Especialistas em pesca de oceano são unânimes em afirmar: o bacalhau está acabando. Em pouco menos de 30 anos, a produtividade caiu em 70% apesar da tecnologia e dos subsídios para a pesca comercial. Essa é a segunda vez que isso acontece. Na primeira, ele só não se extinguiu porque não havia a pesca de arrasto industrial.
O consumo mundial de bacalhau passou de 3,1 milhões de toneladas em 1970 para 950 mil toneladas em 2000 e 890 mil em 2002. Não foi por falta de demanda, pelo contrário: a caçada ao bacalhau fez com que ele desaparecesse de seus habitats tradicionais. A pesca de arrasto liquidou os recursos dos oceanos. Por aqui ainda vemos o bicho nas prateleiras porque o Brasil é o maior importador de bacalhau salgado do mundo. Em 2004, consumimos 42% a mais que em 2003, passando de 17.656 toneladas para 25.227 toneladas.
A rota de extinção do bacalhau começou há muitos séculos. Existem registros de fábricas para processamento da espécie cod (Gadus morhua) na Islândia e na Noruega no século IX. Eram consumidos pelos vikings. Mas foram os bascos – que habitavam as duas vertentes dos Pirineus Ocidentais, do lado da Espanha e da França – que aprenderam a conservar o peixe usando sal e começaram a fazer comércio com ele. No ano 1000, os bascos vendiam bacalhau curado, salgado ou seco, método que permitiu a estocagem. Foi o bastante para o peixe mudar os hábitos alimentares da época, quando o mundo se virava com uma oferta limitadíssima de comida, que estragava rapidamente.
Em Portugal, o marco do pescado começou no século XVI, no reinado de D. João III, quando a frota bacalhoeira nacional descarregou mais de três mil toneladas do peixe de uma vez. O “excesso” na busca pelo bacalhau começou depois que a Europa dos séculos XIV e XV enfrentou a Grande Fome (1315-1317), com a mudança no clima que destruiu as colheitas, e a Peste Negra (1347-1350), pandemia de peste bubônica que assolou a Europa em meados do século XIV, dizimando um terço da população. O bacalhau entrou em cena como fonte de geração de emprego e renda, ajudando os portugueses a superar a miséria. O consumo interno do bacalhau foi reforçado por conta da rígida norma cristã de abstinência alimentar de 150 dias por ano, quando era permitido apenas o consumo de carne de peixe. Quem não vivia perto da costa tinha problemas para se abastecer de pescados, altamente perecíveis. O bacalhau salgado, farto na época, caiu no gosto popular porque conservava, depois da salga, os nutrientes, a textura e o sabor. De olho na necessidade do interior, Dom Manuel chegou a reivindicar para si, em 1506, o dízimo do bacalhau na Terra Nova, atual Canadá.
A importância socioeconômica do bacalhau foi tão grande que durante todo o século XVI os portugueses mandaram sistematicamente à Terra Nova uma frota, que chegou a ter 150 navios em 1550, só para pescá-lo. Rapidamente a atividade econômica ganhou força e se tornou uma das principais motivações das viagens portuguesas do princípio do século XVII. O bacalhau ajudou no desenvolvimento construção naval, da navegação astronômica e da cartografia. Ainda no período de dominação dos Filipes (1580-1640), os recursos já davam os primeiros sinais de escassez. Antes mesmo da pesca de arrasto, o bacalhau quase desapareceu nos mares dominados pelos portugueses, e a recuperação do peixe só ocorreu no século XIX. Mais à frente, depois da Segunda Guerra Mundial, o preço do bacalhau aumentou, restringindo o consumo popular nas principais festas cristãs: a Páscoa e o Natal.
Livre de pecado, a busca contemporânea e frenética tornou novamente o bacalhau escasso, desta vez em todos os mares. Nas últimas duas décadas, com a pesca de arrasto em escala industrial, a captura tornou-se mais eficiente e acelerou o processo de extinção não só deste peixe, mas também da cadeia alimentar que o sustenta. O simples “encontro” do pescado está cada vez mais difícil porque as redes capturam os animais cedo demais e em grandes quantidades, comprometendo decisivamente sua reprodução. O bacalhau leva até seis anos para atingir a maturidade sexual. De cada 20 filhotes, apenas um consegue sobreviver tempo suficiente para se reproduzir. Além disso, a pesca secular capturou intensamente os animais maiores, fazendo com que a população remanescente das espécies descendesse de peixes menores, de valor comercial reduzido, forçando uma busca ainda maior pelo pescado, num ciclo vicioso.
De acordo com especialistas, se a pesca de arrasto fosse proibida hoje em todas as áreas para evitar um colapso ambiental, os cardumes do bacalhau não se recuperariam em menos de oito anos. Segundo a FAO (organização da ONU para a agricultura e a alimentação) 75% dos recursos pesqueiros estão no limite de exploração ou em vias de esgotamento. A organização alertou, no início de março, que este excesso de pesca pode colocar em perigo o futuro de sete das dez principais espécies marinhas.
Em 1992, o Canadá, que produzia um quinto do bacalhau do mundo, foi obrigado a acabar com a pesca em seu litoral, o que levou 40 mil pessoas ao desemprego. Em 1999, a União Européia instaurou um plano de longo prazo para a recuperação da população do bacalhau na região do Báltico. Em outra reunião, realizada em 2001 em Bergen, na Noruega, um grupo de trabalho especializado no assunto repetiu pelo terceiro ano consecutivo as recomendações para a restrição e a proibição, em algumas regiões, da pesca do bacalhau. E em 2003, foi proibida a pesca de bacalhau com redes de arrasto, redes de cerco dinamarquesas e similares, no mar Báltico, no período de abril a maio.
A região que vai da costa da Noruega ao litoral da Escócia é a maior produtora do legítimo bacalhau – o Gadus morhua, exportado para todos os cantos do mundo, inclusive o Brasil. Em outubro do ano passado, outro comunicado oficial reforçou o temor da extinção das espécies de bacalhau nos mares gelados de todo o mundo. O International Council for the Exploration of the Sea revelou que não havia sinais de recuperação dos estoques de bacalhau nos países exportadores, ou seja, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estónia, Finlândia, França, Alemanha, Islândia, Irlanda, Letônia, Holanda, Noruega, Polônia, Portugal, Rússia, Espanha, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos. Os cientistas estimam que nessas regiões existam apenas 46 mil toneladas do peixe, quando o normal e recomendável para o equilíbrio do ecossistema seria um mínimo 150 mil toneladas.
A esperança dos europeus é a criação em cativeiro. Mas a produção de bacalhau em gaiolas flutuantes em baías e braços de mar enfrenta um obstáculo: a dificuldade em alimentar os peixes que não aceitam ração – como o salmão – e só comem organismos vivos. Apenas um laboratório domina a técnica da alimentação dos filhotes em gaiolas, o que pode tornar o produto ainda mais caro do que já é hoje. Além disso, animais de cativeiro produzem carne de sabor e qualidade inferiores aos do animal selvagem. Se há alguma chance de o bacalhau sair dessa, não nos restam mais de 15 anos para tentar.
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