Reportagens

Brasil tem quatro das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo

Descrito pela ciência há apenas quatro anos, o zogue-zogue do Mato Grosso, que ocorre em pleno Arco do Desmatamento, é uma das espécies sob risco crítico de desaparecer no país

Duda Menegassi ·
31 de agosto de 2022 · 2 anos atrás

Desmatamento, caça, febre amarela, fragmentação de florestas e hibridização são as principais ameaças que pairam sobre os primatas mundo afora. No Brasil, país com maior diversidade de macacos do mundo, esta “fórmula” faz com que mais de um quinto das espécies estejam ameaçadas de extinção. Quatro delas – bugio-ruivo, sagui-da-serra, zogue-zogue do Mato Grosso e caiarara – foram incluídas na lista global dos 25 primatas mais ameaçados do mundo. O alerta vermelho foi dado pela publicação Primates in Peril (Primatas em Perigo), divulgada nesta terça-feira (30).

Ao lado do Brasil como protagonista da lista, também com quatro espécies, está Madagascar, país africano que é lar dos ameaçados lêmures e da segunda maior diversidade de primatas no planeta. O documento foi produzido pela organização Re:wild, sucessora da Global Wildlife Organization que, desde 2000, elabora listas para chamar atenção das espécies de primatas que estão na berlinda, sob risco crítico de extinção. 

A publicação é feita em conjunto com o Primate Specialist Group (PSG), da União Internacional pela Conservação da Natureza (IUCN), e a Sociedade Internacional de Primatologia (IPS).

A edição atual, do biênio 2022-2023, traz dez espécies do continente africano, oito da Ásia e sete da América Latina (região denominada Neotrópicos). A publicação chama atenção ainda para outras vinte espécies que, apesar de não estarem no “top 25”, também enfrentam graves ameaças e devem ser consideradas.

Ao longo das onze edições já feitas da lista já foram ilustradas cerca de 90 das 719 espécies e subespécies de primatas reconhecidas hoje pela ciência. Atualmente, 449 delas estão sob algum nível de ameaça de extinção – o equivalente a quase dois terços do total.

“Algumas se recuperam e saem da lista, outras continuam em situação crítica”, conta o primatólogo Russell Mittermeier, chefe de Conservação (Chief Conservation Officer) da Re:wild e um dos autores do levantamento. De acordo com ele, a lista leva em critério não apenas o grau de ameaça, em si, mas ter uma boa representatividade das regiões e tipos de primatas que existem.

Mapa de localização das quatro espécies brasileiras. Arte: Gabriela Güllich.

“Para essa lista ter sentido, tem que ter representação geográfica de todas as grandes regiões onde têm primatas e taxonômica também, tem que ter representação de todos os grupos de primatas. E, preferivelmente, tem que ter alguém que propõe e que vai usar isso. Se escolhemos uma espécie que não tem nenhum esforço de conservação, é uma oportunidade perdida de usar a lista para fazer conservação”, avalia Russ em conversa com ((o))eco.

Veja a publicação completa com as 25 espécies

A divulgação da lista das 25 espécies mais ameaçadas foi feita por Russell durante o Congresso Brasileiro de Primatologia, que ocorre em Sinop, no norte do Mato Grosso, até esta quarta-feira (31). O local é o habitat de um dos primatas brasileiros da lista, o zogue-zogue do Mato Grosso (Plecturocebus grovesi). A espécie é restrita a uma pequena área do estado, sobreposta ao Arco do Desmatamento, a fronteira de expansão agropecuária onde a Amazônia cai – ou queima – para virar monocultura e pasto.

É justamente a perda de habitat e sua fragmentação que mais ameaça o zogue-zogue. O pequeno primata, que pesa cerca de 1kg, tem seu habitat delimitado pelos rios Juruena e Arinos, a oeste, e pelo rio Teles-Pires, a leste, numa região onde a Amazônia faz fronteira com o Cerrado.

O zogue-zogue do Mato Grosso (Plecturocebus grovesi). Foto: Leandro Jerusalinsky

Pesquisadores estimam que até hoje, 42% das florestas em que vivia este zogue-zogue já foram destruídas. Sem que nada seja feito para frear o desmatamento na região, essa taxa de habitat perdido pode chegar a 86% nos próximos 24 anos. O complexo de hidrelétricas previsto para a região é outra sombra que paira sobre o lar da espécie – e o seu futuro.

A publicação internacional cita o Projeto de Lei nº 337/22, que propõe a retirada do Mato Grosso da Amazônia Legal – o que diminuiria a área de vegetação nativa protegida legalmente nas propriedades rurais (as Reservas Legais, estabelecidas em 80% para Amazônia, contra apenas 20% no Cerrado). Em repúdio ao PL, a Sociedade Brasileira de Primatologia realizou uma manifestação nesta terça-feira (30), em meio ao congresso. Os cartazes de participantes exibiam mensagens contrárias à proposta e de alerta aos incêndios criminosos que ocorrem na região.

Entre as recomendações dos especialistas está a criação de reservas privadas e áreas protegidas, aplicação das Reservas Legais e a substituição das grandes monoculturas e commodities dependentes de produtos químicos – como a soja – por modelos mais sustentáveis de uso da terra, como agroflorestas. “A degradação florestal deve também ser evitada pela prevenção de incêndios e extração de madeira, que foi recentemente estimulada por grileiros incitados pela falta de fiscalização”, reforça o texto.

“Esperamos que a inclusão do zogue-zogue do Mato Grosso na lista dos 25 primatas mais ameaçados seja um alerta para os legisladores de Mato Grosso que tem a oportunidade agora de proteger essa espécie endêmica”, adiciona Leandro Jerusalinsky, chefe do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros (CPB), do ICMBio.

Atualmente, a distribuição do zogue-zogue abrange nove áreas protegidas, a maioria Terras Indígenas. Como foi descrita apenas em 2018, a espécie ainda não foi formalmente incluída na Lista Vermelha de espécies ameaçadas do Brasil, já que a última avaliação dos primatas data de 2014 (a atualização está prevista apenas para 2023). Por isso, o zogue-zogue ainda não pode ser incluído no Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação dos Primatas Amazônicos.

Russell Mittermeier acredita que a espécie pode se tornar uma bandeira para proteção da natureza no estado, que apresenta uma das maiores taxas de desmatamento anual do país. De acordo com ele, o lançamento da lista em Sinop, num evento que contou com a presença da Secretária de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do município, Ivete Mallmann Franke, tem importância estratégica para ajudar a promover a conservação das florestas em pleno Arco do Desmatamento através de outro potencial econômico: o turismo. 

“Mostra que desmatar não é a única opção econômica aqui. Você tem a possibilidade do ecoturismo usando primatas e outros animais como símbolos. É difícil competir com a força econômica da destruição, mas a indústria do ecoturismo pode dar outras alternativas e, ao mesmo tempo, proteger a mata. E você está numa boa posição aqui porque você tem o Pantanal ao sul e as pessoas que vêm visitar o Pantanal podem ir pro norte, no mesmo estado, e ver uma fauna completamente diferente”, explica o primatólogo americano.

Russell Mittermeier apresentou as 25 espécies ameaçadas durante o Congresso, com destaque para o zogue-zogue do Mato Grosso. Foto: Duda Menegassi.

Além do ameaçado zogue-zogue do Mato Grosso, o município abriga outras nove espécies de primatas amazônicos, entre elas o macaco-aranha-da-cara-branca (Ateles marginatus), que pode ser visto com alguma facilidade numa pequena área verde no centro da cidade, o Parque Florestal Municipal de Sinop.

O diretor de conservação de primatas da Re:wild e outro autor da publicação internacional, o primatólogo Anthony Rylands, explica que a presença dos animais na lista dos 25 mais ameaçados facilita a captação de apoio financeiro e político para conservação da espécie, além de motivar as pessoas. “Quando começamos a fazer a lista, às vezes colocávamos uma espécie super ameaçada, mas não tinha ninguém trabalhando com ela e não acontecia nada. Então a gente escolhe os bichos pensando também se tem pessoas que vão poder usar esse título de ‘top 25’ para realmente agir e chamar atenção”, conta o britânico, que trabalha com primatas no Brasil desde a década de 70.

“Parece justo que esta lista seja lançada hoje no Brasil, onde não só têm um conjunto incrivelmente diversificado de primatas, mas um grupo apaixonado e crescente de primatologistas brasileiros trabalhando na conservação dos animais”, destaca o presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia, Gustavo Canale.

Junto com a nova edição de Primates in Peril, foi feito o lançamento da 2ª edição do guia de bolso dos primatas da Mata Atlântica, financiado pela Re:wild junto com a Margot Marsh Biodiversity Foundation. 

O sagui-da-serra 

Incluído na lista pela primeira vez, o sagui-da-serra (Callithrix flaviceps) – ou sagui-da-serra-claro – é um pequeno primata que ocorre apenas Mata Atlântica do sudeste brasileiro, específica e restritamente numa área montanhosa entre os estados do Espírito Santo e Minas Gerais, até a divisa com o Rio de Janeiro.

A espécie, que normalmente já ocorre em baixas densidades e possui uma distribuição restrita, está encurralada em fragmentos de floresta que sobreviveram na Serra da Mantiqueira. O surto de febre amarela – que ocorreu entre 2017 e 2018 – dizimou populações do pequeno sagui em até 90% em alguns locais, como a Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Feliciano Miguel Abdala, em Minas Gerais.

Ameaçado pela febre amarela e a hibridização, o sagui-da-serra (Callithrix flaviceps) entrou pela primeira vez na lista dos mais ameaçados do mundo. Foto: Geraldo Lucas Amaral

Não bastasse a doença, os saguis-da-serra estão vendo suas fronteiras de floresta serem invadidas por seus parentes não nativos, o sagui-de-tufo-branco (Callithrix jacchus), natural da Caatinga e da Mata Atlântica do Nordeste; e o sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata), nativo de áreas do Cerrado até a fronteira com a floresta atlântica. 

A chegada dos invasores representa mais do que apenas a disputa por recursos e habitat, mas a ameaça da hibridização, ou seja, o apagamento genético do sagui-da-serra através da mistura entre os Callithrix. Para enfrentar esse grave problema – que afeta também o sagui-da-serra-escuro (Callithrix aurita) que constava entre os mais ameaçados na última edição do Primates in Peril – pesquisadores criaram o Centro de Conservação dos Saguis-da-Serra (CCSS), para fazer o manejo em cativeiro das duas espécies de saguis-da-serra, conforme conta reportagem recente de ((o))eco.

De acordo com os pesquisadores, a população da espécie foi reduzida em pelo menos 80% nos últimos 18 anos.

Bugio-ruivo

Os surtos de febre amarela também foram golpes duros para as populações de bugio-ruivo (Alouatta guariba), altamente suscetíveis à doença. O primata ocorre apenas na Mata Atlântica, na costa brasileira, até o extremo norte da Argentina. Apesar da relativa ampla distribuição, a espécie – que aparece entre as mais ameaçadas do mundo há uma década – sofre com a histórica destruição do seu habitat.

O bugio-ruivo (Alouatta guariba) aparece entre os mais ameaçados há uma década. Foto: Gerson Buss.

O que sobrou de Mata Atlântica está fragmentado em pequenas ilhas, a maioria menores do que 50 hectares, portanto inadequadas para sustentar populações viáveis de bugios-ruivos – um dos maiores primatas do bioma – no longo prazo. Além disso, caça e tráfico também ameaçam a conservação do animal.

Enquanto no Brasil a espécie é considerada apenas como Vulnerável à extinção, na Argentina a situação é crítica. A população atual no país é estimada em menos de 50 indivíduos e em vias de extinção. 

“Em 2008, 2009 sofremos uma onda de febre amarela e muitos morreram. Em 2013, fizemos uma análise de viabilidade populacional e os modelos mostraram que teríamos 30 a 50 animais e que não conseguiriam se recuperar sozinhos. Depois disso, fizemos um plano de ação para conseguir recuperar a espécie e em novembro teremos uma primeira oficina para discutir as estratégias possíveis. Uma das opções é o ‘rewilding’ [a reintrodução], mas precisa haver consenso entre os atores e é um processo complicado, porque vamos precisar de bugios do Brasil e de animais já vacinados contra a febre amarela”, explica o vice-presidente do Cone Sul do PSG/IUCN, Martin Kowalewski.

Caiarara

Descrito há apenas 30 anos e com ocorrência restrita à porção leste da Amazônia brasileira, o caiarara (Cebus kaapori) volta a aparecer na lista dos primatas mais ameaçados do mundo depois de quatro anos. A espécie, que é naturalmente rara, vive em florestas de terra firme e tem perdido espaço diante do avanço do desmatamento na região. A caça é outro fator que pressiona o caiarara rumo à extinção.

“O caiarara habita uma região densamente povoada com o maior nível de desmatamento e degradação de habitat em toda a Amazônia brasileira. Mais de 70% da floresta foi destruída, convertida em terras agrícolas e pastagens. O desmatamento continua, e a maioria das florestas remanescentes são manchas isoladas e degradadas em terras agrícolas onde esta espécie também é caçada. A perda de habitat em toda a gama da espécie de 1985 a 2020 foi estimada em 32,8%”, cita a publicação.

Ainda pouco estudada, o caiarara (Cebus kaapori) já está entre os mais ameaçados do mundo. Foto: Fabiano Melo.

Considerado um dos primatas mais ameaçados da Amazônia, o caiarara pode perder todas as suas florestas remanescentes nas próximas três décadas devido ao desmatamento e às mudanças climáticas, alertam os pesquisadores. 

A espécie faz parte do Plano de Ação Nacional (PAN) para Conservação dos Primatas Amazônicos, do ICMBio.

*A repórter viajou à convite da Sociedade Brasileira de Primatologia, com apoio da Re:wild e Margot Marsh Biodiversity Foundation

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 2

  1. GASPAR ALENCAR diz:

    Aqui em Flona Palmares, monitoramos três espécies Alouatta ululata, Sapajus libidinosus e Callithrix jacchus, somos apenas um fragmento de floresta, mas com monitoramento sistemático, educação ambiental sistemática, participação das crianças e dos pais das crianças, mudança de comportamento predatório e com os coletores de dados chamados pelo Francisco Araos, como Sentinelas comunitários poderemos mudar esse cenário.


    1. Leandro Travassos diz: