local muito vulnerável.
Gustavo Canale: Eles estão justamente nessa região que mais perde floresta na Amazônia, que é o de Mato Grosso – pelo menos uma das, juntamente com o sul do Pará ali. Mas como esse desmatamento é relativamente recente, ainda tem grande bloco de floresta, mas cada vez mais essas florestas estão sendo fragmentadas. Tem muitas populações que estão em fragmentos muito pequenos. É evidente que são populações não-viáveis em longo prazo, mas se for protegido aquilo que de floresta que ainda existe para essa espécie, a chance dela permanecer é alta.
Duda Menegassi: A gente já falou disso em outros episódios, mas é basicamente o seguinte: o arco do desmatamento é a fronteira por onde as plantações agrícolas e o pasto avança por cima da floresta. É uma área enorme. São mais de 500 mil km² que vão do Pará até Mato Grosso, passando por Rondônia e Acre. E o nome é autoexplicativo. É a região com os maiores índices de desmatamento da Amazônia.
Aliás, de acordo com os dados mais recentes do PRODES, entre agosto de 2021 e julho de 2022, o Mato Grosso, onde vive o zogue-zogue, perdeu uma área equivalente a uma cidade de São Paulo de floresta para o desmatamento.
Gustavo Canale: Quando ela foi classificada como criticamente [ameaçada], ela foi classificada como criticamente pela projeção do desmatamento esperado de acordo com a taxa de desmatamento atual. Por isso que ela está em perigo. A gente imagina que a gente vai perder cada vez mais floresta a ponto dessa espécie ser extinta. E o grovesi, a área de distribuição dele está inteira dentro do arco do desmatamento. E também essa região é a região que está mais suscetível a incêndios florestais muito frequentes, e que você imagina que uma população que já está isolada num pequeno fragmento, se um incêndio bate naquele pequeno fragmento, já era. Ela não tem pra onde correr, né.
E assim, junto com o desmatamento, porque não é só substituição de floresta por soja ou pasto, né. Tem uma urbanização, uma malha viária, hidrelétricas, todos esses empreendimentos que dão sustentação ao agronegócio, que também estão sendo implementados justamente nessa área do grovesi.
Rafael Ferreira: Nessa corrida contra o tempo e a destruição, Gustavo faz parte de um grupo de pesquisadores que busca saber mais sobre a espécie. Eles correm para delimitar exatamente onde estão os zogue-zogue de Mato Grosso. Até o momento, a presença da espécie está confirmada em apenas seis municípios: Paranaíta, Alta Floresta, Juara, Nova Bandeirantes, Apiacás e Sinop, sendo apenas dois registros confirmados dentro de áreas protegidas – o Parque Nacional de Juruena e na Estação Ecológica de Rio Ronuro.
Há suspeita de que a espécie pode ocorrer também dentro de terras indígenas da região, mas ainda não houve confirmação. De acordo com Gustavo, existem ainda dois grandes blocos de floresta onde essa espécie ocorre, mas com certeza é uma população em declínio. E apesar de não ser uma população pequena, está perdendo indivíduos muito rapidamente pelo avanço intenso do desmatamento.
Duda Menegassi: E esse alerta ganhou repercussão internacional. Lembra da lista dos 25 primatas mais ameaçados do mundo, que a gente falou no começo do episódio? Lembra que quatro deles são brasileiros? Pois bem, o zogue-zogue de Mato Grosso entrou para essa lista. Ela é fruto da publicação Primates in Peril, produzida pela organização Re:wild, e a sua edição mais recente foi lançada durante o Congresso Brasileiro de Primatologia, que ocorreu justamente no norte de Mato Grosso, no município de Sinop, em agosto de 2022.
Foi no caminho para esse evento que eu pude testemunhar, do alto, o avanço do arco do desmatamento sobre o lar do zogue-zogue. E logo após o congresso, Anthony Rylands, diretor de conservação de primatas da Re:wild, e o chefe de conservação da Re:wild, o também primatólogo Russell Mittermeier, embarcaram numa excursão para ver de perto o zoguezogue de Mato Grosso. E eu fui junto.
Além de mim, a pequena comitiva de primate watching – traduzindo, observação de primatas – foi composta por Mittermeier, Rylands e outros seis primatólogos, todos guiados pelo Gustavo Canale. Nós partimos de Sinop e seguimos por cerca de 1h30 pela estrada, num caminho que começa no asfalto da MT-222 e termina em estradas de terra poeirentas. O destino foi o assentamento onde mora seu Armando Antônio, paranaense de São Miguel do Iguaçu.
Ele é um dos tantos que saíram do Sul para ocupar essa parte da Amazônia. O nome de Sinop, aliás, deriva da sigla Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná, empresa que implantou o projeto urbano da cidade. E é no “quintal” do Seu Armando, num fragmento de floresta de menos de cinco hectares, que vive um casal isolado de zogue-zogue de Mato Grosso.
Ele mora lá há mais de 20 anos e estava acostumado a ouvir esses macacos cantarem pela manhã, mas ele nem suspeitava que pudesse ser uma espécie que a ciência não conhecia ainda, muito menos uma espécie ameaçada de extinção.
Rafael Ferreira: O quintal do Seu Armando foi isolado durante o represamento feito pela usina hidrelétrica de Sinop, em 2019. O Matrinchã, que era um pequeno córrego, virou um rio de cerca de 300 metros de distância de uma margem até a outra. Naquele trecho, a água subiu e o habitat do zogue-zogue encolheu e se fragmentou ainda mais. Do outro lado desse novo rio há um outro grupo isolado.
Mas, como os trechos inundados são Áreas de Preservação Permanente, quem separou agora tem o dever de reconectar e recompor. E o professor Gustavo Canale lembra que esse trabalho de recomposição florestal e restauração das margens do rio cabe à Sinop Energia, a concessionária responsável pela usina hidrelétrica.
Gustavo Canale: Essa Área Preservação Permanente fosse completamente recuperada, como tem que ser, são 100 metros que a usina teria que recuperar, em torno de todo o reservatório, que tem um total de 30 mil hectares de água, tem que fazer uma faixa de 100 metros de floresta no perímetro desses 30 mil hectares de água. Se essa APP fosse recuperada, já teriam muitas áreas de Plecturocebus grovesi sendo reconectadas. Mas por enquanto não está sendo feito.
Então a gente está trabalhando com o Movimento de Atingidos por Barragens para poder pressionar a usina hidrelétrica para que ela faça de forma mais célere para recuperação da APP. E a gente também tem inscrito projetos, a gente já tem alguns projetos pré-aprovados, para também fazer o plantio de árvores com apoio da própria comunidade que vive ali. E essas mudas vão também recuperar habitat tanto para o grovesi quanto para outras espécies ameaçadas que tem ali na região.
Rafael Ferreira: Uma alternativa para acelerar esse processo é correr atrás de financiamento por conta própria e fazer a inscrição de projetos voltados para restauração. A ideia é, além de restaurar o habitat do zogue-zogue e de outros animais, promover o turismo de base comunitária.
Duda Menegassi: É, do ponto de vista ecológico, essas ilhas de floresta comprometem a sobrevivência de longo-prazo do zogue-zogue. Eles podem acabar fadados à reprodução com familiares, que levam ao empobrecimento genético e à escassez de recursos que um ambiente tão limitado é capaz de oferecer ao animal. Mas, do ponto de vista turístico, eu preciso admitir que a presença do zogue-zogue de Mato Grosso no fragmento é uma oportunidade única e de fácil acesso para praticar essa observação de primatas.
Para o nosso grupo, bastou uma caminhada de dez metros dentro da matinha e um playback. Gustavo sacou uma caixinha de som e deu play na vocalização gravada de um zogue-zogue. O recurso, que é bem comum nas atividades de observação de aves, deu resultado imediato.
O casal zogue-zogue veio rapidamente averiguar quem eram os intrusos na sua pequena casa. Com movimentos ágeis por cima da copa das árvores, a 15, 20 metros de altura, eles se misturavam entre as folhas com sua pelagem de tons marrons, ruivos e cinzas. Eu tentei, sem lá grande sucesso, tirar umas fotos dos animais, mas nem o zoom, nem o foco, nem os próprios macacos inquietos, colaboraram com meus cliques.
Se nem sempre era possível vê-los com clareza, quando eles vocalizavam era impossível não escutar. Essa cantoria dos zogue-zogues, como o Gustavo me explicou, é uma forma de defender o território e de nos mostrar que aquela casa tem dono. Quando o casal finalmente parou num galho, deu para observar um comportamento bem particular da espécie: o entrelaçar de suas longas caudas.
Todas pretas e com quase 50 centímetros, elas são maiores que o próprio corpo do bicho. Esse entrelaçar é uma demonstração de proximidade entre os indivíduos, normalmente visto no casal ou entre os filhotes, e é comum em todo esse gênero Plectorocebus – o nome que significa, inclusive, “macaco que enrola a cauda”.
Rafael Ferreira: Por ter sido descrito formalmente pela ciência há apenas cinco anos, ainda existem muitas incógnitas sobre o futuro do zogue-zogue, e sobre as melhores estratégias para garantir a sua conservação. Mas duas coisas são consenso. É necessário frear o desmatamento no norte de Mato Grosso, e é necessário investir na restauração florestal para reunir fragmentos isolados.
Silvia Bahadian: Basicamente, os animais precisam se encontrar e o espaço onde eles vivem é a mata e a floresta. Então você não vai ter primatas a longo-prazo se você não tiver floresta para eles viverem. E essas florestas têm que permitir que eles se encontrem, que eles procurem parceiros, formem famílias, que os seus filhos também procurem os seus parceiros. Isso é um processo que ocorre de forma contínua, e a fragmentação, ela vem exatamente colocando barreiras, colocando obstáculos principalmente para essa dispersão e o encontro de novos parceiros.
Rafael Ferreira: Essa mais uma vez, é a Sílvia, lá do CPRJ.
Silvia Bahadian: Mas a grande questão é: sem a gente conectar os fragmentos, esses animais estão fadados à extinção, principalmente os animais que ficam em fragmentos pequenos. Muito da conservação da Mata Atlântica é feito no sentido de reconectar fragmentos, tanto com reflorestamento, replantio, quanto com passagens de fauna, viaduto vegetado. Todas essas ações têm a intenção de reconectar fragmentos e permitir corredores de circulação para os animais.
Rafael Ferreira: E o ecoturismo pode ser uma ferramenta justamente para isso, para preservar e reconectar habitats não apenas do zogue-zogue da Amazônia, mas também dos bugios da Mata Atlântica e todos os outros primatas ameaçados. Afinal de contas, sem floresta, sem primatas.
Duda Menegassi: Apesar da qualidade questionável das minhas fotografias, foi incrível observar o zogue-zogue de Mato Grosso. É até engraçado pensar que eu, moradora do Rio de Janeiro, vi primeiro um zogue-zogue na floresta do que um bugio, que é a espécie que vive aqui. Com iniciativas como a do Refauna, no Parque Nacional da Tijuca, esses macacos-cantores ganham uma nova chance, e quem sabe eu não consigo vê-los em breve por lá. Ou pelo menos, o que talvez seja mais fácil, ouvi-los. E que essa trilha sonora de bugios e zogue-zogues continue a encher nossas florestas.
Rafael Ferreira: E aqui termina o quinto episódio de Bichos, Plantas e Histórias que não contaram para você, podcast do site ((o))eco de jornalismo ambiental.
O segundo maior felino do país perdeu espaço. A onça-parda muitas vezes é obrigada ao convívio com outra espécie, a humana. No próximo episódio vamos conhecer algumas histórias recentes que mostram que o medo e a violência, infelizmente, ainda protagonizam essa relação.
As reportagens originais “Lar cada vez menor”, “O macaco encurralado pelo desmatamento” e “Integração, palavra chave para salvar o bugio-ruivo”, escritas pela Duda Menegassi, além de outros artigos que embasam esse episódio, você encontra lá no site. O episódio teve pesquisa, roteiro e apresentação da Duda Menegassi e minha, Rafael Ferreira. As externas foram gravadas no Centro de Primatologia do Rio de Janeiro.
A consultoria em roteiro e revisão final são da Geórgia Santos. A edição foi da Geórgia Santos e do Douglas Weber. Também são do Douglas a sonorização e a finalização do episódio. A música original é do Gustavo Fingler. A estratégia de promoção, distribuição das redes e conteúdo digital da Milena Giacomini e da Gabriela Güllich, que também assina a identidade visual.
A idealização, coordenação e execução financeira do projeto são do Paulo André Vieira. Agradecemos a Matheus Travassos, Silva Bahadian, ao Gustavo Canale, Anthony Rylands, ao seu Armando Antonio, a equipe de reintrodução de bugios-ruivos na Floresta da Tijuca, feita pelo projeto Refauna, ao Centro de Primatologia do Estado do Rio de Janeiro, o CPRJ. Também queremos agradecer ao Tiago Reis, Deputado chefe, ao José Lourenço, ao Filipe Saibro, Rodrigo Alves, a Monica Aquino, a Bruna Burger, a Allison Glaucia, a Thayane Guimarães, do Centro Internacional para Jornalistas, a Maya Fortes, a todos os colegas da Ajor e, claro, sempre a equipe do ((o))eco. [esses nomes no final não consegui pegar direito…]
Duda Menegassi: Se você gostou desse episódio e está curtindo o nosso trabalho, acesse oeco.org.br e saiba como virar um apoiador do jornalismo ambiental independente.
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