Corre uma guerra surda nos bastidores do ambientalismo no Rio de Janeiro e seus ecos acabam de chegar a Brasília. Na sexta-feira, 4 de março, o presidente do Ibama, Marcus Barros, recebeu um calhamaço de 160 páginas com denúncias contra a atuação da Gerência do órgão no estado. O conteúdo do dossiê não foi divulgado, mas ele carrega um apelo especial: a maioria das acusações é assinada por Dionísio Julio Ribeiro Júnior, o ambientalista assassinado em 22 de fevereiro, que atuava na Reserva Biológica do Tinguá.
No olho do furacão está o gerente-executivo do Ibama no Rio, Edson Bedim, advogado, 42 anos. Não é de hoje que seu nome suscita desconfiança e críticas no meio ambiental. Antes mesmo de assumir o cargo, no início do governo Lula, Bedim gerou protestos da Associação dos Servidores do Ibama (Asibama). Corria de boca em boca um caso acontecido em 2000, quando seu escritório de advocacia defendeu o então prefeito de Niterói, Jorge Roberto Silveira, numa ação em que o Ibama o acusava de crime ambiental por construir em área protegida na cidade de Arraial do Cabo, região dos Lagos. Além desse exemplo de atuação profissional “anti-natureza”, incomodava o fato de Bedim não militar no ambientalismo desde 1992. Como se trata de um petista de primeira hora, sua indicação teria apenas motivação política.
Edson Bedim já estava com um pé na política ambiental fluminense desde 2002, quando Benedita da Silva governou o estado por nove meses. Foi subsecretário de Meio Ambiente sob o comando de Liszt Vieira e orgulha-se de, neste curto período, terem criado a Área de Proteção Ambiental (APA) do Pau Brasil e elaborado seu plano de manejo. Com a derrota de Benedita nas eleições, a dupla saiu do governo, mas a chegada do PT ao poder federal lhes rendeu novos cargos: Liszt tornou-se diretor do Jardim Botânico e Bedim assumiu o Ibama.
Em apenas dois anos, o novo gerente-executivo meteu-se em confusões consideráveis. Em 2003, levou um multa de 10 mil reais do próprio Ibama, por erguer um muro sem licença ambiental sobre dunas e restingas em Arraial do Cabo. No ano passado, voltou a ser vítima de fogo amigo. Um laudo do Ibama autorizando o desmatamento de área protegida no Pontal do Atalaia, também em Arraial, foi considerado irregular por um técnico do próprio Escritório Regional que expediu o laudo. Partiram do biólogo Fábio Fabiano, funcionário do Ibama em Cabo Frio, tanto as críticas ao documento quanto a multa aplicada a Bedim no ano anterior.
Na sua espaçosa e confortável sala no último andar da sede do Ibama, no Centro do Rio, um contrariado Bedim diz que a pinimba com Fábio Fabiano é pessoal. Eles se conhecem há muitos anos, ambos são de Arraial do Cabo e Fábio integra um grupo do PT que se opõe ao de Bedim. “É o ressentimento que levou a essa sórdida e leviana campanha de calúnia e difamação”, afirma. Mas Fábio garante que é ele o perseguido. Conta que passou a ser boicotado quando Bedim assumiu o Ibama e está movendo processos na Justiça contra o chefe. Fábio foi tirado da direção da Reserva Extrativista de Arraial do Cabo, que ajudou a fundar, e teve que apelar ao Ibama de Brasília para não ser transferido para Campos, no Norte fluminense. Bedim reconhece que tentou mandar seu desafeto para longe, mas “a pedido de organizações civis de Arraial do Cabo, que consideravam Fábio autoritário”, e porque o escritório de Campos estava carente de analistas ambientais.
Com um inimigo declarado a atacá-lo dentro do Ibama e do PT, Bedim já teria problemas suficientes. Mas tem outros, distantes da região dos Lagos e da influência de Fábio Fabiano. Parte deles deve-se ao fato de o Ibama do Rio, nos últimos anos, estar se especializando em liberar obras em áreas de preservação ambiental, por meio de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC). Os TACs são acordos extra-judiciais que podem permitir o prosseguimento das construções desde que o responsável tome certos cuidados ambientais ou repare os danos já causados. Mas isso nem sempre é o mais aconselhável. Dependendo da importância ecológica da área, a lei proíbe qualquer tipo de obra.
Pelo menos dois casos que ilustram essa prática questionável do Ibama estão sendo analisados pelo Ministério Público.
O primeiro acontece no Saco do Mamanguá, considerado o único fiorde tropical do país, em Paraty. A área, com suas praias, costões, restingas e Mata Atlântica, é protegida pela Reserva Ecológica da Joatinga. Foi lá que o piloto de automobilismo Xandi Negrão resolveu construir uma casa residencial, classificada como “unifamiliar” no projeto apresentado. Iniciada a obra, viu-se que as pretensões do esportista e empresário do ramo farmacêutico eram bem maiores: além da casa, estavam previstos sete bangalôs, uma marina e um heliporto. Depois de ser autuado diversas vezes pelo Ibama, o resort de Xandi Negrão acabou recebendo sinal verde do órgão graças a um TAC firmado em 2004. Foi aí que o Ministério Público (MP) entrou em cena, pedindo a demolição do que já foi erguido e a recuperação dos danos ambientais. “No ano passado, vários órgãos fizeram vistoria na área. O MP, a ong Sapê (Sociedade Angrense de Proteção Ecológica), o Instituto Estadual de Florestas (IEF) e a Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema). O único laudo destoante é o do Ibama. Ele chega ao desplante de dizer que casa não foi construída na praia e que não há vegetação de Mata Atlântica, mas traz fotos que mostram exatamente o contrário”, diz a procuradora Fabiana Rodrigues, do MP Federal de Angra. “O Saco do Mamanguá é área de proteção integral e Reserva da Biosfera da Mata Atlântica. Aceitar esse acordo é ferir o que dispõe todo o sistema jurídico ambiental”, concorda a promotora Patrícia Gabai Venâncio, do MP Estadual, que também investiga o caso. A Justiça está apurando não apenas as irregularidades da obra, mas também a conduta suspeita dos técnicos Ibama.
Edson Bedim alega que a área já está “antropizada”, ou seja, que já existem várias outras casas no local e a vegetação não está mais tão preservada. Para comentar o caso utiliza o interessante conceito de “luta de classes ecológica”: a Justiça estaria perseguindo os mais ricos, enquanto fecha os olhos à favelização, segundo ele a grande causa da degradação ambiental no Estado.
Talvez por isso na região de Angra, onde as favelas de fato crescem a olhos vistos, o Ibama não tenha como prioridade incomodar a vida de grandes empreendimentos, como o Instituto Serenar. Apresentado na Internet como um “centro de integração humana”, na prática parece um hotel com vários chalés. Construída na APA dos Tamoios, a sede do Instituto invadiu a faixa marginal de proteção do rio Jurumirim e aterrou áreas de manguezal. O roteiro do caso foi semelhante ao da casa de Xandi Negrão: primeiro autuações, depois negociação, finalmente um acordo com o Ibama assinado pelo próprio Bedim. Quando o Ministério Público conseguiu paralisar a obra, 90% da construção estava pronta. O que não é motivo para desistir de embargá-la, segundo a procuradora Fabiana Rodrigues. “Liberar obras como esta só porque já estão avançadas é ceder à lógica do fato consumado”, argumenta a representante do MP Federal.
“Não conheço este caso”, é o que diz Bedim, fechando questão: “Nenhuma decisão no Ibama é tomada sem parecer técnico e jurídico competente”.
Sua mais nova dor de cabeça vem do Parque Nacional da Bocaina, na mesma região: a construção de uma Estação de Tratamento de Água junto a uma barragem que fica dentro da área protegida. O projeto é da Prefeitura de Angra e visa abastecer a Vila Histórica de Mambucaba. A obra foi vetada pela chefia do Parque Nacional, mas o Ibama do Rio a liberou. O chefe do Parque, Daniel Toffoli, confirma que o Plano de Manejo prevê a destruição de todas as barragens existentes no Parque e que foi emitido um parecer contrário ao projeto. Mas sem querer se indispor com a Gerência do Rio, diz que “se a obra for considerada de utilidade pública, pode ser licenciada pelo Ibama com a devida compensação ambiental”. Não foi o caso. A autorização foi dada por um simples ofício, sem estudo de impacto nem proposta de reversão de parte dos lucros para manter o Parque.
Pela primeira vez na conversa, o gerente-executivo do Ibama mostra-se irritado, ao comentar a postura do chefe do Parque. “Isso é insensibilidade sócio-ambiental. Estudos mostram que quase todas as doenças na vila são de origem hídrica. O não tratamento da água está matando criancinhas. E é um equívoco querer cobrar compensação ambiental, a população já tem seu benefício sócio-ambiental. O Parque que fornece água se torna parceiro da população. O Plano de Manejo está equivocado e precisa ser consertado. É um raciocínio bisonho, caolho”, critica. Bedim garante que a barragem não será ampliada e que o tratamento da água não usará produtos químicos, apenas um sistema de filtros. Uma solução aparentemente simples demais para os quatro meses de obra previstos por Carlos Alberto Marcati, Diretor do Serviço de Água e Esgoto de Angra (SAAE). Provavelmente, mais um caso para o Ministério Público.
Os casos recentes fizeram o Ibama perder crédito junto aos ambientalistas daquela área. “Em 99% dos empreendimentos na região de Angra, o Ibama é omisso. Poderia impedir, embargar as obras, e não faz. Assumiu o caráter de figura política. A decisão fica a cargo de quem dá mais”, diz Ivan Marcelo Neves, da Sapê. Para ele, o Ibama local é uma “máfia”. “O Bedim está envolvido até o pescoço com TACs fraudulentos”.
Mas as preocupações de Marina Silva no Rio de Janeiro não devem se concentrar nem na chamada Costa Verde, onde fica Angra, nem na região dos Lagos. O assassinato de Dionísio e o dossiê de acusações que sua ONG, Grupo de Defesa da Natureza (GDN), entregou ao Ibama federal, garantirão à Baixada Fluminense o centro das atenções. Cecília Ferraz, Diretora de Ecossistemas do Ibama, diz que a Presidência já distribuiu as denúncias internamente, para que os órgãos responsáveis apurem cada caso.
Antes de se despedir do repórter d’O Eco, Edson Bedim faz uma espécie de desabafo. Reconhece que tem “apanhado” muito desde que assumiu o cargo, e que a vida antes, quando foi procurador-geral dos municípios de Cabo Frio e Búzios, entre 1999 e 2001, era mais tranqüila.
De fato, a política ambiental fluminense não dá sossego a ninguém. Aos seis anos de casal Garotinho e ao esquema de fraudes de licenças da Feema revelado em novembro passado, somam-se agora as suspeitas sobre o Ibama do Rio. Durma-se com um barulho desses. O Bedim e todos nós.
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