A natureza deve nos interessar todos os dias, e não apenas nos fins de semana. Pode parecer uma conclusão trivial, mas os resultados da Avaliação Ecossistêmica do Milênio (Millennium Ecosystem Assessment, MA na sigla em inglês), apresentados em Brasília no dia 30 de março, falam da necessidade de uma transformação psicológica na maneira como lidamos com a conservação ambiental. Ou seja, devemos valorizar os serviços naturais como suporte para nossa própria vida.
A situação do Cinturão Verde em torno da cidade de São Paulo é um microcosmo perfeito das questões globais levantadas pela MA. Aliás, o projeto foi o tema de uma das 33 avaliações regionais desenvolvidas no âmbito do estudo global das Nações Unidas, que completou quatro anos.
Ainda longe de estar concluído (e lutando para conseguir recursos suficientes), alguns resultados preliminares do estudo sobre São Paulo foram apresentados em um seminário na USP, no dia 1° de abril. Em resumo, eles mostram que o futuro de 10% da população brasileira e 20% do PIB nacional depende muito daquele frágil círculo de florestas que abraça a vasta metrópole.
O Cinturão Verde, que cobre 1,5 milhão de hectares e se espalha ao longo de 73 municípios da região metropolitana de São Paulo e da Baixada Santista, foi declarado Reserva da Biosfera pela Unesco em 1994. Pouco menos da metade dessa área (614 mil hectares) é coberta por florestas, e apenas um terço delas (222 mil hectares) estão oficialmente protegidas.
A abordagem da Avaliação Ecossistêmica do Milênio consiste em analisar os diferentes serviços que os ecossistemas prestam à população. Muitos deles costumam ser negligenciados nas tomadas de decisão, porque seu valor não aparece nas planilhas de cálculo convencionais. Por exemplo, a conversão de uma área florestada em terra produtiva parece uma decisão sensata, uma vez que a economia convencional “enxerga” apenas o lucro da venda de madeira, gado e produtos agrícolas. Mas neste processo a sociedade como um todo perde uma série de serviços naturais, como o controle climático, a oferta e a qualidade da água, oportunidades de lazer, entre outros. O valor desses serviços “não-mercadológicos” normalmente supera em muito os benefícios financeiros daquela decisão.
O estudo sobre a importância do Cinturão Verde para São Paulo reflete claramente essa equação, em especial no que diz respeito ao abastecimento de água para as 23 milhões de pessoas que vivem na cidade e seus arredores. À medida que o crescimento urbano só faz pressionar as reservas de água da metrópole, as florestas restantes passam a desempenhar um papel decisivo na proteção desse recurso para o futuro.
No seminário promovido pela USP na última sexta-feira, José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia, destacou as principais ameaças aos recursos hídricos reveladas até agora pelo estudo. A mais alarmante delas foi uma projeção segundo a qual todos os reservatórios que abastecem São Paulo enfrentam sérios riscos devido ao aumento de nutrientes como nitrogênio e fósforo, resultado da poluição por agrotóxicos utilizados na agricultura e do lançamento de esgoto sem tratamento em suas águas.
Quando esses nutrientes atingem certo nível, os ecossistemas aquáticos tornam-se “eutróficos”, o que significa que o crescimento explosivo de algas absorve rapidamente o oxigênio da água, ameaçando a vida dos peixes e a qualidade da água para o lazer e o consumo humanos.
O exemplo torna inequívoco o valor das florestas e matas ciliares, que atuam como filtros que reciclam os nutrientes de volta para a vegetação e restabelecem o equilíbrio bioquímico da água. Tundisi argumenta que São Paulo enfrentará no futuro custos altíssimos com o tratamento suplementar da água em substituição aos serviços garantidos pela natureza, que a cidade está prestes a perder. Melhor negócio é investir agora na proteção da vegetação ainda íntegra e na recuperação de áreas já degradadas.
Quadro semelhante é o do papel do Cinturão Verde para a regulação do clima e suas implicações para a saúde humana. Paulo Saldiva, do Laboratório de Poluição Atmosférica da USP, afirma que entre 7 e 8 pessoas morrem por dia em São Paulo devido à poluição do ar, e que 18% dos atendimentos nos hospitais referem-se a queixas respiratórias. O custo da poluição para os serviços de saúde pública é estimado em 320 milhões de reais por ano.
Florestas e Parques têm um duplo papel no controle dos impactos da poluição do ar. Já é sabido que eles reduzem o calor excessivo produzido pelas aglomerações urbanas (“heat island effect”) e que contribuem para elevar a umidade do ar. Quando o ar está seco e quente, as partículas de poluição permanecem em suspensão e as pessoas ficam mais expostas a elas. A perda de mais áreas florestais pode aumentar significativamente os já crônicos impactos da poluição sobre os paulistanos. Isto sem falar no crescimento de problemas de saúde relacionados diretamente ao aumento médio da temperatura.
Há ainda outro serviço prestado pelas florestas no controle da poluição. As próprias árvores atuam como filtros retendo várias impurezas do ar. Por isso o Cinturão Verde funciona como uma barreira protetora impedindo a “exportação” da poluição da capital para outras regiões do Estado de São Paulo.
A avaliação do caso de São Paulo ainda não pode apresentar para as autoridades dados conclusivos sobre o valor dos serviços de cada ecossistema e sobre o custo de continuar com as políticas atuais. Mas as informações já coletadas apontam para a necessidade de uma abordagem integrada no enfrentamento dos problemas da metrópole. E este é outro ponto-chave do programa global da ONU.
Como afirma Maria Cecília Wey de Brito, do Instituto Florestal de São Paulo, “não é possível que a gestão dos parques e florestas de nossa região esteja dissociada dos processos metropolitanos e que os benefícios que essas áreas trazem à população em termos de saúde, lazer e condições de uma vida digna não sejam valorizados. Temos que entender que o Cinturão Verde funciona como um organismo vivo, é essencial à cidade, não pode mais ser excluído de um todo um planejamento regional”.
O estudo do Cinturão Verde, assim como toda a Avaliação Ecossistêmica do Milênio, terão pouco valor se forem vistos apenas como mais um grito de alerta sobre os males terríveis que estamos causando ao nosso planeta. Só farão diferença se forem seguidos como instrumentos orientadores de políticas públicas em todos os níveis. Para isso, as autoridades precisam se convencer de que a degradação dos ecossistemas é um risco concreto para os fatores sociais e econômicos.
Em outras palavras, as florestas do Cinturão Verde de São Paulo são o combustível que garante o funcionamento da economia brasileira. Sete dias por semana.
* Tim Hirsch é correspondente ambiental da BBC News no Brasil. Trabalhou como consultor da Avaliação Ecossistêmica do Milênio.
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