Bebi caldo de cana por quase 50 anos, paixão que começou nas minhas mamadeiras. Quando vi nos jornais que o caldo catarinense estava matando num vapt-vupt, supostamente vitaminado pelo Mal de Chagas, levantei a tese, leiga, de que isto seria impossível. Dezenas de pessoas entrevistadas, médicos, inclusive, também achavam a mesma coisa.
Os fatos: 28 pessoas foram infectadas entre 3 de fevereiro e 30 de março depois de beberem caldo na garapeira Barracão da Penha 2, em Navegantes, 100 quilômetros ao norte de Floripa. Seis delas morreram, causando alarme geral. O diagnóstico oficial foi o Mal de Chagas em sua forma aguda – mas até então as autoridades só diziam que a contaminação se dera “possivelmente pela moagem inadvertida da cana com um barbeiro”.
Para confirmação seria preciso encontrar o transmissor – o que aconteceu na quarta-feira, 30 de março, quando as autoridades sanitárias finalmente capturaram um dos bichos nas prateleiras da garapeira. Mas só achá-lo não bastava. Nem todo percevejo conhecido como barbeiro carrega o parasita Trypanosoma cruzi, que causa a doença. A crença geral era de que o barbeiro só transmitiria a doença pela picada, e que os sintomas levariam de 20 a 30 anos para se manifestarem.
O barbeiro encontrado na prateleira foi testado. Estava contaminado. O resultado saiu na quinta, dia 31, à noite. Eu, que já tinha tomado o caldo nas versões limão, abacaxi e bergamota, mas nunca com barbeiro, continuei duvidando da possibilidade e tentei descobrir “a verdadeira história” por trás da notícia. Quem sabe uma forma mutante? Ou uma conspiração das multinacionais de refrigerantes contra a saudável beberagem?
Parece desrespeito com as seis pessoas que morreram. Mas foi por temor e muito sério que passei a investigar o caso. Fiquei em pânico porque tomei caldo entre fevereiro e março, o período fatal, e na zona norte da BR-101, em Santa Catarina, o epicentro da desgraça. Minha dúvida era justificada: por 30 anos cruzei aquele trecho do litoral inadvertido do perigo de um simples caldo? Muitas vezes eu me preocupei com a sujeira dos quiosques, com medo de pegar tifo, hepatite, salmonela. Mas Chagas? Ainda mais numa zona declarada livre do inseto transmissor?
Já bebi caldo em copos sujos, em copos de plástico reusados, em canecas velhas, xícaras lascadas. Feitos em moedor manual, no elétrico, até nas moendas puxadas a boi. Bebi caldo de cana verde, de uma variedade que chamam “galega”, da cana do seu Nhôzinho, da seca, da azeda, da miúda e da “grada” – e seria justamente o caldo que traria o parasita mortal?
Bebi cana em companhia de caminhoneiros, de turistas alemães, de amigos americanos – todos, sem exceção, dão aquele ar saciado e deliciado de “ahhhh” quando baixam o copo e lambem os beiços. Nenhum, jamais, suspeitou do perigo. Ninguém viu nenhum barbeiro no copo, nem esmagadinho. Ninguém viu, muito menos, cocô de gambá, preá ou outro bicho que pode transmitir a doença. No máximo o que se encontra no copo mais sujo é asa de abelha, presa no coador.
Meus três points favoritos, por mais limpinhos: o Gaúcho, na Estrada do Mar, quase na divisa RS-SC, a Banca do Souza, no Morro dos Cavalos, e uma banquinha sem nome perigosamente perto do mortífero Barracão Penha 2. Na minha investigação para inocentar o caldo e saber se tinha alguma trama inconfessa em satanizá-lo, fui às páginas eletrônicas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, em inglês) do governo americano, e ouvi especialistas. O CDC de Atlanta é o melhor laboratório do mundo, acumula todo conhecimento que o dinheiro pode comprar.
Surprise! Os americanos não acreditam na possibilidade de uma epidemia como a catarinense. De início eu achei que isso provava que os médicos que estavam com a batata na mão tinham errado o diagnóstico. O laureado CDC fala na doença em sua forma aguda, como diagnosticaram os catarinenses, mas trata o mal como se fosse uma gripe forte, nada mais. E confirma que o Chagas só se manifestaria lá por 20, 30 anos depois da contaminação. De mortalidade, assim como ocorreu em Santa Catarina, os gringos nada dizem – fazendo crescer em mim a sensação de que alguma coisa estava errada.
Fui então à Secretaria de Saúde do Estado, ao Ministério da Saúde e ao Instituto Carlos Chagas – cujo nome homenageia justamente o descobridor da doença, no início do século XX. Levei a todos minhas dúvidas e confrontei as descobertas de agora com os arquivos americanos. Conclusão: parece que desta vez os gringos estão errados. E que nós estamos na vanguarda da luta mundial contra a doença, tendo muito a ensinar.
Falei com o doutor Bruno Schlemper, o médico que comanda a luta contra a Epidemia de Mal de Chagas por Caldo de Cana no Litoral Catarinense Verão 2005 (é com esse nome que o episódio vai virar tese, tratado médico, livro, como vai entrar nos registros do CDC e também como será contado de praia em praia pelos manezinhos). Schlemper é da Secretaria de Saúde de Santa Catarina e professor de Doenças Tropicais da universidade federal há 25 anos. Já correu os grotões do Brasil atrás do Trypanosoma cruzi. É dele a versão inicial divulgada pelo Brasil de que um barbeiro vivo foi moído ou as fezes do bicho misturadas com o caldo servido na banca da Penha.
Por que a doença matou de forma tão violenta a e tão rápida? Porque quando o parasita entra via mucosa reproduz-se muito mais rapidamente. Alta concentração de parasitas no sangue derruba crianças (como dois irmãos entre os seis mortos) e idosos (a avó deles, de 71 anos). Os médicos catarinenses estão 100 por cento absolutamente completamente certíssimos que é Mal de Chagas? O doutor Schlemper aposta seu diploma. “Encontramos parasitas vivos nadando no sangue testado” – e a alta concentração deles numa gotinha é a caracterização da fase aguda.
Os médicos usaram as mesmas amostras para três contraprovas. Isso foi necessário porque poderia ser que alguém estivesse na fase aguda, fosse sobreviver, tivesse morrido de qualquer outra coisa e os parasitas mascarassem a causa da morte. Não: “Foi Chagas, Chagas e Chagas”. O pai de todos os especialistas é o doutor José Coura, do Instituto Carlos Chagas. Ele relata que em 1966 uma epidemia igual ocorreu no Rio Grande do Sul. E que o Brasil desconhecia, mas 400 pessoas se contaminaram na Amazônia tomando suco de açaí, também com barbeiro esmagado.
Os argumentos derrubaram minhas dúvidas. E os dois médicos me devolveram ao doce mundo do caldo de cana: “O que ocorreu em Santa Catarina foi uma tragédia, mas é muito raro. É mais fácil ganhar na loto do que beber um caldo contaminado”.
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Parabéns pelo esclarecimento! Aprecio muito o caldo de cana!
Parabéns pelo excelente texto…viajei com VC a todos esses lugares… é como se não estivesse apenas lendo mas visualizando todas as situações..
E como está a sua saúde hoje?
Será que este perigo ainda pode rondar pela cidade do interior de Minas Gerais????
boa tarde!
Por favor, meu nome é Meire Regina, moro em Piracicaba e estou fazendo um trabalho para a escola de enfermagem onde o tema é Doença de Chagas. Fiz uma busca aqui na web e li seu artigo. Por favor postaria de saber como ficou este caso? Como estão as pessoas que se contaminaram? Quantas pessoas efetivamente morreram? vc tem alguma nova informação para me dizer? Aguardo suas informações e desde já agradeço…até…
Vou responder: história errada e mal contada, foi minha família que morreu, nada mais q três pessoas, ao todo 19 pessoas contaminadas.
Muita invenção de história, muita falação. Não devem falar o que não sabem
Parabéns pelo excelente texto.
E dez anos depois tem me elucidado aqui no DF. Quem diria o que é o poder do conhecimento compartilhado! Ecoa pela eternidade!
Força, honra e sabedoria!
E muita saúde bem engarapada! rs